NO CIRCUITO DO INFERNO ASTRAL
“Yo no creo en brujas, pero que las hay, las hay”
Tinha dias que achava até divertidos, sair e entrar na muvuca das ruas. Uma vez, caminhando na multidão do ir e vir, encontrou uma mulher reclamando, pois, ambas espremidas entre pessoas sem a menor civilidade. Era o salve-se quem puder. Do nosso lado direito, no estilo “casal vinte” andando lentamente, sem soltar as mãos, como se a rua inteira fosse deles. Do nosso lado esquerdo, um garoto corria desembestado, brincando de se desviar dos transeuntes. Uma rotina que não se alterou, nem mesmo nos comentários dos trabalhadores de rua, depois que na noite anterior escutamos pela TV,uns estarrecidos e outros indiferentes, o caso de um anestesista no Rio, sedando e estuprando uma gestante submetida à uma cirurgia de cesariana. Esse caso não era mais um episódio de um maníaco sexual, mas uma situação-limite constatando a nossa distância da civilização, e a proximidade do final dos tempos. Um cenário escatológico em seu duplo significado.
Esse era o contexto que ressaltava o pesadelo que invadiu a vida de Samira. Se aventurou sozinha, a comprar um Smart Phone, sem ter nenhuma experiência com esses aparelhos. Uma atitude ingênua que ignorou o desrespeito aos direitos, apesar de por aqui vigorar o Código dos Consumidores. Outro deslize foi sair das alternativas propostas pelas Operadoras de Telefonia e optar pela compra do aparelho nas lojas de eletroeletrônica. Nem mesmo pensou em comprar em uma loja da Marca, pois seria mais apropriado. Pesquisou marcas e preços, mas por seu despreparo acabou sendo vítima dos estereótipos sobre a mulher, aturando a má vontade dos “peritos” em tecnologia de ponta. Mesmo sem habilitação dava para perceber a malandragem no trato com o consumidor, as falsas promessas de ajuda para manusear a máquina, que cessaram no momento de sua aquisição. Nem mesmo fizeram o registro do CHIP na operadora escolhida. Esta foi a primeira batalha.
A segunda batalha foi quando teve de se deslocar para a Operadora. O vendedor mais qualificado e gentil olhou o celular para cadastrar e observou que faltava uma peça, o SLOT, que faz o encaixe do CHIP no aparelho. Quando se abriu a embalagem era obrigatório examinar se o produto estava perfeito. Por que deixou de notar a falta da peça? Ou era despreparado, desatento ou agiu de má fé? Teria de ter trocado o aparelho de imediato e acabaria o problema. Depois de sete dias de idas e vindas sendo enrolada pelo vendedor sem ética e cheio de esperteza, mais essa?
Voltou à loja eletroeletrônica para reclamar com o gerente. Conta o sucedido, e o chefe surpreso com a irresponsabilidade de seu empregado diz não ser possível que ele não tenha notado a falta do SLOT. Chega a insinuar que deve ter sido o técnico da Operadora. Mesmo assim recuou e disse que tinha uma pecinha usada, mas em bom estado, que por acaso se encaixava no aparelho. O que realmente aconteceu? Será que vendem produtos sucateados como se fossem novos? Caso não resolvesse o problema faria a denúncia na Ouvidoria. Mas não foi preciso. Problema resolvido. Era o que pensava. Porém, a sua via crucis ainda ia demorar para chegar a bom termo. Como dispunha de um computador de mesa, com ponto de Internet, telefonou para saber a sua senha e lhe disseram que seu Modem era antigo e para ter acesso ao WI-FI teria de trocá-lo. Estava cansada de dar murro em ponta de faca. Decidiu que ficaria algum tempo treinando a parte digital e usando só o telefone e as mensagens de texto.
A partir deste momento passou a tocar no celular e sentiu as suas mãos desajeitadas e pesadas, acostumadas a digitar no teclado, a errar mais que acertar no sistema digital. Neste momento sentiu que estava envolvida no “circuito do inferno astral”, uma linguagem figurada de energia negativa em cadeia. Ela era cerebral, mas muito intuitiva, supersticiosa e com certa mediunidade. Não se ligava às crenças, mas tinha certeza da força energética da natureza. Procurava se informar sobre as seitas esotéricas orientais e sobre física quântica. Foi por aí que começou a raciocinar diante de tantos erros de sua parte e a sucessão de falhas com o aparelho. De tanto tocar no painel do “telefone inteligente”, desconfigurou a máquina que ficou sem SOM. Voltou à romaria de porta em porta procurando pessoas habilitadas para configurar. Acabou encontrando um consultor da Marca que fez o SOM voltar, mas em troca tudo escureceu como se estivesse mesmo com defeito. Saindo da Operadora para levar à Autorizada da Marca, pronta para acatar o “Guru”, como são chamados pelos funcionários, a máquina voltou a funcionar.
Exausta desistiu de seus objetivos e voltou para casa, mas vê em seu escaninho, a fatura de outra Operadora de Telefonia Fixa. O total a pagar era o dobro do valor de seu contrato. Mais uma trambicagem, que campeia o sistema de telecomunicação brasileiro depois de sua privatização. Ela observou que só tinha pontos de partida e não achava o ponto de chegada. Ou por outra não chegava a lugar algum. Para dar uma segurada no stress e na desesperança deu uma trégua, e aguardou a volta do equilíbrio para ver se chegava a um novo patamar da situação. Iria dar tempo ao tempo, e voltaria pisando bem devagar. Tinha de afastar a urucubaca.
A pausa para refletir e recuperar energia foi o momento que tirou para entender de Inteligência Artificial ( AI) e noções de Machine Learning. Sempre teve posição crítica sobre o tema visto como um mecanismo poderoso de controle social. Alguns analistas apontavam para o risco da perda de liberdade. Se, já vivíamos com liberdade controlada, imagina só com o poder das máquinas inteligentes? Entre as posições críticas ao avanço da automação e a ênfase na cibernética foi alterando a sua filosofia de vida e acabou optando pelos entusiastas das ideias da época. O seu lado supersticioso e intuitivo foi acionado, pois tinha certeza que a” energia negativa” foi uma das causas de travamento do celular. Lembrou-se de reler seu Mapa Astral que tratava do planeta que era o seu guia, Plutão, o Anjo Rebelde que protegia pessoas estranhas, diferentes, que iam ter um papel na transformação do mundo. No futuro iria “remeter les jours” e seu intelecto se abriria para a compreensão do inconsciente. Teria uma renovação de vida.
Com esse background, armou-se de coragem e enfrentou sua terceira batalha. Desistiu dos técnicos, especialistas e gurus e com estudos e novos equipamentos passou a conviver com a máquina. Entrou nela.
Por esse período, chamou a atenção da vizinhança pela facilidade de tirar dúvidas e manipular seu Smart Phone. Além do novo talento adquirido as pessoas notavam sua atitude como se estivesse lidando com magia. Levou o apelido de “Bruxa do Cosme Velho”. Ela ficou orgulhosa ao ser associada a Machado de Assis. Veio à sua mente o provérbio espanhol “Yo no creo em brujas...” focando a mudança de pessoas comuns em seres encantados. A partir deste momento sua fama ganhou o país e o mundo.
Ela atingiu o ápice da interação maquinica, que para as grandes Corporações era fundamental para sustentar seus negócios e os lucros. A bruxa adquiriu fama, pois conseguiu derrubar a certeza do quem é quem. Quem domina e quem é dominado? Este desbloqueio aumentou o fascínio de todos pela alta tecnologia, permitindo ao poder de Estado eliminar sem resistência o excesso de população., provocado pela entrada massiva das máquinas nos espaços do trabalho. Quem mais precisaria do homem se as máquinas se tornaram tão fáceis de manipular?
O novo entrosamento eletrônico digital, tornou o seu manuseio uma banalidade, e fez com que seu método fosse cobiçado pelo Vale do Silício (Califórnia), depois que souberam que “a bruxa do Cosme Velho” começou a lidar com a robótica. Esta experiência permitiu a troca imediata de cães e gatos por robôs, que passaram a ser a companhia favorita das crianças e idosos nas ruas e em casa. Assim economizavam em rações, veterinários, adestramentos e dispensavam até as babás e cuidadoras.
Depois de ganhar os holofotes da mídia e o reconhecimento mundial ela desapareceu. Correu o boato que foi cooptada pelo Imperialismo norte-americano e esteja assessorando os Think Tank. Mas pode ser que tenha sido integrada como consultora nos Survival Condos, abrigos para o fim do mundo construídos pelo idealizador Larry Hall no Kansas para o convívio dos super ricos e sua rotina de bons vivants. Até agora não sabemos se ela conseguiu sair do circuito do Inferno e entrou de bom astral para o Paraíso.