O Doce Chamado R

A única coisa constante e presente na sua conturbada visão era apenas a grande faixa vertical escura em sua visão. Uma faixa sobre a qual se locomovia. Muitas vezes, ela tinha um trajeto retilíneo. Em outras, assumia curvas acentuadas para os lados. Em raros momentos, assumia curvas bruscas e muito acentuadas, assustando e surpreendendo a sua pessoa. Tinha uma cor escura e uma textura sólida, tal qual asfalto.

As estruturas visíveis em suas laterais eram nada mais do que ingredientes de um borrão verde. Não podia discernir quais coisas estavam posicionadas nos seus arredores. Sua velocidade era tão rápida que a imagem era perdida no meio desta. Sentia como se estivesse num túnel. O borrão poderia facilmente assumir uma forma de uma quase uniforme e plana parede verde dotada de grande altura. Caso tentasse sair daquele túnel, ele seria impedido por aquela não-tão-convencional parede. Olhava para os retrovisores laterais e superior, tentando achar alguma nitidez nos espaços que acabava de deixar para trás. Ela era presente, porém só quando eles integravam o passado. Só poderia admirar a beleza dos espaços ao seu redor quando eles se despediram dele, porém nunca quando eles o cumprimentavam.

Seu coração batia freneticamente. Bombeava sangue para o seu corpo e o recebia de volta, quase da mesma forma que um motor. Recebia gasolina e usava a combustão para mover os pistões. Dois corações, um de carne e um de metal, trabalhando ao mesmo tempo. Poderia dizer que batiam em sincronia.

Suas mãos se agarravam ao volante do carro ferozmente, como se fossem anatomicamente ligados. Apesar de todo o suor secretado pelas suas palmas, era incapaz de deixá-las escaparem do volante. Apesar de toda a fadiga muscular, estavam lá, cumprindo sua função com maestria.

Garganta seca, sedenta por algum líquido para saciar sua sede. Tinha uma preferência por água. Água pura,gelada, limpa. Sentia sua sede aumentar à medida que o suor sob seus braços aumentava e manchava o tecido sobre eles. Seus olhos também secaram devido a ausência do piscar das pálpebras. Sempre atentos, nunca se deixaram distrair pela escuridão causada por um piscar, mesmo que este durasse menos de um segundo.

Corpo enrijecido, sentia seus músculos doerem com o esforço excessivo. Parecia que estavam contraídos o tempo todo. Estava duro e tenso. Sua fome gritava, queria comida, mas sua tarefa era mais importante. Punhos formigando, como se fantasmas estivessem espetando-os a todo momento com finos e pequenos espetos de madeira. A falta de circulação sanguínea era o sintoma que mais o perturbava e assustava. Temia pelo fim absoluto da circulação das mãos, coisa que poderia resultar na perda de controle destas e na consequente perda de controle do volante. O abandono deste era o principal ingrediente para um acidente. Não sabia quanto tempo levaria até que isso acontecesse, seu acontecimento era uma certeza.

Sentia seus pé perderem as forças. Perdia a constituição de carne e ossos, transformando-se em peles fracas. Vestes despidas de quaisquer vigor e firmeza. Tinha que parar, porém ao mesmo tempo achava não ser possível parar. Acreditava na continuidade do seu correr. Do seu progredir. Do seu rápido andar… Até que não poderia andar mais. Ele sentiu algo subir pela sua garganta. Alguma coisa pastosa, quase enchendo a sua boca.

Ele puxou o freio de mão. Virou um pouco o volante para a direita. Encostou no primeiro espaço vago suficientemente largo para abriga-lo. O cantar intenso dos pneus anunciou sua chegada. Quando ele finalmente parou, abriu a porta e caiu de joelhos no chão. Deixou o conteúdo pastoso sair de sua boca e dar boas-vindas ao mundo. Precisou abrir a boca para liberar a saída de mais 3 bolos pastosos, todas acompanhadas por grunhidos de dor. Arranhava sua garganta tal qual uma plana e comprida lixa arrastada sobre seu revestimento interno.

Quando as expulsões finalmente pararam, ele parou para examinar seu vômito, ao mesmo tempo que seu tórax executava uma respiração ofegante. Não havia nenhum conteúdo ver, vermelho, amarelo ou escuro no seu vômito. Era branco, acompanhado por alguns filetes transparentes. Uma prova viva da ausência de comida no seu trato gastro intestinal. Porém, não era algo de sua culpa. Havia muito tempo desde a última vez que seu estômago implorou por comida. Já havia esquecido do som da canção da fome. Não prestou atenção nos sinais que a fome ignorada deixou no seu corpo. Suas mãos eram fracas e murchas, carentes de qualquer musculatura. Eram praticamente esqueléticas. Não havia quase nenhuma força nos seus braços. Esforçava-se muito para poder sustentar seu corpo sobre o chão. Levantou-se e olhou para seu carro. Um challenger vermelho como um tomate. Ele o acompanhava nas duas desde que havia começado a dirigir e navegar pelas estradas da vida. Todas as curvas, paradas, avançadas e destinos… todos decididos enquanto estava dentro dele.

Olhou para o espelho retrovisor ao lado da porta do banco do motorista. Ficou incrédulo quando viu o corpo responsável por carregar seus espírito. Era ausente de quaisquer fios de cabelo sobre sua cabeça. Não percebeu a queda deles. Sempre se viu com muito cabelo, e era muito estranho vê-lo sem. Sua barba encontrava-se cheia, chegando até a base do pescoço. Era branca como neve, desprovida da cor que antes era compartilhada com o cabelo que antes tinha. Pele quase tão branca quanto a sua barba, pálida, sem vida, sem nenhum vestígio, marca o dano vindos da luz solar. A pele em volta dos seus olhos era o completo oposto da sua pele. Densamente negra, como se seus olhos fossem raptados por dois pequenos buracos negros. Aproveitou para observar o resto do seu corpo: Seu tronco e suas pernas eram pequenos demais para sua jaqueta e suas calças jeans. Era como se vestisse roupas grandes demais. Seu corpo agonizava em hipotrofia muscular. Estava preso em sua própria fraqueza.

Se tornou apenas uma imitação barata e de mal gosto do homem que antes era.

Ele olhou para trás, para o lugar onde havia estacionado seu carro. Um chão coberto com pedras de cascalho, delimitado por uma bancada baixa de concreto plano, limpo e baixo. Separava o cascalho da terra enlameada, esta que beijava o lago mais adiante. Um lago rodeado por florestas e montanhas. Olhou ao redor e viu algumas árvores como elas guardando as laterais da entrada daquele espaço. Pensou estar sozinho, mas havia uma forma de vida andante, pensante e falante à frente: Um bloco vertical branco, mais branco que o concreto do banco no qual se senta. Tinha uma coroa com uma cor similar à de leite queimado, com pontas ramos caindo sobre o bloco.

O piloto andou até aquela forma. Um andar lento e desajeitado. Cambaleava a cada passo. Parecia que havia se esquecido sobre como poderia andar. Olhava as botas cor de uísque que cobriam seus pés e torcia para que elas não lhe falhassem naquele momento importante. Queria falar com a pessoa. Perguntar sobre alguma direção ou referencial. Tinha uma garganta seca. Sentia suas cordas vocais duras como pedra, como se nunca tivessem sido usadas. Se fosse para falar, só poderia falar bem baixo. Um baixo que o zumbido que gritava em seus ouvidos poderia impedir ele mesmo de ouvir.

Ao chegar mais perto, aquela forma ficou mais nítida. Cabelos encaracolados. Vestido branco feito leite. Uma corda na diagonal das suas costas, sendo sustentada por um de seus ombros. No final dela, havia uma bolsa verde-musgo. Quando ficou ao lado do banco, o piloto viu o rosto daquela moça. Um rosto fino, branco e com semblante sério. Sem sinais de envelhecimento. Era jovem. Calçava botas cor de lama. Botas para caminhadas nas montanhas. Observava o lago na sua frente. Com um semblante sério, mas ela o desfez ao ver a fonte dos sons dos cascalhos sendo movidos. Ao ver o piloto, ela sorriu. Um sorriso pouco caloroso, mas convidativo. Ela pousou uma das mãos sobre seu colo, dando nele umas leves batidas.

O piloto aceitou o convite. Sentia-se calmo e exausto. Não se lembra da última vez que deitou em uma cama. Uma parada para descanso e carinho seria mais que bem-vinda. Sentia que poderia cair de fraqueza e exaustão a qualquer momento.

Ele se deitou sobre o banco. Pousou a cabeça sobre o colo daquela moça. Viu o sol do final da manhã iluminar seu belo rostinho. Uma vista que desacelerava os batimentos do seu coração e ao mesmo tempo tornavam-lhe mais fortes, a ponto de sentí-los ao tocar seu pescoço. Sentia uma vontade de espreguiçar, uma trégua na tensão dos seus músculos. Toda a ansiedade fora substituída em parte por uma tranquilidade ímpar, cobrindo ele feito um fino e leve cobertor.

A moça virou o rosto para o lugar onde deixou sua bolsa. O piloto ouviu um abrir e um leve remexer. Ela voltou seu rosto e seu tronco para ele. Tinha algo em mãos. Uma coisa pequena, guardada cautelosamente no centro da palma de uma das mãos. Enquanto ela usava a mão livre para puxar o queixo barbudo do piloto para baixo, ela disse calmamente:

"Tome. Vai te fazer bem."

Ele conseguiu ver o que ela tinha em mãos antes de colocar na sua boca. Um disco. Um pequeno disco, do tamanho de um grão de arroz. Era plano, sem imperfeições ou linhas mal desenhadas. Tinha uma coloração rosácea leve.

Com muita delicadeza, ela colocou o estranho doce por baixo da sua língua. Ela fechou sua boca em seguida. Ao fechar, a saliva encharcou o doce. Ele dissolveu como se fosse um algodão doce, liberando o sabor de morango em sua boca. Era um doce gostoso. Estava feliz por sentir aquilo na sua boca. Primeira vez em muito tempo que estava saboreando algo. Mesmo não sendo uma refeição completa, era um alimento mais que bem-vindo.

Um sorriso foi desenhado pelo piloto. A moça acariciou sua cabeça enquanto o olhava com atenção e carinho. A vista se embaçava como vapor sobre vidro. Palpáveis se tornaram pesadas. Pensamento lentificado. A força dos membros se retraía. Tudo ficava tão efêmero e etéreo. Nada pra lhe causar medo, preocupação, horror ou ansiedade. Fechava os olhos e se recolhia no mundo dos sonhos.

***

O abrir das duas pálpebras foi tão suave quanto o seu fechar. Não sentiu como se tivesse tirado uma soneca ou dormido por algumas poucas horas. Sentiu como se tivesse dormido por um dia inteiro. Ou talvez uma semana. Um mês. Um ano. Ou, quem sabe, uma vida inteira.

Sentia-se diferente. Uma nova pessoa que acabara de nascer. Experimentava os raios de sol de final de tarde como se os experimentasse pela primeira vez, um recém-nascido. Pela primeira vez, não sabia o que pensar, falar ou fazer. Desaprendeu o seu vocabulário. Não lembrava-se da sua voz e do tom dela. Não lembrava-se dos seus pensamentos e memórias mais recorrentes antes de adormecer. Não sabia quais ações tecer com suas mãos ou quais caminhos percorrer com suas pernas.

Era como se não fosse mais a mesma pessoa antes do seu dormir. Seu antigo eu havia escapado e deixado apenas a concha. Todas as forças invisíveis internas autoras dos seus atos evaporaram. Todas as ilusões de pressões externas que o balançavam e empurravam sumiram.

Um homem renascido. Novo. Assumiu o reinado de sua própria jornada.

Mas o que fazer?

Ele levantou-se do banco primeiramente para sentar. E observar o lago. As árvores e montanhas. Ver o lago. Saborear o beijo e acariciar o ar fresco e cécil. Era estranho. Estivera sempre acostumado a ver o borrão de cores e formas na dianteira e laterais do seu carro. Era a primeira vez em muito tempo que pudera ser capaz de observar um ambiente parado. Com ele mesmo parado.

Tudo…parado.

Repouso. Sem forças para movimentar, puxar ou empurrar. Nunca teve a oportunidade de experimentar aquele tipo de paz.

Levantou-se do banco. No começo sentiu uma leve tontura, mas esta foi passageira. Se não tinha forças ditando o seu ir e vir, achou melhor voltar a fazer a atividade antes do adormecer.

Cada passo de volta ao carro foi experimentado um de cada vez. A sola da bota pressionando o irregular chão de cascalho era um estímulo saboroso. Os segundos, antes considerados invenções abstratas, eram coisas concretas para ele. Sentia-os passar um de cada vez. Via o velho desaparecer, o novo virar o agora, o agora virar o velho e o novo aparecer. Podia finalmente vê-los. Eram visíveis. Fantasmas segurando suas mãos.

A surpresa quanto ao novo estado de espírito tirou a sua atenção de um incômodo importante para ele antes do adormecer, porém não havia se esquecido totalmente: As manifestações orgânicas de sua maldição desapareceram. Seu coração batia calmo e cadenciado. Seu palpitar forte no pescoço era imperceptível. Sua mão, calma como brisa marítima, não era atormentada por tremedeiras. Estômago calmo, sem desejo por atos de repulsa e rejeição. Músculos relaxados, com tônus preservado. Era como se as pedras duras debaixo de sua pele tivesse virado gelatina. Antes, duro, agora estava mole e instável. Sentia como se pudesse cair no chão a qualquer momento.

Ele se aproximou do carro, e a primeira imagem que saltou sobre seus olhos foi a do seu próprio reflexo no espelho retrovisor. Pôde ver com atenção as roupas que trajava. A jaqueta e a calça jeans. Pôde ver suas constituições, seus bolsos, suas cores. Podia até mesmo ver as linhas que formavam as camadas de tecido. Olhou para baixo, e viu as botas escuras que calçava. Mesmo estando opacas por conta de uma visível falta de polimento, podia sentir a força de suas cores.

O piloto adentrou o carro. Sentou-se e reconfortou-se no banco como um bebê deitado num fundo berço. Fechou a porta do motorista, assegurando sua segurança. Abraçou a chave com os dedos e a girou. Ouviu o grave e ameaçador relinchar do seu cavalo de metal na dianteira. Puxou o freio de mão, engatou a primeira marcha e saiu do local.

Diferente da manhã antes do seu descanso, não sentia vontade de correr. Não tinha pressa nem urgência. Não havia nenhum compromisso imaginário no futuro. Nenhuma razão inexistente para avançar para o sempre inalcançável próximo segundo. Podia aproveitar o segundo presente, andando a 30 km/h.

A vida selvagem e a estrada, escondidos dentro do borrão da ansiedade, mostraram suas caras. Árvores com vestidos verdes reluzentes. Um verde vivo e brilhante, refletindo o brilho do sol que chovia sobre suas superfícies. Troncos fortes e robustos, firmemente inseridos no solo. Os pilares da natureza se erguiam e se mostravam como modelos frente às câmeras. O perfume de eucalipto adentrava suas narinas e dançava em seu cérebro. O vento se entrelaça feito cachecol. Os pássaros ditavam suas notas e deixavam - as ressoar. Cada elemento da natureza era agora visível com uma velocidade de 20km/h. Até mesmo os ambientes vistos no espelho retrovisor central eram agora visíveis. Cada detalhe do passado, presente e futuro era nítido, palpável e desenhado, não mais um borrão indefinido e amorfo.

O piloto pôde reparar com mais atenção o seu carro. Ao visor da velocidade e gasolina. Para a bancada do carro. Aos controles do ar condicionado. Para o volante, a marcha e o freio de mão. Ele olhou para si mesmo e viu o visual substituto da barba grisalha e calvície antes do sono: Um rosto jovem, encorpado, com cor viva. Sua calvície foi coberta por um cabelo castanho penteado para trás, e a barba longa e grisalha foi trocada por uma barba curta, porém cheia. Era cuidadosamente aparada, sem excessos e sem desvios.

Estava no controle de sua vida. Havia acabado de recuperar ela.

Ele olhou para si mesmo. Viu que tinha fome. Uma sensação incômoda, porém estava feliz ao senti-la de novo. Entretanto, não sabia o que iria comer.

Uma placa na beira da estrada chamou a sua atenção. Uma placa de madeira branca, mostrando dois personagens de desenho animado. Um em forma de hambúrguer, e outro em forma de copo plástico de refrigerante. Eles estavam sorridentes e apontavam com os polegares das mãos direitas para uma direção na esquerda. Ao lado deles, havia uma seta com uma distância de 500m, onde se localizava a lanchonete mais próxima.

O piloto observou o porta-copos abaixo dos controles do ar-condicionado. Viu uma carteira de couro amarela. Estava encorpada, com algumas bordas de cédulas de dinheiro saindo do interior dela. Não viu quanto dinheiro tinha, mas julgou ter o suficiente para um lanche simples.

Já sabia qual seria seu próximo destino. Um destino onde pararia e aproveitaria, sem se preocupar com sua próxima parada. Pela primeira vez em muito tempo, saberia decidir para onde iria. Era hora de comemorar sua liberdade e o fato de que havia recuperado o controle da sua vida.

Caio Lebal Peixoto (Poeta da Areia)
Enviado por Caio Lebal Peixoto (Poeta da Areia) em 19/02/2023
Código do texto: T7722984
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