Além do agora.
Ali estava, diante da personificação da existência, que em tese para o universo humano, não era bom nem ruim, mas era algo em si e para si mesmo. Diante daquele ser, fora do tempo e do espaço, perguntava a si mesmo, por que estava ali?
Depois de um tempo, percebeu muitas diferenças em suas sensações. Não parecia mais ser uma vida orgânica, mas sentia. Estava ali presente, sendo representado por algo que assemelhava-se ao que havia ouvido, relativo ao espírito pós morte. Quem era aquele ser?
Duvidar, não duvidar. Crê, deixar de crê ou nunca ter acreditado? Importava algo ainda? Ali estava ele diante daquele ser, e aquele momento independia de sua vontade. Suas escolhas ou capacidade de fazê-las, estavam inabilitadas. Sentir, sim, mas e fazer outras coisas? Estava apenas começando sua jornada naquele lugar, plano espiritual ou outro mundo. O certo é que não sabia onde estava. Com quem? De que modo ou o porquê de ter ido parar ali? Era sonho ou algo além?
Percebia que não possuía um corpo físico. Que suas vontades não contavam mais (pelo menos era o que pensava), que suas decisões já não importavam. Por que aquilo?
Após olharem-se mutuamente, inicia-se um diálogo.
- Quem é você e onde estou? Perguntou ao ser estranho em sua frente.
- Um reflexo de suas memórias quanto ao que é ou poderia ser o outro lado. Respondeu aquele que encontrava-se logo ali, quase face a face com ele.
- Que outro lado?
- A existência pós morte.
- Pós morte? Estou morto? Como? Questionava, mas sabia que aquilo ou aquele momento, se encontrava além dos portões da existência em vida. Pelo menos, no que se referia a vida orgânica.
- Esperava que soubesse e contasse a mim.
- Não sei de nada. Nem sabia que poderia ser assim, após bater as botas.
- Assim como?
- Ter algo, continuar existindo. Sempre foi uma dúvida e uma curiosidade. Pelo jeito ainda não sanada.
- O que seria existir para você?
- Sendo humano, um ser vivo, sei lá... Viver?
- Então você não existe agora.
- Não sei, só estou divagando. Estou tentando entender isso tudo. Por que estou aqui? Por que contigo?
- Você está onde desejou estar, ainda que involuntariamente, os desejos refletem suas ações ou omissões. No fim das contas, tudo converge para o que desejou ou quem você foi. Como disse, sou um reflexo de suas memórias, quanto ao que é ou poderia ser o outro lado. Talvez eu seja uma personificação de sua consciência, que agora ganha independência, ou talvez exista apenas em suas reflexões mais secretas. Sempre fui o teu melhor e fiel companheiro. Estive com você muito mais nos momentos angustiantes e de tristeza, do que nos de plena felicidade. Mas em qual momento você viveu mais?
- Estou muito confuso. Suas respostas, são terrivelmente cheias de dúvidas.
- Então, agora você começa a entender a você mesmo.
- Como assim? E que lugar é esse?
- Apenas um lugar, como qualquer outro, que você idealizou ou desejou. Você saberá mais do que eu.
- Não desejei isso. Não lembro de ter desejado.
- Pode não lembrar, mas foi aqui, ou assim, que imaginou ou desejou. Aqui é sua encruzilhada. O fim do caminho das incertezas. De suas incertezas. Um novo trilhar que o atormenta, por sempre ter vivido na dúvida. Não é bom nem ruim, mas apenas o que existiu em seus mais recorrentes desejos.
- Como pode isso?
- A capacidade racional, humana, permitiu ao ser humano, fazer conexões mentais que continuam ligadas e existindo, mesmo após a inexistência da matéria que formava seu ser. Ser formado por matéria não é a única prova da existência de algo. Em tese, você agora pode ser apenas uma lembrança, um reflexo de sua existência física e racional. Posso ser apenas uma construção mental, criada por você, conversando consigo mesmo, após o fim de seu corpo físico, pairando na existência em um complexo e dinâmico conjunto de conexões construídas durante sua vida física. Se está aqui, algo é mais do que duvidou. Chegou além. Aqui você existe, fora da existência física. Mas perceba, ainda está conectado ao mundo físico, pois essa existência, ainda é reflexo da material que teve anteriormente.
- Doideira isso. Posso estar morto e conversando comigo mesmo, após não existir mais? Não venha me convencer do absurdo, da falta da existência, ou existência às avessas.
- Vamos caminhar?
- Por onde? Não percebo quase nada aqui.
Então, os dois saíram a andar por um lugar que inicialmente parecia pequeno e comum, mas que no caminhar, tornava-se grande e extremamente complexo. Belo e diferente de tudo o que ele já havia visto em sua vida.
- Como as coisas aqui vão sendo construídas de acordo com o nosso andar? Como isso é possível?
- Lembre-se, tudo aqui é em parte o que ainda idealiza e pensa ou pensou e o que em tese resume-se em suas conexões do real com o imaginário.
- Aqui é uma espécie de paraíso, pois não se parece com o inferno.
- O que é e como é o paraíso ou o inferno para você?
- Não sei, sempre quis saber e não ficava satisfeito com as explicações das diversas religiões ou credos, que se propunham a explicar. Só sabia que o paraíso era algo bom e o inferno algo ruim. Seguindo essa lógica, o bom seria aquilo que te distancia da dor e sofrimento e o ruim sendo o contrário disso. Simplificando.
- Interessante, mas parece ainda, carecer de sentido lógico. Estando aqui, posso dizer, que as coisas funcionam independentes do que você quer ou deixa de querer. São regidas por forças naturais que existem em si mesmas, distantes de sua vontade. Talvez tudo isso, que se desenrola diante de suas percepções, sejam fluxos dessas forças em suas constantes e complexas conexões. Mas deve saber também, que esse agora, pode ter sido resultado de seus desejos, dúvidas e anseios de sua vida física. Não deixam de ser, contudo, conexões. Lembre-se das conexões.
- Você diz ser parte de minhas memórias e consciência, mas sabe muito mais do que lembro em minhas memórias e reflexões mentais, quando ainda possuía um cérebro.
- Possuía? Possui. Seu cérebro ainda vibra em você. Sempre foi ele conectado ao universo. As limitações humanas e a incapacidade de perceber a gigantesca capacidade do mesmo, é que mesmo após deixar a vida física, ainda há dúvidas. Sem essas limitações, o ser humano estaria além de suas dúvidas, ou melhor, elas seriam sempre, o incentivo para ir além. Para alcançar essas conexões ainda no mundo físico, na matéria. As ideias perfeitas alcançariam a matéria.
- Como?
- Limitações. Todos passam muito mais tempo, preocupados com o quão carrasco é o tempo, do que: tê-lo como aliado, pois o tempo te permite ir além. É uma constância que você aproveitando ou não, seguirá do mesmo modo. Estar além, ainda que viva eternamente, o fluxo do tempo seguirá a mesma constância. Ainda que tempo e espaço aniquilem-se, haverá um fluxo e seguirá. Constante... Apenas seguirá.
- Sinto-me bem aqui. Por que a sensação é tão boa?
- Aqui, você segue suas conexões, que interagem com outras, e o fluxo lhe proporciona algo bom, prazeroso, belo e harmonioso. Sinta a felicidade plena, sinta o que desejou. Seja o que desejou.
- Agora começo a entender. Mas por que ainda sinto medo?
- O medo é um reflexo da finitude em você. Se alcançou o prazer desejado, sente medo de ter um fim.
- Terá um fim?
- Dependerá do quanto poderá manter suas conexões aqui e do quanto pode edificar mentalmente as mesmas conexões de quando tinha uma vida física.
- Pode ser eterna?
- Poderá não ser eterna? Porém, não viva aqui, suas limitações anteriores. Por que desejar a eternidade, se nem entende a mesma? Eternidade, não se resume a uma palavra. Está além das conexões e da própria existência.
- Tem razão. Poderei encontrar aqui outras pessoas? Quem amei? Quem convivi? Haverá possibilidades, além das que percebo neste momento?
- Conexões. Lembre-se, suas conexões o levará onde você desejar.
- Então, estou no paraíso e percebo que as dúvidas se desconstroem, pela simples existência aqui.
- Apenas continue fortalecendo suas conexões mentais. Continue sendo o que sempre foi, ainda que não percebesse, ou seja, um cérebro criativo.