Exploração onírica em Mulac
PRÓLOGO
Esta história se passa num universo chamado Mulac, incompreendido por humanos, e habitado por entidades de imensa força e singular conhecimento. Este mundo é contemplado e relatado por um homem movido pela curiosidade. Tal explorador onírico se depara com universo sublime. Horrendo em suas peculiaridades, mas, ainda sim, digno de uma beleza fascinante até para olhos puritanos. Ele quer ir além dos limites de todas as fronteiras, ultrapassar a fina borda que separa o real do irreal. Rumo ao absurdo inexprimível. Vagando por uma terra hostil, onde simples seres humanos são desprezados, subjugados e caso tenham sorte, aniquilados.
ADENTRANDO AO MEFISTOFÉLICO ONIROCOSMO
Não espero a compreensão de ninguém com este relato. Muito menos anseio convencê-lo ou dar-lhe provas sobre o que vivenciei. Escrevo tão-somente para resistir à insanidade. Os moradores deste pequeno planeta ainda não estão preparados para conhecerem as diversas realidades tenebrosas existentes além desta. Lugares permeados por saberes ancestrais, capazes de enlouquecer qualquer pessoa.
Desde criança me interesso pelas artes místicas que perambulam o imaginário humano. Na vida adulta realizei pesquisas em psicologia na Universidade de São Paulo, estudando a influência dos mitos no inconsciente coletivo. Nunca desacreditei dos relatos pessoais alegando o contato com sinistras realidades escusas, mas também nunca fui um tolo, acreditando em asneiras ditas de maneira irrefletida ou falsária.
Meus estudos eram desconhecidos e desapreciados pelo grande público. Até mesmo pela universidade. Exceto pelo professor Joaquim, que apoiava e entendia meu trabalho. Graças a ele, tive a oportunidade de reunir alunos da universidade para o levantamento de dados. A pesquisa seria realizada num hospital psiquiátrico, numa pequena cidade do interior de Minas Gerais.
A pesquisa visava o entendimento de como mitos e crenças agiam sobre o inconsciente e o imaginário coletivo. Em outros termos, esmiuçava a influência dos mitos fundadores, na linguagem e no comportamento de populações. Influencias que moldam através de mecanismos indiretos, o modo de agir, pensar, falar, amar, e tudo mais que permeia a alma humana. A escolha de um hospital psiquiátrico se justifica, pois, uma mente afetada por uma doença, seja do corpo ou da alma, se torna mais sensível a estímulos inconscientes. Tornando minha investigação mais clara e tangível.
Em meu primeiro dia de visita ao hospital, acordei às cinco horas da manhã com um berro estridente. Parecia uma mistura de horror e cólera. Meu coração disparou, gelando todo corpo. Meus olhos, pesados de sono e sensíveis à luz, se abriram em prontidão. Parado no crepúsculo do quarto, tentei ouvir algo mais. Nada escutei. Não sei dizer se foi um sonho ou alguém de fato havia gritado.
Até brinquei comigo mesmo já estar sendo assombrado pelos boatos da cidade, mas tentei não me preocupar. Diziam que a cidade estava sofrendo com uma epidemia de pesadelos. Tudo isso logo após a inauguração do hospital psiquiátrico, num estabelecimento bem antigo. Claro, estaria mentindo se não revelasse ter sentido uma áurea fúnebre e bárbara vinda de lá. Minha boca seca pelo susto voltava a umedecer. O suor gelado voltava a esquentar. Então levantei da cama, tomei um café reforçado e fui trabalhar.
Às oito da manhã, já em frente ao hospital, me deparei com uma arquitetura e cores sinistras. Que justificavam em partes os boatos. A chuva, a fuligem e a poeira criaram nas paredes exteriores uma tonalidade de marrom fosco, sobreposto por um degradê infame de cinza-nanquim. Os portais e as janelas estavam pintados com uma grossa camada de tinta azul-prussiano. A arquitetura austera havia sido construída junto a uma pequena catedral, creio que do século XIX. Percorrendo a visão via-se um estabelecimento caliginoso, hora quadrada e simples, outrora pontiagudo e catedrático. Os pináculos estavam cobertos por uma ferrugem escura. Parte das paredes atarracadas estavam cobertas por arbustos desfalecidos. Em outros locais escorriam finos fios escuros, criados a partir da decomposição de musgos nativos. A iluminação era difusa. O ar trazia um cheiro úmido de folhagem velha. Do lado de dentro tudo era limpo e arejado, correspondendo aos requisitos determinados por lei. O hospital causava uma sensação de distanciamento. Suas densas paredes geladas faziam com que qualquer pessoa se sentisse intimidada.
Dias se passaram até que conheci Domênico. Um homem de quarenta e cinco, com aparência robusta e intelecto avantajado. Seu claro rosto quadrado me lembrava uma escultura grega. Olhos negros e profundos como um abismo. Sobrancelhas harmônicas e lábios cheios, sem barba ou bigode. Seu cabelo ondulado, loiro e grisalho, chegam aos ombros. Sua estrutura corpórea era atlética. Ele não era nenhum louco, apenas foi acometido por fortíssimas crises depressivas, advindas de sonhos macabros. Aos poucos foi se tornando o foco principal da pesquisa, pois, sua constituição psicológica ultrassensível era ótima para ser analisada. Mitos e crenças agiam com uma força tremenda em seu inconsciente. Sem dizer suas observações, que foram de grande ajuda para o progresso da pesquisa. Tal prodigiosidade vinha desde sua juventude, terminou um doutorado em arqueologia folclórica e análise linguística comparativa aos vinte e um anos.
Após dois árduos meses o trabalho chega ao fim. Coincidindo com a alta médica recebida por Domênico. Dado a simpatia mútua a partir das intensas conversas, mantivemos contato. Em pouco tempo havíamos nos tornado fortes amigos.
Ao longo dos anos, produzimos diversos estudos em conjunto. Mesclando nossas especialidades. Até sermos reconhecidos por parte de estudiosos mundo afora. Nada muito glamoroso, somente especialistas no assunto nos conheciam. Para mim este pequeno reconhecimento já fazia por valer todo esforço, mesmo porque não tinha interesse em chamar a atenção. Sou reservado. Prefiro gastar meu tempo explorando mistérios que excitem minha curiosidade, ao invés de passar horas autografando e lidando com o público. Sem dizer que teria de lidar com aqueles tipos que mais irritam os escritores. Aqueles que não leem o que foi escrito, mas se autoproclamam admiradores. Fazendo do livro um espetáculo. Isso para mim, é o pior, pois, é óbvio que quem escreve quer ser lido. Se quisesse o vazio do espetáculo, estaria realizando outra coisa.
A universidade, como reconhecimento pelas pesquisas, nos cedeu uma sala espaçosa no campus universitário. Lá, tínhamos melhores condições de trabalho, permitindo-nos mergulhar nos livros. Passados dois meses, a secretária universitária bate à nossa porta. Era uma singular manhã de inverno, onde o tímido sol transmitia uma luz fragmentada através das densas nuvens.
— Senhores, — disse ela — venho em nome da diretoria lhes informar que um pesquisador ligou atrás de vocês durante toda noite passada. Deixou um recado dizendo ter um assunto urgente. Apenas informou uma descoberta feita por ele, que impactaria a pesquisa de vocês. Parecia um pouco assustado, pediu que retornassem a ligação o mais rápido possível.
— Obrigado por avisar. Entraremos em contato! — disse eu.
Liguei para um número estranho. Na internet dizia ser de algum país europeu ou asiático. No primeiro toque, o telefone foi atendido. Dahilaiba, sem hesitação e pausas, se identifica sendo um paleógrafo de escrituras místicas. Informando ter achado um livro ancestral soterrado sobre a famosa Vardzia. Tão conhecida pelo antigo mosteiro em cavernas, datada do século XII na Geórgia. Esclareceu que a um ano, suas escavações encontraram túneis subterrâneos ainda mais antigos abaixo de Vardzia. As datações radiométricas não conseguiam identificar o período em que ele fora escrito. Por fim, nos alertou, a meu ver, com exagero e superstição, ter obtido êxito em decifrá-lo. E que por pouco não enlouqueceu ao final do processo. Também disse que os artigos publicados por nós, coincidiam com o livro soterrado, exceto alguns pontos. Terminou afirmando que enviaria de presente e sem custo algum, o misterioso livro chamado Grimório de Mistagogo Oneiriki.
Após algumas semanas, o Grimório chegou em nosso estabelecimento. Estava embrulhado numa pequena caixa rígida, cheia de furos laterais. Abri com todo cuidado a embalagem. Retirei o Grimório com às duas mãos e fiquei observando-o por algum tempo, próximo a uma pequena mesa no centro da sala. O aspecto físico era horripilante. Tinha dois palmos de altura e um de largura. As folhas grossas e ásperas foram costuradas à mão. Sua capa indescritível foi feita a partir da pele de algum animal peludo. Mantendo seus pelos grossos e pretos intactos. O pelo tinha altura de dois centímetros. Aquele curioso objeto parecia estar vivo.
Na ponta dos dedos sentia um leve calor. Quando o apertava com um pouco mais de força, ele reagia com alguns pequenos movimentos rápidos na pele, semelhante ao que os bovinos fazem para espantar as moscas. Também percebi um leve inflar e murchar, idêntico a uma respiração. Ao presenciar tal bizarrice, o joguei sobre a mesa. Fui abatido por uma sensação indescritível. Meus braços se enrijeceram. Minhas pernas não se moviam, estavam congeladas. Apenas conseguia engolir a seco, respirar com dificuldade e olhar impotente para o que acabava de se apresentar magicamente a mim como o imponente Grimório de Mistagogo Oneiriki.
Domênico apresentou uma reação contrária à minha. Sua mente se desconectou deste mundo. Seu olhar se fixou no livro, suas pernas moveram-se em instantes para perto dele. Em segundos, seu cotovelo esquerdo estava esbarrando em mim. Cercando de maneira voraz aquele livro. Sua linguagem corporal não deixava dúvidas de que meu estimado amigo estava sendo impelido para aquilo, contra sua vontade.
Ao toca-lo, Domênico começou a ler em voz alta. Sem nem conhecer aqueles hieróglifos. Fiquei petrificado ao escutar e conseguir entender cada detalhe daquela linguagem estranha. Escutei palavra por palavra. Do começo ao fim. E, no decorrer da leitura, sentia um misto de emoções vertiginosas. Explosões epifânicas de conhecimentos intercalados á segredos divinos, borbulhavam em minha mente. Foi como ascender ao paraíso, mas por infelicidade, acabar caindo no abismo. Os segredos do Grimório subvertiam todos os valores humanos, divinizando o profano. Herméticas visões me forçaram a contemplar a descoberta de um vasto universo desconhecido.
Tudo ficou confuso em minha mente, não consegui digerir toda informação. Absorvi aqueles conhecimentos com base nos instintos, por sensações e vislumbres inarráveis. Algo com acesso direto a nossa mente se chama telepatia. Sim, creio ter aprendido instintivamente e por telepatia.
Após a leitura, Domênico se virou em minha direção. Seu rosto estava abatido e pálido, com olhos profundos e arregalados. Abriu com muito esforço a boca enrijecida, e dizendo com suspiros de ar:
— Minhas… Minhas crises depressivas vêm desses outros mundos. Está tudo interligado. Agora está claro para mim. Você também viu, não é?
— Vi e senti cada momento. Só que estou um pouco confuso. Está tudo bagunçado na minha cabeça — disse eu.
— Tudo faz sentido agora. Algumas visões me mostraram que eu já havia visitado aqueles mundos. Disseram que eu, nós, precisamos entrar em um sonho, nessa noite, e acessar o inacessível!
— Você está com cara de que viu mais coisas, não é mesmo? Vai, me conta logo!
— Lembra daqueles boatos em relação ao hospital, naquela cidadezinha? Então, eles começaram quando eu havia sido internado lá. Eu sempre tive essa sensação dentro de mim, mas nunca dei bola, achava ser um delírio. Tinha sonhos extramundanos, e de algum modo conseguia interferir nos de outras pessoas. Projetava, sem querer, meus pesadelos e medos nelas. Isso acabou dando origem aos boatos.
— Eu… Eu não sei o que dizer. Eu…
Não sabendo o que falar, fiquei mudo. Ansiei pela rápida chegada da noite. O medo foi ofuscado pela curiosidade. De tão absorto em meus pensamentos durante aquele dia, a chegada da noite foi rápida.
Fomos para minha casa as onze, mudos. Na sala, retirei a mesa central, afastei o sofá para os cantos e coloquei dois colchonetes no centro. Apaguei a luz e nos deitamos. Um ao lado do outro. Deveríamos deixar sono nos envolver. Todo o processo, segundo as visões, aconteceria sem esforço de nossa parte. Por meio de algum conhecimento instintivo impregnado em nosso corpo.
Antes que pudesse perceber, já estava sonhando. Fui guiado por uma nuvem esfumaçada, através das estrelas mais longínquas do universo. O tempo perdeu sentido. Minutos, horas, dias, anos, esses conceitos humanos evaporaram-se. Segui em direção a figuras policromáticas formadas no horizonte. Andei e passei por obstáculos que se apresentavam a minha frente. Imagens formavam e desapareciam no ar como miragens. Estava atravessando a fina borda que separa o despertar do adormecer.
Escutei ao fundo a voz do meu amigo. Não podia vê-lo, só senti-lo. De alguma maneira sabia sua localização, e ele a minha. O ambiente tomou um aspecto amorfo, de tal ordem que era inominável. Fui pego por uma sensação estranha, minha alma parecia se esticar até a espessura de um fio de cabelo, próximo a romper. Depois, a de ser inflado como um balão de ar quente, prestes a estourar.
Nenhuma escrita, código ou língua inventada pelos homens poderiam me ajudar a expressar o que presenciei. Tudo estava fora de escalas humanas habituais. Somente deuses deveriam presenciar tais circunstâncias. Via coisas sem formas definidas, inteligíveis para alguém desperto. Apenas em um sonho se poderia entender aquelas existências dissociadas do mundo comum. Transpassavam entre o real e o irreal.
Fui coberto por um líquido viscoso, bem gelado. Que exerceu uma pressão estonteante entre mim e Domênico. Em determinados momentos aquela pressão me fundia com a mente dele, outrora nos separava. Nessas idas e vindas, percebi que meu amigo aparentava estar habituado à situação. Nos momentos que nossos corpos se fundiam, podia vislumbrar sua serenidade e capacidade em prever os acontecimentos. Ele parecia estar habituado à situação. Sua maestria em manter o controle me deu a sensação dele não ser mais humano. Estava imbuído numa viagem desgovernada para além da matéria e do espaço-tempo. Além até mesmo da imaginação mais fecunda dos maiores sonhadores dentre os homens.
Gradualmente ganhei controle sobre meu corpo. Abri os olhos e vi Domênico dizer aos berros enquanto me chacoalhava:
— Acorda, acorda! Descobri memórias ocultas em minha mente. Está escutando? Entendeu? Memórias ocultas!
Aceno com a cabeça, e ele prosseguiu dizendo:
— Parece que essas memórias só se apresentam a mim enquanto estou neste plano onírico, durante o dia elas são inconscientes. Viva meu amigo, agora possuo conhecimentos ocultos e uma força que nunca imaginei ter. Acessando essas memórias percebo que quero ler o livro de Ultafahr, localizado na fortaleza de Estagnatus. Não sei te explicar ao certo como quero e como sei de tudo isso, só sei que você deve me acompanhar! Vamos explorar o desconhecido? Juntos! Em? Diz que sim!
Assustado com tal revelação e excentricidade, e sem saber o que esperar dessa viagem, disse sim. Fui movido pela curiosidade, impulsionado ao desconhecido. Um homem como eu, curioso e fascinado por tudo aquilo, não conseguiria recusar tal convite nem se tentasse.
Domênico me revelou que o tal livro era uma escritura divina. Na verdade, era mais que isso, mas por uma limitação de nossa linguagem e intelecto, não possuímos recursos para nomear algo acima dos deuses. Os conhecimentos guardados pelo livro de Ultafahr eram proibidos aos homens, pois, revelavam saberes sepulcrais da origem dos mundos eternos.
Partimos na jornada em direção às grandes montanhas da cidade obscura de Nester. Deveríamos nos encontrar com os Piratas oníricos Gormogs, e tentar negociar algumas mercadorias roubadas por eles. Fomos em direção à cordilheira no horizonte, percorrendo caminhos sinuosos e folhagens agressivas que machucavam o corpo ao menor contato. Haviam pedras posicionadas nas montanhas de tal maneira que pareciam armadilhas propositais. O aclive até o cume era de barro, estreito e úmido. Tão perigoso que a menor distração ou passo em falso, nos jogaria sobre arbustos espinhosos que cresciam entre as pedras pontiagudas nas laterais do barranco.
Após horas de subida, chegamos no objetivo. Era noite, nuvens densas cobriam todo horizonte, exceto numa brecha, por onde a majestosa lua cheia brilhava. O chão era de um calcário negro cheio de farpas. A cada passo dado se ouvia o som característico dos calçados sobre os pedregulhos. O local era amplo, com rochas distribuídas por todo espaço. Algumas tinham três, outras, cinco metros. Logo a nossa frente havia uma pedra monumental. De cento e cinquenta a duzentos metros de altura, e setenta de largura. Um rochedo imponente que se mostrava majestade da paisagem. Nele havia uma grande abertura, do seu centro até o chão. O vento trazia consigo um cheiro abafado de folhagens.
Após poucos instantes contemplando a paisagem, Domênico chegou próximo à pedra. Estendeu os dois braços na altura da cabeça. Com as mãos fechadas e o indicador levantado, proferiu palavras desconhecidas. O tom de voz estava diferente do habitual, mais grave e ríspido. Seus braços se movimentavam como se estivessem desenhando símbolos no ar. A luz da lua cheia se tornava, após seus gestos, mais intensa. O vento ficou violento, ao resvalar nos rochedos produzia um som semelhante ao uivo de uma alcateia. As nuvens já carregadas começaram a trovejar. Domênico então abaixou seus braços, voltou para perto de mim e disse:
— Agora é só esperar, meu amigo, e torcer para que os Gormogs aceitem nosso convite de negociação.
Momentos após lançar o convite que mais pareceu um feitiço, surgiu no céu noturno a quilômetros de altura, um pequeno portal de luz branca. Acima da gigantesca pedra. A cada segundo aumentava de tamanho, e em instantes, estava com quilômetros de diâmetro. Águas começaram a brotar do solo até a altura de um palmo, cobrindo todo local. O que antes era terra, acabara de virar mar. Não eram águas comuns, eram etéreas. A cada passo dado abriam um espaço ao redor dos pés, dando a entender que não queriam ser pisadas. De dentro do portal caiam as águas, até tocar no topo da grande pedra. Formando uma gigantesca cachoeira.
Uma névoa densa e esbranquiçada tomou conta do lugar. A monumental embarcação dos Gormogs, semelhante um galeão do século XVIII, apontou sua proa. Saindo pouco a pouco. Até ficar pendurado pela traseira, na ponta do portal, enquanto o restante flutuava no ar. Então, se inclinou na vertical e começou a descer. Seu mastro principal era tão grande que parecia uma árvore, da espécie sequoia, com cem metros de altura. Um casco tão denso quanto o metal mais pesado conhecido pelos homens. Da proa a popa se encontravam correntes e símbolos expostos ao lado de fora. O convés era tão vasto que campos de futebol se intimidariam. A cor da embarcação variava entre um preto metálico e um cinza funesto. Não existiam remos ou qualquer outro mecanismo de locomoção, a própria água etérea o movia.
Ao chegar próximo do grande rochedo, o galeão se inclinou na horizontal e pousou sobre ele. Uma fina e longa escada se estendeu até o chão, e três Gormogs vieram vagando por ela. Traziam consigo um cheiro de carne podre, causando náuseas. Ao se aproximarem, percebi serem maiores que havia imaginado, uns três metros. Possuíam uma pele negra que reluzia sob a luz do luar. Na cabeça usavam algo como um turbante. Sobre os ombros, uma toga tão fina e translúcida que dançava no ar ao menor sinal de vento. Seus corpos, apesar de esguios, aparentavam grande força. A cada passo dado era possível ouvir o peso que faziam sobre a escadaria. Possuíam uma longa perna, sem pés. Seus braços quase tocavam o chão. Nas mãos havia três longos membros, o polegar opositor e dois outros dedos. Nos ombros tinham dois chifres, um de cada lado, semelhante à de um touro. Falavam uma língua desconhecida, hora semelhante ao russo, outrora latim, intercalando com estalos e assobios. Creio que nenhum humano consiga falar tal idioma.
Os Gormogs chegaram próximos, mas não desceram da escadaria. Meu amigo, e guia, se aproximou deles. Fez gestos rápidos com os braços e emitiu outros sons peculiares. Dos três piratas, apenas o do meio se comunicava, repetindo os mesmos gestos como se fosse um cumprimento. A interação foi rápida, até que o Gormog estendeu um braço e lhe entregou uns frascos. Domênico os pegou com as duas mãos. Então, o pirata levantou sua mão esquerda para o alto, até ela começar a brilhar. Puxou a palma da mão de Domênico e escreveu símbolos extraterrenos, que ficaram fixados como uma tatuagem de luz.
Domênico veio em minha direção e disse que conseguiríamos o que procurávamos, mas seria necessário fazer um trabalho antes. Deveríamos arrumar algumas doses de lucidez misturada com realidade. Explicou que para seres iguais a nós, naturais da realidade material, da lucidez e do despertar, seria fácil conseguir tais doses. Gormogs, por mais durões que pareciam, tinha o hábito de recorrerem a entorpecentes. Se drogavam por diversos motivos. Pela diversão, para escapar do que os cerca ou se aliviar da dor de existir. Assim como humanos recorrem a drogas para visitarem lugares desconhecidos dentro de suas mentes, estes seres faziam o mesmo. Mas ao invés de percorrerem os mundos oníricos, mergulhavam na realidade material, do peso, da dor e da gravidade. Se entorpeciam com vislumbres de sanidade, lucidez e clareza.
Nosso trabalho era encher de lucidez misturada com realidade aqueles frascos, só. Com isso, Domênico receberia seu pagamento, algo chamado de “complexidade matemática exotérica”. Deveríamos nos apressar, pois, só nos esperariam por algum tempo. A marca na sua mão era um temporizador. Conforme perdesse intensidade, indicava que os piratas estavam se preparando para irem embora.
Após um breve planejamento iniciamos o plano. Domênico se desconectou de nosso elo onírico-mental, fazendo com que eu tivesse um leve despertar. Os frascos irredutíveis estavam comigo. Possuíam a propriedade de permanecerem ativos durante poucos segundos fora do mundo onírico. Este pequeno intervalo de tempo era uma janela que possibilitaria a captura de porções de lucidez e realidade. Tentei ficar imóvel o máximo possível, evitando o risco de acordar por completo, apenas movia os olhos. Aquele leve despertar era o suficiente para que os frascos acumulassem fragmentos da realidade. Então, após segundos, fechei os olhos e voltei para o sono.
A droga foi apelidada por nós de fractal da loucura. Pois tinha sido criada entre o real e o irreal, e sua aparência viscosa era como fractais metalizados. Com tudo em mãos, fomos para frente do galeão realizar a troca. Domênico, percebendo minha inocência, me alertou para não ficar sozinho com eles, visto que possuíam o hábito de escravizar tudo e qualquer coisa que julgassem fraco. Depois da breve conversa com os Gormogs, Domênico disse:
— Eles querem mais frascos da loucura, só que não temos, nem eles possuem mais recipientes para enchermos. Querem te levar como escravo, para consumi-lo pouco a pouco, e em troca me darão uma carona até os exóticos jardins iridescentes de Shurradah.
— Quê? Você está brincando comigo Domênico? Não quero ser escravo neste universo, muito menos deles. Você não faria isso comigo, não é?
Domênico, de cabeça baixa, não me encarou, fazendo um gesto para os Gormogs. Nesta hora percebi que ele iria me entregar. Até tentei acordar, mas não conseguia, estava ligado a ele. A exploração deste novo mundo acabava de se tornar um pesadelo completo. Dei dois passos para trás. Respirei fundo me preparando para fugir, mas tropecei em pequenas pedras no caminho. Caindo de costas no chão. Virei meu corpo de lado e tentei correr, debatendo meus braços e pernas sobre aquele cascalho cortante. Alguns pedregulhos espirraram em Domênico e nos piratas. O mais alto deles, ao ser atingido no rosto, olhou fixo para mim. Seus olhos começaram a brilhar uma luz vermelha, tão forte que iluminou o local, apontando seu grande dedo em minha direção. Eu apenas corria, o mais rápido que podia. Assim que a luz vermelha sessou, uma força gravitacional segurou meu corpo, sensação igual à quando tentamos correr em um sonho e não conseguimos. Pouco a pouco fui puxado para perto deles. Não importava o quanto gritasse ou me esforçasse, não tinha força para me defender.
— Nããããoooo Domênico, por favor, não me deixe ser escravizado por eles. Por favor, eu te imploro! Por favooooooooor meu amigo!
Domênico ficou parado olhando para o vazio. Quando eu já estava próximo aos Gormogs, na ponta da escadaria, a força gravitacional exercia uma pressão tão forte em mim que cai imóvel no chão. Não conseguindo mexer um músculo sequer. Fiquei deitado, imóvel, mas flutuando a poucos centímetros do chão.
A escadaria começou a se recolher em direção ao medonho galeão, me levando junto. A cada metro mais próximo daquela embarcação macabra, minha respiração se tornava mais e mais pesada. Meus sentidos ficavam confusos. O cheiro forte de putrefação fazia disparar meus instintos mais primitivos de medo e horror. Não conseguia sequer xingá-los, mesmo que não entendessem nada.
Olhando os Gormogs de baixo para cima, percebi que suas pernas não tocavam o solo, flutuavam a poucos centímetros do chão. Usando toda força restante, consegui virar os olhos para baixo e ver Domênico. Ele não havia embarcado, creio que só me usou para conseguir o que desejava. Aquele papo de que ele era meu amigo, e a carona até não sei onde, deveria ser uma tosca justificativa para me entregar como escravo. Para que eu apresentasse resistência antes da hora. Naquela última olhada desesperançosa abaixo, vi uma fumaça envolvendo o corpo daquele traidor enquanto ele proferia palavras irreproduzíveis. Desaparecendo no ar em seguida. Nisso, um dos Gormogs puxou meus braços e colocou uma pulseira de luz vermelha em cada pulso.
Já dentro da embarcação, meus sentidos estavam atordoados, não sei se por efeito de alguma magia ou por medo. Só conseguia ouvir. Três sons percorriam toda embarcação. Uivos de ventania, metais se batendo e urros atormentados de dor.
A embarcação começou a se mover em direção ao portal, até que escutei um estrondo raivoso como raios. Era possível ouvir passos rápidos por toda embarcação. Então, os Gormogs pararam e voltaram a descer. Fui arrastado para a escadaria, e descemos novamente. A cada metro afastado daquele local horrendo, meus sentidos voltavam gradualmente. Em outro esforço monumental consegui olhar para baixo. Vi Domênico, segurando um cajado de madeira, parecido com a raiz de alguma árvore. Os Gormogs pareciam interessados naquilo que Domênico havia trazido. Ele então entregou o cajado e me puxou para seu lado. Removendo a força gravitacional que me imobilizava.
— Dei-lhes o cajado da profundeza, em troca de um escravo e uma viagem até as esplêndidas fronteiras de Zrock, próximo aos exóticos jardins iridescentes. Agora você pertence a mim, espero que seja útil e faça valer a troca. — disse Domênico.
— Eu não sou um escravo seu idiota. Prefiro morrer! Me mate, pois na primeira oportunidade irei te matar!
— Sim, você é meu escravo! Aqui o que vale é a força! Quem não a possui se torna escravo, quem a detém, domina. É assim que este mundo funciona, você goste ou não. Então, como você não é dotado de poderes, se não for meu escravo, será de outro. O que prefere? Você não possui nada para impor sua vontade!
— Não serei seu escravo. Nunca! Prefiro me matar.
— Mesmo que não queira, essas duas pulseiras são algemas da alma. Caso não me obedeça ou tente fazer algo que não ordenei, ela irá lhe causar dor até que cumpra a ordem. Agradeça meu ato de bondade e benevolência. Meu outro eu diurno, aquele que é seu amigo, de alguma maneira me influenciou a comprá-lo. Sinta-se um homem de sorte!
— O que é você? Não o reconheço em nada!
Ele ficou calado. Já eu, abatido! Pude ao menos subir a embarcação com minhas próprias pernas. Partindo em direção ao horizonte infinito, onde a escuridão do céu noturno se fundia as sombrias terras negras.