MUARES UNGIDOS NO EGITO

O senhor está sendo traído, disse uma mula a seu amo.

- Não é possível, acabei de sair do altar.

- Meu chefe, sua digníssima é adúltera e lhe trata como um negócio falido.

- O dela está guardado, irei ao Egito e voltarei com tesouros e segredos revelados.

- Quero variar o cardápio e deixar esse frio revolucionário.

- Reúna os muares e vamos partir, irei comunicar a decisão aos meus generais.

As mulas foram às favas, com vagens e talos. Assim começa a jornada de Napoleão no Egito. Quem aprendeu que queria bloquear o caminho às Índias das rotas comerciais da Inglaterra se perderam na história de pescadores e piratas.

O pobre general bateu a cabeça numa queda de cavalo durante treinamento de equitação na Academia Militar e ficou com o juízo fluido. Suas loucas manobras no campo de batalha foram inovações na arte da guerra e empregadas até hoje por metódicos cartesianos. Seguir o caminho da mula é uma opção estratégica.

Napoleão desembarca no Egito em 1798 com uma divisão de exército e um grupo de pesquisadores: físicos, designer de interiores, corretores de imóveis, matemáticos, místicos e outros.

Líderes políticos sempre foram abençoados por místicos oportunistas. Rasputin ungiu de joelhos o czar Nicolau II e Nostradamus embaçou a vida do rei Felipe II e de todo o mundo. Tragédia profetizada. Os segundos nunca serão os primeiros.

Hoje empresários da fé noticiam seus milagres na TV aberta. Semeiam joio e colhem intrigas.

Governantes não conseguem prever o futuro e ficam na mão de economistas, donos de partidos políticos, gananciosas e falsos profetas.

Ter diploma de nível superior é caro, trabalhoso e desestimulante. Quem cruza a fronteira pela ponte da “contrabandagem” compra diploma de medicina por 100 mil reais. O entrave é o revalida e o risco de a mercadoria ficar retida na mão grande de fiscais. Depois com o registro em mãos, o discípulo de Hipócrates reza para não ser processado por dormir demais no plantão.

Ser líder espiritual é necessário ter voz para gritar, coragem para afrontar e valentia para defender seus interesses celestiais. A escola é a vida. Formam-se nas peladas de amigos, rodas de cachaça, pulando fogueira santa, banco de ônibus, fila de sopão, semáforo em dia de eleição, qualquer lugar. Onde tem mais de um querendo ganhar dinheiro e inocentes fiéis dispostos a comprar sua salvação, o milagre acontece. Quanto mais perdido o downline, melhor seu testemunho. Ciscar em terreiros, dormir na rua, ouvir vozes, endividados, drogados, todos e “todes”. O marketing multinível é eficiente se houver a transformação do ser. Ter produtos para oferecer - fé, salvação e bênçãos financeiras - é a cartilha da teoria da prosperidade mundana.

Paz, amor e dinheiro, deixemos de guerras, meu santo!

Por falar em guerra. Esse místico de Napoleão criava intrigas no Egito e quase foi degolado por muçulmanos. Entrou numa mesquita para aplicar sessões de descarrego e ao topar com uma imagem de Maomé, quis chutá-la. “Allauhu Akbar!”, gritaram desembainhando uma espada árabe:

- Aqui não é santa sem dono, será meu escravo ou morre degolado por um guerreiro santo.

- Vamos negociar essa escravidão? De onde venho sou senhor feudal, não pago impostos, tenho passaporte diplomático. Aceita cinco quilos de ouro?, pergunta se aproximando do egípcio colérico.

Como num truque de mágica, o guerreiro cai em pesadelo onírico. Creio que foi um passe de mão aplicado pelo místico. Antes de deitar já tinha perdido a espada, os brincos de ouro e a carteira de Mujahid.

Voltando à pesquisa científica, Napoleão o questiona:

- Meu profeta, que espada grande é essa?

- Um apóstata preguiçoso perdeu para mim. Tudo nosso!

- A guerra é minha arte, nosso instituto científico veio em missão de paz. Quero que mantenha o foco da missão: pesquisar e pilhar. Essa noite quero que me acompanhe numa sala da Pirâmide de Quéops, dizem ser misteriosa...

- Minha seita segundo a cientologia e com as bênçãos das leis laicas, ainda será uma religião.

- Tá doido, depois eu que ouço vozes, disse Napoleão rindo e entrando na Câmera do rei com um cobertor bordado por sua Josefina.

Em sonhos, o místico se apropriou de símbolos oriundos de povos perdidos na terra prometida. Durante a madrugada, uma mula da comitiva emite uma mensagem por hiperestesia indireta do pensamento na cuca do falso profeta:

“A estrela de Davi será seu escudo e o candelabro de sete braços sua lanterna. Litigantes de boa-fé disputarão palmo de terras, apesar de terem crucificado Jesus, se acham injustiçados pela história e condenados pela geografia. Por vias dissimuladas farão guerras híbridas, contudo sua areia virará sal e matará seus mares. Atribuirão as pragas e pandemias ao Egito e as terras do oriente.

Fariseus na terra dos outros é refresco. Título de cristão, não legitima ações violentas em nome de Deus. Um conceito ortodoxo e fundamentalista.

Com a bíblia sob as asas e a soberania populista, vão vociferar impropérios e maldições, inclusive contra profissionais de imprensa.

Vão processar os críticos com o véu da intolerância religiosa, para abrir caminhos para a mercantilização da fé alheia, sem troco, migalhas ou espaço para acordos.

Vão praticar lavagem cerebral, curar aleijados de alma e psicossomáticos, sugestionar as massas envoltas em versos decorados do livro sagrado.”

O místico acordou assustado e teve uma revelação: tratar sua seita como uma pirâmide financeira. Milagre econômico, negociatas de terras férteis no céu e promessa de eternidade nos braços do criador. Só não usará as virgens nuas para não parecer anedota nonsense. Adeptos vão doar seus bens materiais, vão incomodar a vizinhança e cooptar outros fanáticos. Se tiver mérito e coragem de se apropriar de casas, terrenos e carros, vão receber uma comissão, melhor que corretor. Viagens de cruzeiros à vela, cargos de confiança no reino e cursos de mesmerismo aos mais dedicados. O topo é restrito; questão de sobrevivência familiar. Quem abandonar a empresa irá para o inferno. Os dissidentes vão fundar modelo concorrente e levarão consigo os truques e a planta do templo de Salomão.

No dia seguinte, Napoleão acorda pálido e desorientado, enquanto o profeta sai apressado e cheio de ouro nas bolsas.

Que tanto ouro é esse, minha benção? Pergunta Napoleão, já que o companheiro de sarcófago entrou só com os cincos quilos reluzentes.

- Ora, meu grande líder, fui iniciado por um Faraó em sonhos reveladores. Aprendi que preciso montar uma pirâmide fora do Egito. Irei ostentar meu poder e minha riqueza será enterrada comigo na sepultura.

“Dai, pois, ao Profeta o que é do Faraó, e a Deus o que é de Deus”, parafraseia Napoleão.

Isaac Machado Azevedo
Enviado por Isaac Machado Azevedo em 04/10/2022
Reeditado em 26/07/2023
Código do texto: T7620136
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