Rixas, sons e pururuca
- Podia sair das redes sociais e vir me ajudar com as verduras. As dezenove temos de abrir o restaurante. Preciso lembrar?
- Calma mano! Só dei uma paradinha para responder um questionamento nas publicidades do perfil do restaurante nas redes. Sabe que essa é minha área.
- Sei também que essa é a desculpa perfeita. Já chega o Heitor que nunca podemos contar.
Cícero conhece o tom de voz do irmão e percebe que o melhor é não discutir nem argumentar com Prático neste momento. Temperamental e dominador sempre foram as característica desse seu parceiro inseparável. Sabia, porém, que era sabidamente promissor confiar nele e seguir suas recomendações.
- Nosso irmão saiu cedo hoje...
- Não me fale nessa criatura. Meu único irmão é tu. Desde que viemos para Porto Alegre que ele só apronta. Atraiu aquela criatura Monte de Pelos para cá. E agora ainda me passa a fazer o papel de cantorzinho para ganhar uns trocados no cabaré da criatura. Nosso inimigo. Carniceiro de suínos.
- Nunca lhe demos oportunidade de mostrar sua arte...
- Qual arte. Falta de vontade de pegar no pesado. Sinto lhe falar. Sempre foi vagabundo.
Tenta desesperadamente encontrar uma virada de assunto que venha a amenizar o clima. Infelizmente a figura que atravessa sorrateiramente a entrada da despensa não promete nada de positivo. Apesar de todo histórico e principalmente sabendo da grande implicância do Prático o velho e matreiro Lobo Mau adora atravessar a movimentada avenida e entrar no restaurante dos vizinhos sem maiores cerimônias.
- Boa tarde vizinhos. Tem notícias do meu menestrel?
Pensa que Prático vai lhe saltar ao pescoço. Mas ele sabe quando tem de manter um mínimo de civilidade. Tenta intervir para amenizar e despachar logo o enxerido.
- Sabemos que ele está com vocês. Vira o disco.
- Um grande artista. Sou bom em descobrir talentos. Mas ele está muito atrasado para a passagem de som que pediu para fazer esta tarde.
Apesar de toda raiva e indignação sente no semblante do velho parceiro uma grande carga de preocupação.
- Saiu cedo. Madrugou. Se não está enfurnado com sua sucia de carnívoros eu não sei.
- Celular dele sempre desligado. Espero que a noite ele compareça para a apresentação. Senão eu realmente sirvo ele no jantar de amanhã. E ainda convido vocês. Até mais!
Saiu rápido.
Sem palavras trocamos alguns olhares e começamos a tentar algum contato com nosso extraviado mor.
Nada deu certo. Celular fora de área, redes sociais off line o dia todo e alguns amigos dele que conhecíamos não nos revelaram nada sobre um possível paradeiro.
Tivemos de abrir o restaurante e trabalhar servindo os clientes numa noite movimentada.
Nem bem o último cliente ultrapassou a saída de nosso estabelecimento um Prático de cenho franzido e demonstrando algum abatimento me puxa para atravessarmos a rua. Até mesmo pelas apresentações musicais o restaurante do Lobo sempre fecha muito após o nosso. Sigo-o adentrando o estabelecimento com poucos clientes e som mecânico através de um Dj. No caixa um Lobo com ares de sono e esgotamento.
Já adianta de longe:
- Não veio. Esperei o quanto pude. O cara não sabe mesmo ser profissional. Que bah! Eu apostava muito em seu talento.
Hesitamos um pouco. Olhamos desconfiados para todos os cantos e depois saímos.
Vamos para a garagem, moramos contíguo ao restaurante, e Prático faz a velharia funcionar.
Saímos com o Ford 29, relíquia que deveria ficar em museu, mas, que meu irmão teima em manter como único automóvel da família.
Rodamos a esmo uma cidade que ainda pouco conhecemos, apesar de por aqui já estarmos a mais de dez anos, pois vivemos enfurnados entre as verduras de nosso restaurante vegano.
Gastamos combustível e aumentamos a tensão. Na Avenida Farrapos a coisa acontece menos ruim do que o imaginado. Para os travestis, garotas de programa e moradores de rua nós somos só mais uma aberração.
Só não gostam de falar muito. Menos ainda de dar informações.
Uma transexual disse conhecer Heitor. Mas que não o via a mais de anos.
- Aquele tal de Lobo já é mais manjado. As vezes pinta por aqui de tubo rosa e peruca loira. Mas força demais a maquiagem e não se equilibra bem no salto alto. Não faz muito sucesso. Exótico demais.
A preocupação com o nosso querido não permitiu processar e fazer, naquele momento, uso adequado desta informação.
Quase ao amanhecer vamos para a delegacia mais próxima ao restaurante para registrar o desaparecimento.
Um funcionário sonolento faz um registro onde temos de repetir e corrigir informações várias vezes para possuirmos um Boletim de Ocorrência em termos de nossa preocupação. Será passado ao delegado e aos investigadores. Qualquer notícia nos ligavam.
Chegamos nas salas ao fundo do restaurante as quais adaptamos como residência, e, em silêncio, sentamos cada um em um sofá manuseado o celular no embaraço de não saber muito o que falar. Ao final foi Prático que quebrou o silêncio. Sentou ao meu lado, me abraçou com força e começou a falar. Relembrou histórias. Toda nossa trajetória até chegar nesse momento foram revividas. Sabia que ele necessitava ser ouvido. Se não falasse iria explodir. Quis se desculpar por, as vezes, ser excessivamente duro:
- Como irmão mais velho eu me sinto responsável. Você sabe. Saímos de casa cedo. Nem bem conhecemos nosso pai. O assassinato dele foi somente o primeiro trauma. Nossa mãe também se foi logo após sairmos para morar sozinho. Sempre me senti um pouco responsável.
- Tu sempre deu o melhor para a gente. Estamos juntos.
Nos abraçamos e assim ficamos por longo tempo. Buscamos descansar um pouco. Acabamos dormindo ali mesmo.
Acordamos com o celular do Prático enlouquecido de tanto tocar. Delegacia. Meu corpo estava moído pela má posição a noite toda no sofá. Mas nem deu tempo de reclamar. Vi meu irmão ficar branco. Gritar:
- Não, não pode ser!
Começou a chorar.
Ouviu ainda alguma coisa e falou de volta com voz tão embargada que não consegui decifrar nada. Imagina a pessoa do outro lado da linha.
Chorando também eu o abracei e esperei até ele poder falar.
Havia um corpo decapitado cabeça muito semelhante ao nosso padrão corporal totalmente carbonizado e destroçado. O corpo e a referida cabeça queimados dentro de um carro. Numas vielas da vila Cruzeiro. Mas tínhamos de fornecer matéria para um DNA. Queriam que fossemos ao local. Embora fosse praticamente impossível um reconhecimento do corpo.
Uma viatura passou e foi nos levando para logradouros que nem sonhávamos existir.
Neblina e mau cheiro. Terreno baldio. Muito lixo. Poucos restos dentro de um carro carbonizado.
Difícil olhar aquela mistura de ossos e cinza. Um brilho. O agente retira um cordão dourado estilo "funk ostentação" com um enorme H.
- Era dele!
Nos abraçamos novamente vivendo os piores instantes de nossa existência.
- Só pode ter sido aquele lobo desgraçado.
Prático, em meio a dor, externa todo seu ressentimento com o eterno desafeto. Eu não achava que fosse tão simples assim, mas, achei melhor naquele momento apenas me dedicar a dar apoio à meu irmão.
- Pode deixar. Nunca fui muito com as fuças daquele monstrengo. Vou mandar que o levem até a delegacia e ele vai "cantar" tudinho. Há se vai!
Queríamos todos justiça para o caso de meu irmão. E somos muito queridos na cidade. O Lobo Mau foi conduzido aquele mesmo dia para a delegacia mais perto de nossos estabelecimentos.
No dia seguinte o restaurante do Lobo não abriu. Alguns funcionários andaram pelo estabelecimento dele e nos olhavam com raiva e indignação.
Mais um dia e fomos chamados à delegacia.
- Demorou um pouco mas arrancamos uma confissão completa.
- Ele assumiu? Entregou os capangas?
- Disse que fez tudo sozinho. Depois reconheceu que teve um capanga. Mas não soltou o nome. Ainda não. Paramos de "trabalhar ele" para evitar que "cancelássemos seu CPF". Os funcionários dele tentaram dar álibi. Mas tiveram de reconhecer que ele se ausentou por algum tempo. Estaria no escritório telefonando! Sozinho! Mas foi uma trabalheira mesmo costurar todas as pontas.
- ...?
- Importante que estamos fazendo justiça. Querem dar uma espiada no sujeito?
Deixei o mano interagir com o delegado. Este nos levou até uma porta onde, por meio de um vidro espacial pudemos espiar a sala de interrogatório.
Meu irmão espiou primeiro. Senti que algo lhe abalava. Espiei.
Não o reconheci logo de primeira vista. Hematomas, dentes quebrados, cabelo e pelos arrancados a força em várias regiões do corpo. Olhar sem rumo e abobalhado.
Saímos daquele lugar apressadamente logo após coleta de material para exame de DNA que confirmaria o corpo encontrado ser de nosso irmão.
Uma grande angústia, maior ainda do que a perda de nosso irmão, caiu sobre nós. A "justiça" estava sendo feita. Mas a que preço? Não ousávamos comentar sobre o que tínhamos visto.
Intimamente nos dizíamos que, apesar do tratamento brutal, sendo o Lobo Mau culpado, todo o transcorrido fora necessário para que este não escapasse impune.
Não nos passava pela cabeça algo diferente de um assassinato de nosso familiar pelo nosso eterno rival.
Notamos que a rede social de troca de mensagens de nosso irmão continuava sendo visualizada. Procuramos novamente o delegado. Dessa vez junto conosco foi um amigo advogado.
Um pedido de grampo e quebra de sigilo daquela linha foi recomendado. Provavelmente o aparelho estaria com o cúmplice do assassino. Mas isso levaria algum tempo. Alguns dias pelo menos.
Na tensão pelo resultado do DNA, por podermos proceder o enterro digno dos restos mortais de Heitor e pelo grampo e sigilo do celular nós abandonamos e relaxamos muito o atendimento no restaurante.
Temia até que fossemos a falência. Poucos clientes restavam. Prático era o mestre cuca e não tinha mais nenhum ânimo para seus pratos especiais.
Até aquela noite de sexta. Vinte duas horas e nenhum cliente.
- Poucos dias se passaram. Essa desolação. A morte é pouco para aquele canalha.
- Pois é! Vamos fechar por hoje.
- Ou para sempre!
Ia encontrar algo para tentar um mínimo de motivação. Difícil sem uma parte de nós.
Um barulho na porta. Alguém entrava. Da cozinha corremos para ver se era um cliente ou apenas um desavisado em busca de informações.
- Ei manos! Ninguém mais trabalha nesta taverna? Parece um velório.
Paramos e nos olhamos assombrados. Não era possível que alguém estivesse de brincadeira.
Violão a tiracolo ele surgiu invadindo a cozinha e nos quase o sufocamos de tantos abraços.
- Ei manos, calma, até tu Prático, que houve? Desmunhecaram?
- Tu não morreu? E aquele corpo decapitado? O delegado? O Lobo Mau? O colar com o H?
- Me roubaram o colar. Lobo Mau deve estar mesmo querendo minha pele. Faltei semanas de contrato. Mas que história de morte. Eu? Como? Quando? Morri e não me avisaram?
- Pandego. Por onde andavas.
- No interior do estado. Num sítio em Santa Rosa. Para pegar sinal de celular tinha de subir em um morro. Tranquilo. Mas não aguentei muito. Saudades de vocês. Desculpas se causei transtorno. Sabe que amo vocês.
Abrimos uma garrafa de vinho e fomos noite adentro.
Madrugada e mais algumas garrafas.
Antes de ir para a cama fomos, "meio altos", para a delegacia noticiar o equívoco.
Delegado quase desmaiou de ver o “assassinado” caminhando.
Depois quis por a culpa para nosso lado.
Nem ouvimos toda sua cantilena.
Saímos deixando contato de nosso amigo advogado.
Soubemos que o Lobo foi solto. Veio tomar satisfações. Como pessoas honradas reconhecemos nossa parcela de culpa. Prático concordou em pagarmos a ele um valor de indenização. O dinheiro fez voltar o brilho aos olhos do velho lobo.
O delegado foi transferido.
Heitor agora se apresenta em nosso restaurante. Palco construído especialmente para seu som.