A Hipocondríaca

Só estava sobrando a unha do mínimo da mão esquerda. As outras estavam roídas, sob os descascados desenhos escarlates de esmalte, em suas mãos. Ela não conseguia parar de pensar nos resultados dos exames que fizera havia quase vinte dias e que tomaria conhecimento na manhã seguinte àquele domingo outonal.

Marta tentou distrair-se o dia inteiro para manter a calma: ora buscava ler algo de Paulo Freire, ora punha uma música de Bach conduzida por Simon Rattle. Estava completamente nervosa, a pensar todo momento em seu possível definhamento. Preparou seu chá favorito – de erva doce – e pôs mais açúcar que devia. Às vezes, subitamente, acometia-se-lha ganas de prantear. Contudo, mantinha-se firma.

Divorciada, triste e solitária, Marta não podia deixar-se abater. Na manhã seguinte, acordou antes do despertador. Levantou-se, banhou-se e quando ainda faltava uma hora e meia para a consulta, saiu de casa. Chegou em vinte e cinco minutos no hospital, colheu os exames e aguardou a chegada do médico.

– Bom dia, Marta – disse o médico. – Como está?

– Bem – disse ela, hesitante -, só um pouco apreensiva…

O homem vislumbrou-a fundo nos olhos.

– E os exames?

Ela fuçou a bolsa, tirou um envelope e entregou-lhe. O médico percebeu que o pacote estava inviolado – Marta não era tão curiosa como os demais pacientes. De súbito, ele abriu o envelope, sacou os papéis e começou a lê-los.

– Bem como eu pensava, Marta – disse ele, a abrir um sorriso -: tudo dentro dos conformes! Só cuide um pouco esse colesterol…

– O que você quer dizer com “dentro dos conformes”?

– Ora – redarguiu o médico, a soerguer o sobrolho -, digo que você tem absolutamente nada! Está ótima! Você não está feliz?

– Feliz? – disse ela, a parecer um pouco decepcionada. – Claro, mas… pensei que. Bem.

– Marta, você procura algo? Digo – corrigiu-se ele, até na postura -, é a quinta vez em três meses que você vem aqui. Da primeira vez, alegou dores lombares: havia dormido de mal jeito. Das demais, admitiu que doía-lhe a cabeça. Mesmo com os comprimidos que lhe indiquei, a dor permaneceu. Eu, claro, como médico, pensei que uma bateria de exames ser-me-ia útil para diagnosticar essa suposta dor…

– Sim, Miguel – exclamou ela, irritada com o médico -, mas tomografia, ressonância, exame de sangue, de urina, etc e etc. Tudo isso para nada? O que direi na empresa?

– Posso te dar a alta agora…

– Não, eu digo… eu parecia realmente doente. Emagreci três quilos em duas semanas! Eu devo ter alguma coisa, Miguel!

– Não queira ter, Marta – disse o médico, a levantar-se e conduzi-la para fora. – E, seriamente, recomendo fazer uma caminhada diária, de pelo menos meia hora, para controlar mais seu colesterol.

E Marta obteve o mesmo diagnóstico de dois médicos diferentes: tudo o que precisava fazer era cuidar o colesterol. Nem sinusite, rinite, enxaqueca ou qualquer outra doença que fizesse-lha mal. Tinha absolutamente nada. Sua hipocondria chegara a um estágio alarmante. Alertada fora ela por sua antiga psicóloga – que acabou se suicidando com a ingestão de um excesso de antidepressivos.

Marta permaneceu muitos anos mentalmente mal, mas fisicamente bem. Ao primeiro sinal de resfriado, dor ou quaisquer outros sintomas, corria ao hospital. Esta fora a sua sina: vivera mais de cem anos, sem uma doença sequer e, a desejar imensamente morrer cheia de tubos em uma cama hospitalar, rodeada de médicos e enfermeiras, acabou morrendo em casa, dormindo, de causas naturais.

Guilherme Zelig
Enviado por Guilherme Zelig em 16/05/2023
Código do texto: T7789430
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