Silêncio

Nas manhãs, geralmente, fazia um silêncio, satisfazendo as dúvidas, irritantemente, com semblantes ou sinais.

- Você me cansa, sabia?

Insistiu no calar, porém dessa vez não sabia mesmo o que responder, se concordava ou não; talvez não sentiu verdade no que ouviu. Quem se cansa, uma hora, quer descanso, então por que insistia em ficar consigo? Estava mentido? Era uma provocação? Estava tentando fazer sua voz sair com aquela injustiça? Não seria assim que ia conseguir. Ele que se conformasse em ouvir à noite. Permaneceu com o silêncio rígido, cerrou o semblante para mostrar que estava não só injuriado, mas também certo do que fazia.

- Se eu for embora e não voltar mais, você vai resolver falar para pedir que eu fique?

Acho que já percebeu a nova estratégia: faz um manancial de perguntas, inteligente que é, para ver se cai na armadilha e responde, mas não será dessa vez! Admite, apesar disso, que achou um tanto covarde essa apelação, não se brinca assim com os sentimentos alheios, ora. Dizer que irá embora por causa de um motivo tão bobo!

Daí ele resolveu descansar num galho firme e baixo, deitando o peito sobre e suspendendo o peso das pernas. Largou-se ao galho e balançou as mãos, entediado e cansado. Depois voltou o olhar, mas, fingindo desinteresse, logo fitou os fios loiros e passou a alisá-los, brincar com eles, fazer nós que logo se desfaziam.

Passou a observá-lo, deveria estar tramando algo, nunca se deve baixar a guarda quando ele, justamente ele, fica quieto assim. Nem se pode dizer que cansou, cansou de quê? Não fez nada além de tentar, muitas vezes, ouvir sua voz. Que sanha era essa, hein? Já sabe que à noite escutará, não tem razão nessa neura em ouvi-lo pela manhã. Só de mal, pensou, se calaria até quando a Lua aparecesse, para ver se aprendia. Falando na Lua, ela iria aparecer daqui a pouco, o Sol já começava a se derreter no horizonte. É, já decidiu! Naquela noite iria ficar mais calado que ficou durante o dia. Foi torturado com tanta perturbação há tantas e tantas horas, mas agora daria o troco!

- Você não vai falar mesmo? - até biquinho fez, descarado.

Virou o rosto.

Mas pensou melhor, será que não poderia perdoá-lo? Apesar de ser bem irritante quando quer, morria de pena dele. Tão sozinho. Na verdade só não era um completo solitário porque estava lá fazendo companhia. Disse que não sabe quem são os pais e, como se não bastasse, fugiu do orfanato há um ano. Disse que com essa idade as pessoas nem percebem sua presença no meio dos pequeninos, e olha que era novo, apesar de ser o mais velho de lá; veja só: 16 anos. Raros eram os que lá visitavam em busca de alguém para chamar de filho, mas foi dando azar, quando ainda era criança, de ser posto sempre no lado mais escondido e nunca foi escolhido. Quando cresceu, já era quase um funcionário de lá, varria, lavava, cuidava dos outros, mas continuava sem ter um olhar terno repousando sobre si. As crianças iam e ele continuava lá, com aquele lugar cada vez mais esvaziando, esvaziava o coração também. Preferiu sair daquilo quando percebeu que se dependesse dos outros morreria lá; sem falar na monitora... Bruxa, maníaca, indigesta... só com ele que era assim. E lembra bem, antes mesmo das rugas se acentuarem a megera já o tratava mal. Bem, todos, na verdade. Até os "colegas". Todo mundo olhava para ele com desprezo, deve ser por isso que preferiram "escondê-lo" no cantinho escuro. Mas tinha motivo para isso? O motivo, para bem rimar, era ridículo. Pelo que entendeu, quando foi crescendo, era que vinha do país vizinho, este estava em guerra na época que ainda era bebê, mas perderam e foram dominados. Conflito de etnias parecia ser a razão. Como o outro lado (que agora era só um) via aqueles como impuros, aproveitou a soberania militar para tomar o que tinham. Nisso foram sucumbindo, mas uma minoria resistiu. Ao que parece sua mãe, fugindo da miséria causada pela derrota de sua nação, deixou-o no tal orfanato. Lá ele foi acolhido e tudo, mas, quando começaram a crescer o cabelo e os olhos tomaram a real cor, de mel, foi que as coisas mudaram. Não era mais um lindo bebezinho nem nada disso, estava claro que fazia parte da imundície, da raça inferior. Por sorte elas tiveram um pingo de piedade e não o entregaram para o governo. Com o tempo, o Estado viu que não fazia mais sentido propagandear contra os antigos irmãos, já que eram tão minoria que não tinham poder nenhum e, principalmente, já tinham conseguido o que queriam: o território. Então cessou o programa de ódio estatal, as pessoas, aos poucos, foram amansando o ódio, porém a marginalização permanecia.

É, poderia perdoá-lo dessa vez. Não deixaria falando sozinho essa noite, mas, ainda assim, relutava em falar o que quer que fosse no dia.

De repente, um pedaço de pedra foi em direção ao seu rosto, o grito foi alto até demais.

- QUE SUSTO, DROGA!

- HA! EU DISSE QUE TE FARIA FALAR!

É, maldito! Não é que ele conseguiu? Por que foi baixar a guarda? Esteve aí pensando e pensando, ele aproveitou e pronto! Está feito, não há como voltar atrás. Atrás ele foi daquele safado, que corria, ria e se desviava das bicadas, mas a noite vem chegando, pirralho, quando ela chega a escuridão toma conta da praça, veremos se vai conseguir desviar quando esse corpo todo negro sumir na escuridão. Quero ver quem vai rir e quem vai gritar!

Rodrigo Hontojita
Enviado por Rodrigo Hontojita em 12/12/2021
Reeditado em 12/12/2021
Código do texto: T7405837
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