O vulto furtador

Fui jornalista por vinte anos. Agora sou policial há quinze. Faço parte do Departamento de Vultos. Minha carreira jornalística foi centrada na reportagem policial. Eu estava tão enfiado na atividade policial, como jornalista, que logo estava falando, agindo e fodendo como um tira, sem perceber. Cheguei a fazer faculdade de jornalismo por dois semestres. Por isso li John Hohenberg, jornalista e professor. O desgraçado tinha razão quando disse que o repórter policial “era um rei dentro de seu próprio mundo. Geralmente vestia-se como policial. Falava como tira. E alguns chegaram a tornar-se policiais”. Ridiculamente eu ia fantasiado de polícia para a Redação, repetia e escrevia a frase “vagabundo a menos” toda hora. A princípio fui visto como uma figura folclórica. Alguns pensaram até que enlouqueci. Mas quando comecei a agredir pretos, sem motivo, dentro do jornal, aí a porra ficou séria. O editor me chamou e disse “você não serve mais como jornalista, é um policial informal. Saia daqui antes que atire em alguém e vai fazer um concurso”. Fiz, passei e virei policial.

Comecei investigando tráfico de drogas. Fizemos megaoperações em becos imundos. Lembro que apreendemos, de uma só vez, 50 gramas de maconha. Um recorde! Logo o trabalho ficou entediante. Quando surgiu a oportunidade para mudar de departamento, mudei. E aqui estou eu. Departamento de Vultos! O mais recente caso é instigante: um vulto anda perturbando uma farmácia - um empreendimento recente.

Logo na primeira semana de funcionamento, funcionários começaram a ver uma figura cândida, mas de aparência pouco nítida, porém denotando melancolia. Aparecia durante a noite. Na primeira, foi até a estante de gases e furtou uma atadura. Não dava para perceber direito a sua aparência em detalhes, parecia ser um homem. Tentava tapar algum ferimento.

Noites depois, pegou água destilada. Ou seja, água usada para enxaguar vidraria. Parece que molhou o suposto ferimento. De forma abrupta, largou o frasco, que quebrou no chão, mas antes de sair, furtou outras ataduras e gases.

A gota d’água foi quando a Gerente responsável pelo estabelecimento flagrou o vulto cândido pegando a água da torneira, dentro do banheiro feminino. Quando a viu, saiu bruscamente. Foi então que acionaram o Departamento de Vultos. Fui designado para o caso. O Departamento foi fundado nos anos 1950, para especializar a polícia na investigação de crimes cometidos por vultos - pessoas mortas, mas que não ficam em paz, até que exigências sejam cumpridas. Diferentemente da polícia repressiva, um policial especializado em lidar com vultos precisa ter uma habilidade diplomática, saber negociar com os vultos, e outras partes precisam ser envolvidas para que o acordo seja feito. Não dá para atirar, torturar, tampouco prender vultos. Eles só podem ser contidos quando se satisfazem.

Quando eu era criança, vi um vulto. Lembro que dormia sozinho no quarto e via uma sombra preta movimentando-se de um lado para o outro. Também ficava me espiando da porta do quarto. Lembro que olhava e lá estava a cabeça dele me olhando. Comentava isso com meus pais e eles diziam que era minha imaginação. Até que minha mãe começou a ver. Não demorou para que meu pai também começasse a ver. Então chamaram a polícia especializada em vultos. Na época ainda não havia a tecnologia que permitia enxergar a figura nitidamente, tirando assim o seu caráter de vulto. Os “homens” tinham que improvisar para chamá-lo para a conversa. Lembro que eles observaram que meus brinquedos estavam sendo mexidos pelo vulto. Concluíram que se tratava de uma criança. Trouxeram mais brinquedos e cruzaram a informação com relatórios relativamente recentes de crimes da região. Quantas crianças haviam sido mortas por ali e como ocorreram essas mortes, perguntavam-se os policiais. Descobriram que uma criança de oito anos foi assassinada pelo próprio pai, que a atingiu na cabeça com um porrete. O sujeito tinha problemas mentais e estava furioso porque a criança estava se divertindo com os brinquedos. O homem tinha morrido, mas o vulto estava incomodado com a presença de crianças ali naquele prédio onde morava. Eu era a única criança por ali. Se morasse outra, o vulto ia perturbar a família dela também. Fizemos um acordo, envolvendo também o dono do prédio que determinou que só poderia morar ali pessoas adultas. Nos mudamos e o vulto parou de perturbar o local para sempre.

Fomos até a farmácia. Agora havia uma tecnologia que permitia observar em detalhes a aparência do vulto. Flagrei o momento em que o vulto furtava mais ataduras e gases. Usei do óculos especial e consegui notar que o vulto era um homem velho e ele tinha um ferimento na parte do abdômen, parecia uma perfuração. O legista que estava comigo confirmou a tese. O vulto parece ser de uma pessoa morta por um ferimento causado por algo pontiagudo, talvez uma faca ou sei lá o quê. Voltamos ao departamento. Agora precisávamos descobrir se havia algum relato de homem morto por ferimento no abdômen, checar fotos, nomes etc. Passamos horas e não descobrimos nada. Não havia relatos recentes sobre gente morrendo de facada na barriga ou nem mesmo de tiro. Estranho. Na verdade, não havia casos assim há pelo menos dez anos. Será que olhamos direito?

Enquanto isso o vulto continuava a furtar gases e ataduras na farmácia. Tivemos que voltar e observá-lo de novo. E lá estávamos nós com os malditos óculos, olhando o maldito vulto. Dessa vez notamos as “roupas” com maior atenção e precisão. A aparência do vulto, vista em detalhes, era muito parecida com a aparência da pessoa quando estava viva. “Usava” a mesma roupa com que morreu ou foi morta. Os estudiosos de vultos ainda não deram uma explicação satisfatória para isso. De qualquer modo, o vulto usava de um terno, ele parecia estar adequado ao padrão de décadas atrás, não sabemos quando exatamente.

Por isso voltei à Redação do jornal onde trabalhei. Fui à editoria de Moda. O editor se chamava Luís Cláudio e ele não era uma bicha pernóstica, como eu pensava que era. Foi direto e lacônico, como um jornalista deve ser. Preconceito arrebentado com sucesso.

- É um terno provavelmente comprado na Ducal Roupas - disse ele, sem usar palavras complicadas.

- De que ano é?

- 1970 ou 72. Esse terno era muito famoso e popular na época. O Pelé foi garoto-propaganda.

- Muito obrigado!

- Ei, sei que você me achava uma bicha pernóstica.

- Quem te falou isso?

- Um rapaz que você deu um pescotapa.

- Alcagueta.

- A editoria de Moda está cheia de pessoas ignorantes e incultas. O sujeito lê Gilles Lipovetsky e acha que entende tudo. Mas tem vocabulário pobre. E é todo mundo hétero, rejeitado de editorias mais complicadas. Não sei de onde você tirou que por aqui só tem bicha pernóstica, quando na verdade é o contrário.

Ele me convenceu. Preconceito arrebentado com sucesso. Agora de volta ao trampo.

Vasculhamos registros sobre crimes naquele local. Notícias de jornal, boletins de ocorrência… Logo encontramos. Um homem havia sido morto com uma faca de combate. Perfurado no abdômen durante uma festa de grã-finos numa residência próxima da farmácia. O vulto não perturbou ninguém por ali por décadas, talvez porque ninguém tinha, até então, o que ele precisava: gases e ataduras. A farmácia foi inaugurada recentemente.

Ele nunca vai parar. Está sofrendo com dores da facada e tem sido assim por décadas. Uma tortura. O jeito seria tirar a farmácia dali, mas aí o negócio do dono será arruinado. O acordo foi: reservar uma cota de ataduras e gases, que serão deixadas próximas do local, do lado de fora. Assim, o vulto não precisará entrar na farmácia. Ademais, moradores resolveram colaborar para ajudar o vulto a aliviar seu sofrimento. A sociedade já aprendeu a conviver com esse tipo de coisa.

FIM