E Sísifo morreu
Sísifo enxugou o suor e gargalhou. A Pedra, que sempre o acompanha, perguntou o porquê da repentina alegria.
- Alegria? Que alegria?
A Pedra foi direta e quis saber o motivo da gargalhada.
- É que me lembrei daquelas anedotas que os adultos contam às crianças. O repetido final me fez rir. Dizem “...e viveram felizes para sempre”. Isso é impossível: ou se vive feliz ou se vive para sempre.
- E o que você entende de felicidade?
- Só o que dizem. Mas entendo de eternidade.
- De eternidade você entende - repetiu a Pedra, como eco de Sísifo. Ela se deitava, forçando peso para intensificar o flagelo de seu prisioneiro e companheiro de jornada.
Sísifo carregava a Pedra ao alto da montanha. Quando chegava ao ápice, notava a Pedra, novamente, na base. Buscava-a, repetindo, sem cessar, tal inútil tarefa. Era o castigo aplicado pelos deuses, por ter enganado a Morte. A condenação não era, simplesmente, de suportar a Pedra, mas de esgotar a vida numa rotina eterna,
- Você me acha maior que o sol? – a Pedra perguntou, de repente, enquanto se espreguiçava nas costas de Sísifo.
- Pra mim, você é maior que tudo - respondeu Sísifo com franqueza e fraqueza. Sísifo não tinha forças para suportar nada maior que aquela rocha e, para ele, nada maior que a rocha havia.
Já estavam na metade do trajeto. Os raios solares castigavam Sísifo. Ele praguejou o calor. A Pedra achou oportuno perguntar de novo:
- Você me acha, de fato, maior que o sol?
O cansaço de Sísifo limitou sua resposta a um abrir e fechar de boca, entre os quais quase não se ouviu o “sim”.
- E nada me supera em grandeza? - insistiu a Pedra como a bruxa que espera do espelho a confirmação do superlativo de sua beleza.
- Nada - respondeu Sísifo, com voz ofegante.
A Pedra, entediada com a demorada subida, buscava se distrair com esse jogo de ego.
Para Sísifo, não havia distração. Havia apenas aborrecimentos. E o maior deles era, naquele momento, o calor, que aumentava na medida em que se aproximava do cimo. Olhou para o sol para conferir o seu tamanho. A forte irritação nas vistas o forçou a baixar a cabeça. Notou no chão que uma estranha sombra, a sua, acompanhava-o. Os contornos eram de um camelo.
A Pedra, atenta, comentou:
- Sua sombra.
- Não. Está enganada. Eu sou humano. Não sou camelo.
A Pedra debochou da ingenuidade de Sísifo.
- Que sejamos, então, camelos – desistiu Sísifo. – Não me importaria em camelar se um dia isso tivesse um fim.
- Pra você não tem – riu a Pedra.
Fez uma pausa e questionou se Sísifo já gostaria de morrer.
- Sim. Gostaria muito.
- Você já não odeia mais a Morte?
- Continuo a odiá-la, mas não odeio morrer.
- Preciso lhe contar um segredo dos deuses: você vai morrer – mentiu a Pedra, divertindo-se à custa da ilusão de Sísifo.
- Vou? – perguntou em reavivada esperança.
- Sim. E para lhe provar isso, vou lhe revelar quem eu sou.
- Ora, você é uma pedra.
- Não. Sou o tempo.
Sísifo se fez dúvida por inteiro. Quis entender. A Pedra prosseguiu:
- Sou o tempo. Tenho no fim o início e no início o fim. Sem cessar... Mas não se confunda com meu desenho: não sou círculo, sou espiral. E estou me reduzindo. A cada ida e volta, tenho um tamanho menor. Se me reduzo é porque você caminha para o fim, para a morte.
Sísifo se acendeu de contentamento. A ideia do fim trouxe sentido à sua tarefa. Tornou-se rio de águas alegres por ter a convicção de que seu curso termina no mar. Seus olhos se transformaram e ele notou sinais de vida por toda parte: animais, insetos, árvores, lagoas, sons, cores, beleza... Pareceu sair de uma caverna.
- Vou morrer? Quando? – estava empolgado.
- Sim, vai morrer. Acontecerá quando eu, que sou seu tempo, já não estiver mais contigo.
A cada ida e volta, aumentava em Sísifo uma contradição: amava a ideia da morte, mas amava a vida.
- Quando vou morrer? – voltou a perguntar à Pedra após alguns ciclos... ou espirais.
- Ora, quando já não tiver mais tempo. E sou eu o tempo.
Do novo ânimo de Sísifo, renasceu a astúcia. Decidiu criar um atalho para acelerar o fim: deixou a rocha na base e, de mãos vazias, andou em sentido oposto ao da montanha. Bastaram alguns passos para cair desfalecido.
A morte de Sísifo deixou a Pedra pasma. Cega de vaidade, ela acreditou ser, de fato, o tempo.
Na eternidade de seu castigo, Sísifo desejava a morte. Ao nascer-lhe a esperança de morrer, descobriu a vida. Passou a amá-la. Ao morrer, suplicou aos deuses que voltasse à vida. Em um escárnio sem fim, os deuses permitiram a Sísifo nova vida com a condição que voltasse a seu castigo. Ele aceitou.
Sísifo avistou ao longe o que julgou ser a Pedra. Aproximou e jogou o peso nas costas. Não havia alegria nem tristeza; apenas o hábito da prisão ao ciclo. Ao colocar o peso no ápice da montanha, percebeu que não era a Pedra que carregava. Era a si mesmo, o seu cadáver. Tinha a velhice da eternidade.
Com a maior leveza que seus pés já sentiram, Sísifo desceu a montanha com viva admiração a tudo que o cercava. Deixava suas idades pelo caminho. Perdia lembranças e estatura. Quanto mais se aproximava da base, mais jovem ficava. Próximo do fim, já não era um bípede; andava de gatinhas.
No pé da montanha, havia uma mulher grávida. Gerava o tempo como qualquer gestante. Apenas o corpo de Sísifo permanecia insepulto no alto da montanha. Mas ali, naquele ventre, Sísifo tinha, no pequeno corpo em gestação, nova oportunidade de vida. Uma vida verdadeira, de tempo único para experiências únicas... até o fim.