X.

Me convidaram para o clube de xadrez. Eu não sabia o que dizer. Faz muitos anos que não jogo. Já me esqueci o movimento das peças. Eu teria que reaprender as regras. Disseram, meu orientador e um colega chamado Gregório, que tudo bem. Hesitante, eu, não sei por quê, aceitei. Meu orientador são duas pessoas que eu conheço.

Isso me põe ansioso. Quando será a primeira partida? Vou perder e ser considerado burro por eles. É claro que pensavam que eu me daria melhor. Não lido bem com jogos espaciais. Muita coisa acontece ao mesmo tempo. Não posso me concentrar de uma vez só nas minhas peças e nas do adversário. Todas. Todas juntas. Um mero lance muda todo o posicionamento relativo, todas as interrelações entre as peças alteram todas as previsões do oponente. Não sei detectar quando meu adversário está sendo imediatista, quando apenas iniciou uma grande jogada que requer mil lances preparatórios. Como contra-atacar essas estratégias tão bem pensadas e executadas? Como implementar minha própria tática e sufocar o adversário, colocando-o na defensiva? Se inicio um jogo e movo uma torre por determinado móvel, ele pouco importa: dez, quinze rodadas à frente o tabuleiro estará irreconhecível, a torre demovida de seu remoto e ancestral propósito. Ou será que ela, soldado orgânico, pensa obcecadamente no rei inimigo? E contudo seu general é um modesto incipiente!

Como querem que eu demore menos de um dia para passar meu turno, tomar minha decisão irreversível, sabendo que tenho de levar em conta todas as movimentações possíveis no universo para não fazer besteira? Bem, é verdade que no início, ao menos, não há muito que pensar. Só se pode avançar peões. Eu nunca lidei bem com avaliar a importância de cada peça no xadrez. Para mim, o valor de um macaco, de um kong, num Plataforma 2D, segue bem mais claro. De uma argola do Sonic, perdida em alturas vertiginosas e mais rápido que o som do tênis tropeçando na madeira. Devo sacrificar minha torre, enfim, para comer o bispo do outro? Sou cavalheiro, cavaleiro, ou são as damas? Bobo da côrte. Porque jogar damas não exige tamanha abstração. Matemática é instintivo. Não passaria nervoso antes de uma partida com quem quer que fosse, nem a rainha da Inglaterra. Os outros parecem enxergar o que eu não vejo.

Estou sentado no corredor do quarto andar. Me disseram para ir sem pressa, jogamos quando der. Agora cada um foi cuidar de seus assuntos. Eu moro aqui. É um prédio muito alto, mas são ainda mais garagens que andares sobre a superfície, isto é, são ainda mais numerosos os andares do subsolo. Eu moro no quarto andar. Mas o oitavo está quatro lances de escada abaixo. Significa que eu moro no -4. Não faz muito calor, mas tudo tem aspecto velho e poeirento, sem necessariamente sê-lo. A Universidade de Brasília anda sem investimentos, largada. Está certo que cederam todo o lote do antigo Colégio Militar para expandir o campus, mas não é nada muito além disso. Tudo está ativo e inativo ao mesmo tempo. Nós os veteranos, os ex-alunos, podemos usar tudo aqui, ter nossos beliches, nossos armários, nossos computadores – bem como um banheiro compartilhado por andar. É dentro do campus mas é uma república. E tem tantos andares, esses edifícios, que cabemos todos, milhares e milhares. Todos os alunos, todos os que chegam todos os semestres, e essa massa de egressos. Não tem fim.

Existe uma xérox, uma loja fotocopiadora, no quinto andar, logo abaixo. Mas parece que faliu. O dono, um velho bigodudo, só está lá dentro esperando até alguém se interessar pela faixa de “alugo” pregada na frente. Tudo está fechado na hora em que me aproximo. As cópias eram muito baratas, os materiais, o papel, a tinta andam caros. Eu gostaria muito de tirar uma xérox agora, se bem que não tenho verdadeira urgência, pensando melhor. Em qual cantina vou comer? Existe a do quarto, a do sexto. Uma menina acabou de dizer que não agüenta esse cheiro. É verdade, esse cheiro de mofo com mijo nunca sai do prédio. Diria até que o antecede. Me pergunto como as pessoas não adoecem. Devem ser os anticorpos.

A fila da cantina do quarto andar está muito comprida, não posso comprar meu x-burger. Daqui a pouco vão fechar. Vai escurecer – LÁ FORA... Espera, tenho que procurar algumas pessoas lá em cima antes que o dia termine!

Do lado de fora, T. estava sentado num dos parapeitos rentes à calçada. Logo mais conhecidos se juntaram. Uns três ou quatro membros do clube de xadrez. uma mulher só, entre eles. Dizem que não há nada como jogar xadrez de verdade, com o tabuleiro, as peças, fisicamente... Sentir sua textura, encarar o antagonista. Hoje em dia todo mundo joga pelo celular, não é a mesma coisa. O clube é veementemente contra, a menos que um dos desafiantes não esteja no campus.

Compraram novos computadores. Um bilhete branco pregado com durex fazendo as vezes de post-it na minha tela informa que esta máquina é a mais poderosa e satisfaz minhas necessidades de pesquisa. Duvido muito. Bom, esse teclado, fino, frágil, duro, parece um tapete congelado, está encapado num tecido ainda mais velho, puído e esburacado, algumas partes são auto-adesivas (velcro). Eles nunca nos dariam acessórios que não fossem improvisados assim, de graça. O mouse, se é que é possível, é ainda mais simples que o teclado. Além disso a tela é muito pequena, do tamanho do próprio bilhete, só x polegadas. Se eu pudesse trazer a minha...

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Quando me aproximava de T. vi que conversava com Mariana, a gorda, e era uma conversa leve, riam, mas o assunto me chamou a atenção: “Não vai me dizer que você é budista agora? Todo mundo está virando budista.” Eu fiquei calado. Guardei silêncio enquanto dava os últimos passos – da distância que eu estava, não era certo para eles que eu conseguira pegar algum trecho da conversa. Isso porque, faz pouco tempo, sou budista.

As garotas querem ir embora, eu vou acompanhá-las até ali, descendo-subindo a rua (eu não sei, sigo ao mesmo tempo das 900 para as 700 e das 600 para as 400). Só por mais duas faixas de pedestre, e pronto. Espera... – não, não posso ir mesmo com vocês. Sim, é uma pena. Vou voltar, preciso comer. O dia passou muito rápido, não consegui resolver nada.

Não há mais atividades para o dia. Recolher-se ao subsolo. Toque de recolher. O toque de recolher é o insuportável atrito dos freios. Nossa rodoviária possui o mais rápido trem-bala.