PRESÉPIO
Não importa a forma pela qual um fato é contado e sim o que se acredita a respeito. Nossa mente não trabalha com a realidade em si, mas sim com a versão que ela registra e aceita a respeito dela. Ela é como um jornalista cujo único interesse é a repercussão da notícia e não o que de fato aconteceu. “Se a versão é mais interessante que o fato, publique-se a versão”, diz o jornalista, e é exatamente isso que a nossa mente faz. O que aconteceu não é importante, mas sim, o que se acredita ter acontecido.
A verdade que disso tudo fica é que o nascimento do filho da menina Maria se tornou o acontecimento mais marcante que já ocorreu na face da na terra, nos últimos dois milênios. Quem, ao observar um presépio em uma de nossas igrejas, nunca se quedou a imaginar como teria acontecido aquele evento que viria inaugurar uma nova era na história das humanas tentativas de justificar a própria vida e a razão das escolhas que nela se fazem? Quem nunca se viu tomado de uma indefinível ternura, ou de um místico arrebatamento na presença de uma representação desse acontecimento, na forma daqueles mudos teatrinhos que se montam todos os anos em milhares de casas e igrejas?
Há dois mil anos escrevemos, pintamos, esculpimos, falamos desse momento em que a humanidade ganhou um novo termo em sua escala evolutiva. Por um tempo ainda maior continuaremos a tratar desse assunto porque ele nunca se esgotará em si mesmo. Ele reflete a jornada do espírito humano em sua eterna procura por uma identidade, e por ser o momento em que essa jornada atingiu o seu mais denso pico de sensibilidade, a ele sempre teremos que nos remeter quando quisermos evocar as nossas próprias experiências relacionadas com as modalidades sutis da consciência humana.
A história geralmente aceita é que o menino nasceu num estábulo, para onde José teria levado a gestante Maria, já em seu trabalho de parto, (porquanto o casal estaria de passagem por aquela povoação, vindo da aldeia de Nazaré onde moravam), para submeter-se a um recenseamento ordenado pelas autoridades romanas. Esse censo, nós sabemos hoje que ocorreu realmente, mas só foi feito cerca de seis anos depois do nascimento do filho de Maria, quando Coponius, o primeiro prefeito que Roma enviou para governar a Judéia, a Iduméia e Samaria, tomou posse do cargo e quis saber quanto poderia arrecadar de impostos sobre a empobrecida terra dos judeus.
Sabemos que Herodes, o Grande, morreu quatro após o nascimento do menino, e durante os dois anos seguintes, após a sua morte, essas províncias foram governadas por seu filho Arquelau. Depois que Arquelau foi deposto, Roma mandou para lá um representante para governar diretamente aqueles conturbados domínios, com o cargo de Chefe de Prefeitura. Portanto, quando os romanos passaram a governar diretamente os judeus, o filho de Maria já estava com seis anos de idade. Destarte, nesse ano, um levantamento censitário foi feito pelo prefeito romano com o objetivo de inventariar a quantidade de cabeças tributáveis nos territórios que lhe cabia governar, bem como as profissões, as rendas, as licenças de comércio e indústria, as tarifas das alfândegas, enfim, tudo que pudesse compor uma base tributável na subdesenvolvida economia judaica.
Mas essa coisa de enganar-se com relação a datas e motivos não é defeito de cronistas que escrevem por ouvir falar, e que por não terem sido testemunhas oculares dos eventos são obrigados a preencher com crias da sua imaginação os buracos que surgem nas histórias que escrevem. Essas falhas, em se tratando de um historiador (ou recursos, se falarmos de um romancista), são comuns a todos os que se metem a remontar acontecimentos pretéritos, ocorridos muito além do limite das suas visões e conhecimentos. Além disso, sabemos que não existe fato puro em comunicação; quer dizer, se os eventos dos quais falamos, quando as visões que deles temos são postas em linguagem já não são os mesmos tal qual aconteceram, quanto mais modificados não estarão a cada vez que forem recontados? Se a linguagem de superfície – que é o pensamento expresso em forma de comunicação – já distorce a linguagem de profundidade –, que é o pensamento tal qual foi formulado nos circuitos mais profundos da mente –, então quanto mais não a mutilará a repetida metalinguagem que conta e reconta, explica, replica e triplica?
Por isso é que afirmamos que talvez não seja muito importante o que aconteceu naquele pobre casebre da aldeia de Belém, naquele sexto ano antes de os romanos começarem a governar diretamente o país dos judeus, mas sim o porquê aconteceu. Daí tanto faz que o menino tivesse nascido numa estrebaria, no meio dos animais, e que seu pai, o carpinteiro José, segundo as versões oficiais, tivesse adaptado um coxo à guisa de berço para abrigar o seu frágil corpinho, para assim não ter que fazê-lo dormir nas palhas que ajuntou para servir a ele e a Maria, de cama. Tanto faz, dizemos, se fosse isso o que realmente aconteceu.
Imaginação não falta quando se trata de relatar um caso como esse, que são arquetípicos e pertencem à memória comum da humanidade. Tanto é que houve inclusive um cronista que até o nome da parteira nomeou: Salomé, disse ele que se chamava a iluminada dona das mãos que o aparou; e que esta profetizou naquela santa hora, louvando a si mesma pela obra sacrossanta que realizara, obstetra que foi do Salvador do Mundo. Tudo são produtos que a mente elabora, com maior ou menor imaginação, e que depois são postos em linguagem, se transformando naquilo que nós chamamos de cultura humana. Seja como for que essas coisas aconteçam dentro da nossa cabeça, são verdades para quem acredita nelas e fantasias para quem não as consegue ver pelos mesmos óculos de quem as conta.
Dessa forma, não é difícil aceitar a ideia de que alguém tenha visto um anjo vestido com uma resplandecente túnica branca nas cercanias da cabana de José, dando conta aos pastores das redondezas sobre o marcante acontecimento. E não é estranho que os céus tenham se tornado um imenso palco, onde um coral de rechonchudos querubins – tal como se vê nas pinturas murais das nossas igrejas –, surge cantando as aleluias na forma exata como seria feito milhares de anos depois na comemoração dos natais do Salvador.
Verdadeiro é o que é entendido e certo é o que dá resultado. O mundo entendeu a visão e o resultado nós todos já sabemos qual foi. Essa é a visão fundamental e não insistiremos mais nela. Apenas como quem se dá ao trabalho de imaginar como se deu esse acontecimento extraordinário – porque aqui estamos escrevendo uma crônica com pretensões de romance –, queremos submeter aos olhos do mundo mais uma visão desse fato, lembrando que ela é apenas mais um exercício de imaginação. Como todas as outras que já foram escritas sobre esse tema, aliás.
“O ano é o quarto antes da morte de Herodes, o Grande, e o sexto antes de Copônius assumir o cargo de Prefeito da província da Judéia, Iduméia e Samaria, em substituição a Herodes Arquelau. Muita agitação, motins e conflitos sacodem a terra dos judeus. Os ânimos estão muito exaltados, pois o velho rei asmoneu anda muito nervoso com as rebeliões que seus inquietos súditos judeus não se cansam de promover.
Alheios a tudo isso, a menos de dez quilômetros da cidade santuário, os habitantes da pacata aldeia de Belém dormem tranquilos. Aquela é uma noite como todas as outras e a aurora já desponta no horizonte para anunciar, para breve, a chegada do sol. Uma tênue claridade cobre a mancha branca espalhada sobre a colina, que é a aldeia de Davi. No lado norte da aldeia há uma casinha branca, meio pendurada na franja de uma colina. O barranco foi cortado para servir de parede no fundo, de forma que ela parece mais ali ter sido incrustada do que propriamente construída. Seu formato é o de um cubo mal aparelhado, igual à muitas outras que por ali se veem. Uma redoma, sobressaindo-se do telhado, indica que seu proprietário não é dos mais ricos habitantes da povoação, mas também não é tão miserável que não possa dotar sua morada de alguns pequenos confortos. Uma chaminé lança fumaça nos ares, indicando que ali existe uma lareira, ou um fogão para aquecer seus moradores. Do lado de fora, um muro baixo, com uma cancela à guisa de portão, isola-a das demais casas da aldeia.
Neste momento ela destaca-se das outras apenas pela luz amarelada e bruxuleante de uma candeia que escapa, mortiça, pela pequena e única janela que há na frente da casa. Uma linda estrela, mais brilhante que todas as outras, parece estar parada no céu, justamente sobre a modesta casinha. É como se sua luz tivesse sido feita somente para ela. Um poeta diria que essa estrela é Vênus, a deusa do amor, que ali está para abençoar o fruto da sua atividade na vida dos homens; um soldado apostaria que é Marte, o deus da guerra, a presidir o evento que se desenrola dentro daquela casinha, pois o que ali se vê é a realização de uma esperança viril, há muito tempo acalentada.
No horizonte emoldurado por uma aurora raiada de tons alaranjados, pintados sobre um fundo amarelo-cinzento, eis que surge uma pequena cáfila, capitaneada por três personagens de porte real, que proporciona aos nossos olhos uma magnífica imagem. Eles atravessam a aldeia adormecida e chegam à porta da casinha, onde um pequeno grupo de pastores parece estar a guardar a entrada. Escutam o choro de um recém-nascido e entram. E em meio às cabras que balem, jumentos que zurram, vacas que mugem, o cacarejar das galinhas e o canto do galo – pois estamos nas primeiras horas da manhã e todas as famílias de Belém criam esses animais –, os três personagens, imponentes, impressionantes em suas ataviadas roupas, inclinam-se frente a um bercinho onde um menino está deitado. Tiram de suas canastras três lindas caixinhas de couro lavrado, contendo presentes de alto preço, que entregam à sua mãe.
Após as bênçãos protocolares e os cuidados rituais eles deixam a pequena casinha, ante os olhares atônitos dos poucos parentes e amigos presentes.”
Pobre e singela é a cena que descrevemos. Mas essa seria a nossa visão da estada dos três reis magos, que um dos cronistas oficiais disse terem passado visita ao recém-nascido filho de Maria. Pois de certo são eles os personagens que ele reportou terem vindo do Oriente para saudar o menino nessa manhã fundamental. E da mesma forma que ele foi sucinto na sua descrição, nós também não ousaremos ir mais longe com a nossa, pois uma imaginação dessas teria extrema dificuldade para explicar a razão de tais personagens se darem ao trabalho de vir de tão distantes paragens para saudar o Messias de Israel. Pois sendo os referidos potentados talvez egípcios, ou árabes, ou ainda persas, caldeus ou hindus, segundo a imaginação de quem se der ao trabalho de identificar-lhes as nacionali-dades (o que de ordinário já foi feito e até nomes lhes foram dados, já que Melchior, Gaspar e Baltazar houve quem disse que se chamavam), verifica-se que não é fácil entabular cerebrinas maquinações para justificar como semelhantes personagens pudessem ter qualquer interesse nesse assunto, que seria exclusividade dos filhos de Israel.
A não ser que judeus também fossem os dito cujos, pois deles a terra já estava cheia naquele tempo. Quem sabe pudéssemos reportar que os tais magos fossem reis de algumas das dez tribos perdidas de Israel? Se o fizéssemos não estaríamos a dizer disparates, pois desde os tempos em que aquele terrível Salmenazar, rei dos assírios, invadiu os territórios israelitas do norte e deportou todos os filhos de Abraão que por lá viviam, espalhando-os pelos quatro cantos desta nossa terra redonda, as dez tribos de Israel que formavam aquele reino andam perdidas. E de então muitas imaginações têm sido postas em prosa e verso para explicar por onde andam esses proscritos israelitas que nunca mais foram vistos. Algumas delas são, inclusive, bem bizarras, como aquela que diz que o planeta em que vivemos é oco, feitas de camadas de terra que se superpõem umas às outras, como as folhas de uma cebola, e que em uma dessas camadas serão encontradas, um dia, as dez tribos perdidas de Israel.
Mas não podemos deixar a imaginação voar muito alto, pois ela, como aquele Ìcaro das asas de cera, gosta de planar por lugares ignotos e perigosos. E de repente, sem que se perceba, ela aparece bordejando pelo mundo da lua, onde a razão, que não suporta viagens por esses lugares inóspitos e inseguros, nos abandona. E não há assunto melhor do que este para deixar nossa mente sem controle. O que a lógica do caso estaria a nos sugerir – se lógica fosse coisa que combinasse com imaginação –, é que o que aconteceu, de verdade, naquele sexto ano antes dos romanos começarem a governar diretamente os judeus, foi que o filho de Maria nasceu, não numa estrebaria, como dizem as lendas, mas na casa de José, em Belém, onde uma parteira chamada Salomé – esse nome, que lhe deu um daqueles cronistas tidos como apócrifos podemos confirmar que mal nenhum faz – o aparou. É um menino robusto, choroso, já com prenúncios da vasta cabeleira que viria a ostentar mais tarde, mas que nada tem de diferente de todas as crianças que nascem nessas regiões e no resto do mundo. Tem a pele rosada dos bebes recém-nascidos, enrugada, suja de sangue e secreções. Grita em alto e bom som quando lhe metem a tesoura afiada no cordão umbilical e o limpam e o envolvem em panos. Só depois, quando seus pequeninos lábios encontram os mornos seios da mãe é que ele se acalma e parece entender que de agora em diante inicia uma procura por si mesmo, procura essa, que chegada a bom termo, será uma porta aberta para o ideal longamente sonhado pelo ser humano.
Na hora certa voltaremos a falar desse menino que agora dorme profundamente em seu berço e não numa manjedoura, como se escreveu, pois não esqueçamos que José é carpinteiro, e em sua casa o espeto não seria de pau, como dizem ser na casa do ferreiro. Apenas à guisa de informação, diremos que a ele foi dado o nome de Ioshua em razão de uma combinação entre letras e números que um judeu-caldeu, cliente de José, fez para ele. Esse judeu da Caldéia disse ao carpinteiro que o número do menino, resultante dessa combinação – que, aliás, José nunca entendeu –, resultava em oitocentos e oitenta e oito, número mágico cuja soma dos algarismos é igual a vinte e quatro, número esse, por sua vez, perfeito, por que é sobre ele que se assentam os alicerces do universo.
– Como se sabe – disse o caldeu a José, como se essas coisas fossem de domínio público –, o número do Nome do Senhor é quinhentos e quarenta e três. Sendo Ele verso e reverso de todas as coisas, seu número também se lê trezentos e quarenta e cinco. Se somarmos as duas sequências de algarismos, teremos oitocentos e oitenta e oito. Esse valor corresponde ao nome Joshua ou Ioshua, como se escreve hoje nessa sua língua aramaica – , completou o informante. – É mesmo? Que interessante – respondeu José, pedindo licença para ir buscar um pouco de água, mas na verdade, querendo mesmo é fugir dessa conversa. Se ele desse ouvido à arenga do caldeu, certamente o escutaria justificar essa informação com a estranha conversa que Moisés teve com Jeová no Monte Sinai. Naquela ocasião, Moisés pediu-Lhe para ver o rosto e Ele lhe disse que só poderia ser visto pelas costas, pois a glória da sua face nenhum olho humano poderia suportar. Se fosse um pouquinho mais curioso e perguntasse o que isso significa, o caldeu lhe diria que Deus é verso e inverso, o quer dizer que Ele é espírito por dentro e matéria por fora. Destarte, enquanto esta última face pode ser mostrada ao olho humano, a primeira só pode ser contemplada pelos olhos do espírito. Assim, o universo material nada mais é que os costados da Divindade, ou o seu lado de fora, se assim quisermos entender. E por isso também é que o seu número é o mesmo da frente para trás e de trás para frente. E também entenderia o fascínio que o número doze exerce sobre o espírito dos judeus, pois essa é a soma que se obtém dos algarismos que formam o número quinhentos e quarenta e três, que, por sua vez, também equivale às combinações que se pode fazer com as letras do Nome de Jeová, que na língua hebraica se grafa IHVH. Daí que doze são as tribos de Israel, doze foram os seus juízes, doze os seus profetas maiores e doze os menores, doze os livros que relatam a história dos hebreus até a conquista da terra de Canaã, doze os livros chamados sapienciais, doze as eras ou ciclos vividos em cada período. Razão pela qual também foram doze os apóstolos que o filho de Maria reuniu para dar nascimento à Irmandade que ele fundou.
Estranhezas à parte, já que José não era muito dado a elas, resultou que o carpinteiro gostou do nome, não fosse ele uma graça muito comum entre o seu próprio povo, tendo ademais, ele próprio, muitos antepassados seus assim nomeados. Afora isso, nada mais que se possa pôr na conta de bizarro cercou o nascimento do filho da jovem Maria. Tudo ocorreu de acordo com os usos e costumes da terra, sem registros de fenômenos naturais ou sobrenaturais, como tempestades e relâmpagos riscando os céus, ou corais celestes entoando canções que só alguns milhares de anos depois Handel, Bach, Gounod e outros compositores iriam escrever. Trombetas, se as houve, seriam as dos soldados betusianos anunciando a alvorada no Templo de Jerusalém, mas estas não se poderiam ouvir em Belém, a mais de dez quilômetros de distância. Quem sabe as flautas dos pastores, reunindo os rebanhos para o pasto diário, estas sim, tocadas nas proximidades, tivessem sido ouvidas e tomadas por coro angelical, pois tais instrumentos, naquele e em todos os dias que já amanheceram em Belém, costumavam ser soprados por aqueles campos.