Ser

O sol já despontava no horizonte quando Hank saiu do bar. Perdera no jogo de pôquer e quase ficou devendo. Era melhor o gosto amargo da derrota do que um olho roxo e um footsoldier da máfia batendo na porta de seu apartamento no dia seguinte. Enquanto caminha, acende um Marlboro soltando um palavrão quando descobre que é o último do maço. A cidade tenta despertar. Pessoas comuns com cara de sono começam a tomar a rua rumo aos seus trabalhos.

Sobe as escadas até o quinto andar, como sempre o elevador está fora de serviço. Abre a porta e procura por Trotsky. O gato está deitado no sofá e o recebe abrindo o olho esquerdo e voltando a dormir. “Às vezes o fundo do poço nos dá uma perspectiva melhor da situação.” Pensa em voz alta. Saca o Coltrane da estante e liga a vitrola.

A conta da internet está atrasada. E o notebook na manutenção. Coloca a máquina de escrever sobre a mesa da copa e, com algumas folhas que achou espalhadas aqui e ali, começa a escrever. O barulho das teclas o acalma. Após alguns aforismos sem sentido, sente que já está com os dedos aquecidos. Procura uma folha mais ou menos em branco e a coloca no lugar da usada.

My Favorite Things. Digita na primeira linha. Pela enésima vez começa a reescrever sua biografia. Trabalha até começar a sentir fome. Olha o relógio na parede, já é quase uma da tarde. Na geladeira só há água e meia cebola. Toma banho, troca de camisa e toma a rua novamente. Caminha até o centro da cidade até chegar a uma feira livre. Experimenta uma laranja, uma banana, um pedaço de melancia, uma lasca de queijo curado e até um pedacinho de doce de leite. Vai de barraca em barraca. No fim da feira, no armazém do Seu Antônio, pede meia dose de cachaça com a última moeda que estava no fundo do bolso da calça. Senta numa mesa na calçada e deixa a tarde cair. Assiste o movimento sem prestar atenção em nada.

Um trovão o desperta da letargia. Nuvens escuras começam a formar um paredão à Oeste. Um cliente deixou o jornal da manhã sobre a mesa após ler apenas o caderno de esportes. Coloca-o debaixo do braço e parte.