GUARDIÃO DA LUZ

GUARDIÃO DA LUZ

Quando N. abriu os olhos, concluiu ter andado por um mundo desconhecido, mas perfeitamente factível segundo a idealização que nunca mais o abandonara, desde aquela madrugada, muito embora soubesse não ser crível, sendo hiper-realidade. Ele nunca havia vislumbrado algo parecido, nem imaginado viver a felicidade plena naquele cenário onírico. Era Dia de Natal e ele ainda estava deitado, escutando o silêncio normal de toda manhã do dia 25 de dezembro, quando o mundo cristão já festejara o nascimento de Jesus Cristo. Na manhã do Natal, só as crianças têm pressa de levantar da cama para conferir as generosidades natalinas, enquanto os adultos, geralmente, dormem até tarde, não menos sob os efeitos da ceia. N. não poderia ouvir ruído de crianças desempacotando presentes, pois vivia solitário, embora reunisse, em ocasiões festivas, os amigos mais chegados. Despertou por completo: não havia borboletas saindo dos seus olhos, estrelas projetadas no céu por dois projetores de luz, pnem objetos flutuando na piscina ou no infinito. Coisas que só poderiam ser resíduos de sonho. Tão fortes, nem o álcool as destruiu. N. acreditou ter visto na madrugada só a consequência das três taças de vinho e mais quatro doses de uísque que bebera durante a comemoração natalina. Os amigos se foram. Antes das três horas, solitariamente, tomou a última dose que restava na garrafa. Quando resolveu se deitar, sentia-se bêbado, mas consciente. Trocou de roupa, jogou-se na cama e dormiu. Quando acordou às dez da manhã estava com fome e sede, mas preferiu reter-se na cama, dormitando. Aos pouco foi ativando a consciência, muito embora o teto do quarto rodasse de ressaca já instalada. Lembrou-se que era Dia de Natal e precisava desembrulhar presentes e entregar outros. Levantou-se. Abriu a porta da varanda do quarto, inspirou o ar fresco da manhã nublada e só ouviu o canto de pássaros. A cidade dormia. Olhando para o jardim, viu uma fila de borboletas amarelas com pintas pretas nas asas. Bailavam indo e vindo ao ângulo da janela. N. lembrou-se da visão na madrugada; reuniu os fragmentos do que foi mesmo um sonho e descreveu para si próprio que estava dormindo numa cama flutuando na piscina da casa, cercada por ninfas gregas. E que dois fachos de luz saíam dos seus olhos projetando estrelas, revezadas com borboletas, no infinito. Despertou pensando que era tudo real, mas constatou ter sido um pesadelo – mais do que sonho. Havia ouvido vozes muito nítidas. Não olhou no relógio, como era comum ao acordar na madrugada. Em seguida, apagou e continuou sonhando. E dessa vez ele passou a caminhar por uma estrada na floresta, estreita e reta, cheia de flores às margens. Uma imagem que ele jamais havia imaginado. Pensou que aquela paisagem bucólica só existisse na ficção de fábulas infantis. N. continuava acompanhando mais uma revoada de borboletas. Tudo parecia real: ele se viu caminhando sozinho, embora tivesse a sensação de fazer parte de uma multidão – pessoas vestidas de branco dirigindo-se a um só destino; algumas lhe diziam algo incompreensível, mas ele dispensava decifrar, por ter certeza de caminhar para um lugar seguro,

e dispensava desviar-se dessa convicção. A relva do caminho era macia. Pássaros acompanhavam a multidão; na floresta, esquilos espertos e coelhos saltitantes completavam a paisagem inigualável. N. estava tranquilo. Ao fim do caminho encontrou uma quantidade inimaginável de camas flutuando; as pessoas nelas deitadas emitiam, pelos olhos, fachos de luz que se transformavam em estrelas no céu. Ao mesmo tempo terrificante, por ser misteriosa, a cena era de uma beleza inimaginável no plano comum das coisas. Ele foi conduzido por duas mulheres vestidas de tecido branco e transparente; tinham auréolas douradas flutuando sobre as cabeças. Cada uma pegou-lhe pela mão conduzindo-o a sua cama, a mesma na qual se viu dormindo depois da festa, sobre a piscina. Deitou-se, olhou para o céu e sentiu que dos seus olhos saia uma infinidade de borboletas; no céu, transformavam-se em estrelas. Uma voz lhe disse: “Pode viajar com elas. E nunca mais voltarás de onde partiste. As borboletas transformam-se em estrelas para poderes ser guardião da luz”. N. assustou-se com a mensagem, ainda sonhando. Quando acordou, aquelas palavras incríveis ainda eram nítidas nos seus ouvidos. Imagens tão perfeitas, ele pensou ter viajado de verdade - embora estivesse dormindo - para aquele lugar paradisíaco, sem limites físicos, de um branco intenso perdido no infinito. Parado na varanda, olhando a paisagem, vendo a fila de borboletas amarelas voando em ondulações coreográficas a sua frente, ele concluiu que havia visitado o paraíso, onde todo mundo aspira viver. Atravessou o feriado de Natal pensando nisso, mas na manhã seguinte, quando pulou da cama, bem cedo, para trabalhar, as estrelas e as borboletas haviam se reduzido a um sonho monumental, que ele contou em detalhes precisos e convincentes aos colegas da empresa, e nas redes sociais. Desde então, todo Dia de Natal, ele sonhava o mesmo sonho.

Vira sempre as mesmas visões agradáveis, porém perturbadoras. Tentava decifrar algo adicional, mas não imaginava nada além do paraíso. E concluía que aquilo era uma mensagem que qualquer dia se tornaria realidade. No dia 25 de dezembro, dez anos seguintes à primeira “viagem”, enquanto parentes e amigos choravam, no céu azul do fim daquela tarde do Dia de Natal, muitas estrelas extemporâneas, sem esperar a noite, já brilhavam no céu. Subitamente, tornavam-se candentes, e em coriscos desceram do firmamento, transformando-se em borboletas que sobrevoavam a sepultura onde N. estava sendo enterrado com seus sonhos, para sempre.

NÉLIO PALHETA
Enviado por NÉLIO PALHETA em 28/12/2022
Código do texto: T7681820
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