Pelo chifre do unicórnio!
— Mas que droga! Por que, de todas as criaturas fantásticas, eu tinha que ser justo uma javali, é sério! Logo eu, que tenho a graça interior, o charme e a personalidade de um unicórnio… — Java dizia, todas as vezes que se olhava no espelho, pequeno demais para ela.
— Talvez a Maga da vila dos Agoniados possa te ajudar com isso, querida… — Disse Sil, uma enorme sucuri alada, verde brilhante, melhor amiga de Java — Mas tem certeza que quer ter um chifre no meio da testa?
— No caso, eu dispensaria o chifre, é claro, mas seria o preço que teria que pagar para ser fabulosa! Mas, Sil, isso da Maga é só uma lenda… não é? — Disse, penteando a crina, cor de barro seco, tão enfadonha
— E como é que você acha que eu consegui minhas asas? Não nasci assim não, minha filha.
— Mentira! Existe mesmo uma Maga? Mas… você entrou na Vila dos Agoniados mesmo? Lá é tão assustador como dizem?
— Sim, existe. Claro que entrei,né. Muito aterrorizante, mas vale a pena! — Disse, abrindo e fechando as longas asas, como as dos anjos, só que em um tom vibrante de verde oliva.
— Você me leva até lá? — Disse, na pontinha dos cascos, tentando conter a ansiedade.
— De jeito nenhum. Você tem que ir sozinha. É uma jornada de autoconhecimento. Só encontrará a Maga depois de encontrar você mesma.
— Que papo besta é esse? Tá querendo virar autora de autoajuda?
— Nem morta! Só tô te dizendo o que disseram pra mim, e funcionou, então, não zombe.
—Tudo bem. Vila dos Agoniados aí vou eu! Agora ninguém me segura!
Java fechou sua loja de quadrinhos e colocou um aviso na porta: “Não sei quando abrirei novamente. Pode demorar”, desapontando todas as crianças da cidade, e partiu rumo à vila.
Precisou pegar três ônibus, um metrô, e no final, chamar um Uber, que quando soube que ela queria entrar na vila, cancelou a viagem. Teria que fazer o último percurso a pé.
Seus cascos já doíam. As unhas pintadas de rosa e roxo já estavam lascadas, mas Java ia falando, como um mantra, "minha essência é de unicórnio, eu mereço ser unicornio!", enquanto se misturava às pessoas e criaturas que voltavam cansadas para suas casas depois do trabalho.
Quando chegou aos pés da Vila dos Agoniados, entendeu o porquê do nome e da fama. Era um morro enorme e tortuoso, cheio de casas de papelão, madeira e pedaços de tijolo que se amontoavam morro acima. Lobisomens carregando metralhadoras guardavam a entrada. "Ótimo! E agora?"
— Oi, será que eu posso dar uma palavrinha com a Maga? — disse, piscando os olhinhos quase sem pestanas.
— O que você quer com ela? — respondeu o lobisomem.
— Sabe o que é, queria que ela me ajudasse a corrigir minha aparência… posso parecer uma javali, mas, por dentro, sou um unicórnio.
Java ficou chocada quando descobriu que os guinchos agudos que saíam da garganta dos lobos eram gargalhadas.
— O que foi? Nunca quiseram ser outra coisa? Sei muito bem que o sonho de todo lobisomem é ser vampiro!
Tarde demais Java percebeu que tinha falado a pior coisa do mundo. Nem deu tempo de gritar e espernear antes dos brutamontes peludos a segurarem pelos bracinhos finos e a arrastarem morro acima.
Agora estava perdida! Era prisioneira na vila, e não sabia como encontrar a Maga, esse era sem dúvidas o pior dia da sua vida.
Já estavam na metade do morro e todas as criaturas agoniadas da vila presenciaram sua marcha da vergonha. Eram criaturas estranhas, com uma aparência diferente e esquisita. Eles só balançavam a cabeça como um gesto de triste solidariedade.
Chegando no alto do morro, foi jogada dentro de um barraco e a porta foi trancada enquanto Java a esmurrava e gritava "me deixem sair".
— Não adianta, querida, eles já foram embora. Se acalme, venha tomar um cházinho.
Java parou de gritar e olhou para a moça que estava mexendo com uma colher de pau dentro de um caldeirão.
Olhou ao redor e notou que não era tão assustador quanto imaginava. O barraco era simples, mas aconchegante. O fogo crepitava e o cheiro do chá de ervas era acolhedor.
— Quem é você?
— Você veio até aqui para quê, querida?
— Vim falar com a Maga. Você a conhece, já a viu?
— Bem, eu a vejo todos os dias, quando olho no espelho.
Java ficou olhando a moça, que não devia ter chegado aos quarenta anos ainda. Vestia jeans e camiseta e tinha os cabelos amarrados em um rabo de cavalo.
— Não entendi… a Maga está no espelho, igual na história da Branca de Neve?
— Não, bobinha! Eu sou a Maga. Venha, sente-se aqui. Tome uma caneca de chá, você está precisando!
Passou uma caneca de alumínio fumegando para as patas de Java, enquanto a empurrava gentilmente até uma cadeira.
— Tem certeza? Você não parece uma Maga…
— E como uma Maga devia parecer?
— Não sei… imaginei uma velhinha, de cabelos brancos e armados, vestindo um manto comprido e colorido… sei lá… você parece tão comum. Sem ofensa.
— Não me ofendeu, querida. Gosto de subverter as expectativas que pairam sobre mim. Mas me diga, o que quer de mim?
— Ahh, eu quero que você, bem, a senhora, me transforme em um unicórnio! Eu nasci para ser um unicórnio. Minha essência é de unicórnio!
— Calma, querida, já entendi. Mas me diga, você já viu um unicórnio?
— Pessoalmente não…
— E como viu, então?
— Ué, na TV…
O som da risada da Maga encheu o barraco.
— Ah, querida, unicórnios não existem de verdade. São fantasias feitas para a TV. Não achou estranho nunca ter visto nenhum de verdade?
— Bem, eu achei que eram raros… Mas, mas…
— Outra coisa, querida, eu não transformo as pessoas em outras criaturas. Eu só as ajudo a encontrar e desenvolver o potencial escondido nelas.
— Mas a senhora deu asas para uma sucuri. A Sil, lembra dela? Ela é minha amiga.
— Lembro sim, mas ela continua sendo uma sucuri, só que agora ela pode voar de verdade, assim como sempre voou na imaginação.
— Mas, não estou entendendo. Eu sempre sonhei em ser um unicórnio. Não gosto de ser javali.
— Por que não gosta de ser javali?
— É um desperdício de estilo, eu me sinto tão colorida e nobre e rara, mas quando olho no espelho vejo só o marrom entediante e comum.
— Já percebi que você não considera o comum como uma qualidade… já pensou no porquê disso?
— Ah, ninguém gosta de ser comum, eu acho.. todo mundo quer se sentir especial. Não é?
— Não sei. Mesmo sendo comum, não sou como todo mundo.
— Mas mesmo parecendo comum, você é especial, você é uma Maga!
— Agora você está começando a entender… a aparência não significa nada. O que tem valor é a nossa essência. O que realmente somos.
— Mas eu sou um javali e não quero continuar sendo.
— Me conta, sem se basear na imagem do unicórnio, como você se vê por dentro?
— Ahh, é difícil dizer… colorida, charmosa, doce, criativa, cheia de vida, exuberante… acho que é isso.
— E de tudo isso, o que não condiz com a sua realidade?
— Humm, não sei… preciso pensar…
Java tomou um gole do chá que já havia esfriado um pouco. Pensou em sua vida, seus relacionamentos, sua loja de revistas em quadrinhos. Pensou em tudo o que havia realizado, fez um balanço sincero de si mesma.
— Acho que para eu ser como me imagino, só falta o colorido.
— Isso sim eu posso fazer por você, querida! Feche os olhos e imagine como seria perfeito ser você, mas com um toque de cor.
Java fechou os olhos e imaginou uma crina volumosa de três cores. Rosa, azul e lilás. Imaginou cascos naturalmente coloridos e um exuberante rabo sedoso nas mesmas três cores.
— Aí está, querida! Você está maravilhosa!
Java abriu os olhos e se deparou com cascos brilhantes e coloridos, foi correndo até o espelho e viu uma crina perfeita. Tudo exatamente como havia imaginado. Ainda era uma javali, mas era a javali mais bonita e especial do mundo!
— Sim, era assim mesmo que eu queria! Muito obrigada, Maga!
— Não foi nada, querida. Você já era especial por dentro, só precisava de uma forcinha para colocar para fora.
Depois de admirar suas novas cores, Java se despediu da Maga e agradeceu efusivamente. Estava louca para chegar em casa e mostrar seu novo eu para Sil.
Na descida, os antes agoniados, agora pareciam extasiados, cada um com um jeito comum de ser diferente e especial. Todos sorriam e aplaudiam sua descida da vitória.
Na entrada da vila, os lobisomens assoviaram ao vê-la passar.
— Ficou melhor que um unicórnio, heim!
Java jogou a crina colorida para o outro lado e piscou para eles.
— Desculpa por antes, amigos, eu não queria ofender com o negócio do vampiro…
— Não liga pra isso não, essa piada velha nunca perde a graça.
Se despediu dos novos amigos e se preparou para andar parte do caminho de volta, mas um dos lobisomens a chamou.
— Chama um Uber, eles não trazem ninguém, mas sempre vem buscar. — deu uma piscadela.
Típico! Ninguém quer te ajudar com o problema, mas todos querem usufruir dos benefícios.
Chegou em casa morta de cansaço, mas reluzente de felicidade! Não se conteve e ligou para Sil.
— Amiga, já cheguei! Você tem que vir me ver!
Assim que desligou o telefone, já ouviu o barulho das asas de Sil. Abriu a porta e a serpente pousou com elegância.
— Uau, amiga! Você está incrível! Estou aliviada, sabe, não queira que você mudasse muito, eu gostava de você exatamente como era. Agora só está mais estilosa, mas continua a mesma de sempre!
— Eu sei! A Maga é muito diferente do que eu imaginava, mas mesmo assim, ela é como deveria ser. Mágica!
— Assim como todos nós, querida!
No dia seguinte a pequena loja de quadrinhos estava aberta, fazendo a felicidade das crianças da cidade, e Java mandou instalar um espelho enorme no escritório e passava as horas vagas desembaraçando a longa e colorida crina. Estava feliz, principalmente por não ter um chifre no meio da testa, no final das contas.