Tenha fé
Conto: Tenha Fé
Sarah Dayan chegou cedo à Universidade de Tel Aviv, como de costume. A professora e pesquisadora do “Departamento de Arqueologia Bíblica” dividia sua rotina entre o trabalho e os cuidados com o filho Samuel, em coma há três anos, em uma UTI montada em sua própria casa. Estava assim desde o acidente de carro, o mesmo acidente que levara seu amado Moshé, deixando-a viva e ilesa para contemplar a perda e o distanciamento daqueles a quem mais amava. Desde aquele evento, perdera sua fé. Hoje era uma mulher cética e determinada, que não se contentava com nada até provar serem fraudes ou mitos as passagens da Bíblia, ou a Torá para os judeus. Era uma cientista defensora da descrença, como tantos outros que opunham a ciência à fé. Diferentemente de seu antípoda no Departamento, o padre jesuíta Bruno Marchiori. Brasileiro de origem italiana, Bruno fizera carreira na Companhia de Jesus como estudioso, se especializando em arqueologia e exegese bíblica. Sem perder a sua objetividade de cientista, o padre via em cada achado arqueológico um testemunho do passado da Terra Santa, sinais de que sua fé estava no caminho certo. Isso perturbava sua colega, bem como a perturbava também o porte e o olhar doce daquele rapaz de trinta anos, sua mesma idade. Somente uma atração, um instinto; era um amor impossível. Ele fizera suas escolhas, seus votos religiosos, os quais o distanciavam de qualquer uma mulher. Já no seu caso, a vida fizera-lhe as escolhas de luto e recolhimento. Não havia ninguém mais “lá fora” olhando por ela. Tinha certeza que estava só.
Foi quando, naquele início de maio, chegou até o Departamento uma caixa e uma correspondência do ”Instituto de Paleontologia de Israel”, com sede em Haifa. Não era incomum a correspondência e trocas de materiais entre esses dois centros de estudo. Junto a sítios arqueológicos encontravam-se muitos restos de fauna, e o contrário também era corriqueiro: povoações humanas em meio a achados de antigos animais, sobretudo pré-históricas. O achado que chegara naquela manhã, porém, fugia a qualquer classificação possível, e já saberemos o porquê. O artefato provinha do interior de um grande peixe, medindo este mais de três metros de comprimento e tendo pesado possivelmente perto de uma tonelada, encontrado encravado em um banco de sal. Sua datação remontava mais ou menos ao tempo dos profetas do Antigo Testamento. Tendo singrado o Mar Mediterrâneo, acabou seus dias preso em um nível marítimo de pouca água, cujo predomínio de sal o desidratou e fossilizou. Mas eis a íntegra da correspondência enviada pelo “Instituto de Paleontologia”:
Prezados pesquisadores da Universidade de Tel Aviv:
Tendo encontrando um antigo e “enorme peixe” fossilizado, do tamanho de uma baleia no Mar Mediterrâneo, ainda de difícil classificação (seria um Cachalote? Um grande tubarão branco? Um tubarão-baleia?), resolvemos reportá-los de uma peça achada em seu ventre, encravado entre a parede estomacal e uma de suas costelas. Parece ser um rolo de pergaminho, que conservou-se graças a salinização e a ausência de umidade do ambiente. Está, porém, petrificado, tendo escrito um nome, como uma assinatura, em sua parte exterior. Como esse escrito está grafado em hebraico antigo, temos certeza que esse artefato os interessará em muito. Seguiremos em contato.
A correspondência foi lida conjuntamente por Sarah e pelo padre Bruno. Para alguém convicto de suas escolhas, o padre andava, secretamente, com seu pensamento desviado desde que conhecera Sarah, logo que esta ficara viúva e tivera o único filho, de dez anos, alienado de forma terrível da realidade e da vida. Aquela mulher pequena, de lindos cabelos pretos, seios imponentes e um olhar sedutoramente doce, mexia com suas convicções. A cada dia que acordava sentia-se feliz de estar na presença de Sarah, ouvir sua voz, sentir seu perfume. Permitia-se sentir esse desejo. O verbalizaria e renunciaria a ele na confissão de cada domingo, para depois retomá-lo com vontade redobrada no início de cada semana.
Perigosamente próximos, debruçaram-se os dois arqueólogos sobre o que parecia ser um rolo de pergaminho muito antigo, com cerca de vinte centímetros de comprimento por cinco de diâmetro, completamente endurecido. Para desenrolá-lo teriam que usar a técnica de Morgan: um mergulho em líquido ácido a fim de soltar a estrutura do sal ou, em alguns casos, da terra que a cobria. Após o “banho”, já com o pergaminho esticado, a fim de não correrem riscos o fotografariam e, após, o colocariam em outra solução que o conservaria íntegro e consistente até ser finalmente secado e colocado em contato com o ar. Era uma operação complexa que consumiria horas de trabalho. Sarah dirigiu-se a Bruno, perplexa, com respeito à inscrição na parte externa do pergaminho:
- Yonah?
Ao que respondeu, incrédulo, o padre:
- Ionas? Jonas?
Aquilo só podia ser uma piada ou uma brincadeira de mau gosto, acharam. Então, do ventre de um antigo peixe encontrado no Mar Mediterrâneo, vinha um pergaminho assinado com o nome do profeta do Antigo Testamento que, engolido por um "grande peixe” passara três dias e três noites em seu estômago? Começaram a recordar a história de Jonas e recorreram às escrituras e outros artigos para apreenderem todos os detalhes.
Jonas foi um profeta israelita da Tribo de Zebulão, filho de Amitai, natural Gete-Héfer. Profetizou durante o reinado de Jeroboão II, Rei de Israel Setentrional. Crê-se que tenha sido o escritor do livro bíblico que leva seu nome (em aproximadamente 800 a.C).
Fora convocado pelo “Deus de Israel” para ir a Nínive, capital da Assíria; sua missão era profetizar contra os assírios. Devido a sua crueldade e ao muito derramamento de sangue, aqueles iriam sofrer a ira Divina caso não se arrependessem dentro de quarenta dias. Os assírios eram famosos, por exemplo, por decapitar os povos vencidos, fazendo pirâmides com seus crânios. Crucificavam ou empalavam os prisioneiros, arrancavam seus olhos e os esfolavam vivos. Temendo pela sua vida, Jonas renunciaria ao chamado de Deus e fugiria rumo a Társis, no na Península Ibérica (na moderna região da Andaluzia), que situa-se a aproximadamente 3.500 km do porto de Jope (a moderna Tel Aviv).
Segundo o relato bíblico, durante a viagem aconteceu um violenta tempestade, que só acabou quando Jonas foi lançado ao mar. Engolido por um "grande peixe", o profeta passou três dias e três noites no seu estômago. Sentindo como se estivesse sepultado, arrependido, reconsiderou a sua decisão e foi “vomitado” pelo animal numa praia. Seguiu rumo a Nínive.
Segundo Jonas, os habitantes de Nínive (e povoados dependentes), mais dados à superstição e ao temor das divindades, teriam mostrado-se arrependidos de sua conduta sanguinária, fazendo jejum e vestidos de sacos sarapilheira. Jonas se mostrou desgostoso pela não destruição de Nínive e acabou sendo repreendido por Deus.
- Lembro-me dessa parte – falou Bruno. O Senhor fez crescer sobre Jonas uma árvore que lhe cobria de sombra no sol escaldante, mas fê-la perecer no dia seguinte. Jonas maldizeu a Deus.
- Certo – disse Sarah – conforme Jonas, 4:9-11: “Então perguntou Deus a Jonas: É razoável essa tua ira por causa da planta? Ele respondeu: É razoável a minha ira até a morte. Tornou o Senhor: Tens compaixão da planta que te não custou trabalho, a qual não fizeste crescer, que numa noite nasceu e numa noite pereceu; e não hei de eu ter compaixão da cidade de Nínive, em que há mais de cento e vinte mil pessoas, que não sabem discernir entre a mão direita e a mão esquerda, e também muitos animais?”
- Uma pitada do senso de humor judaico; Deus levanta o seu profeta e depois o dispensa de sua missão, recusando-se a destruir Nínive... Mas a história de Jonas traz um simbolismo usado no Novo Testamento para aludir à morte e a ressureissão de Cristo, lembra-te?
- Sim, conforme Mateus, 12:40-41 – tornou Sarah: “Porque assim como esteve Jonas três dias e três noites no ventre do grande peixe, assim o Filho do homem estará três dias e três noites no coração da terra. Ninivitas se levantarão no juízo com esta geração e a condenarão; porque se arrependeram com a pregação de Jonas. E eis aqui está quem é maior do que Jonas” (o Cristo).
- Sei o que vais dizer – começou Bruno, mas lembra-te que dia é hoje?
- Como poderia esquecer? Faz exatamente três anos do acidente. Da morte de Moshé, do coma de Samuel...
- Sim, e nesse dia recebes um achado arqueológico que confirma uma história das escrituras que antes pensávamos ser somente uma alegoria... Não a consideras um sinal? Justamente hoje?
- Bruno, voltas de novo com teus sinais... Se existisse um Deus eu não teria perdido meu marido de forma tão brutal nem meu filho estaria vegetativo...
- Quem sabe não é um anúncio de um novo ciclo, de um novo começo? Há coisas pelas quais passamos na vida que não tem explicação, mas Deus sempre nos acena com um novo recomeço...
- Me tocas com tua fé. Queria tanto tê-la para mim, ao invés de só contemplar o nada...
Pensou secretamente: queria ter sua fé, queria ter sua alma e seu corpo. Desde a morte de Moshé, o padre Bruno era o primeiro homem a despertar aquele desejo que julgara estar para sempre sepultado. Talvez por ser um homem proibido? Talvez...
De posse dos instrumentos e componentes químicos necessários, os dois arqueólogos começaram a processar o pergaminho com a técnica de Morgan. Só conseguiriam abrí-lo após pelo menos seis horas no banho de solução ácida. Então teriam um vislumbre de seu conteúdo e poderiam fotografar o manuscrito. Uma questão de segurança, já que não era completamente garantido que conseguiriam restituí-lo em contato com o ar. E de qualquer modo, em seis horas poderiam ler o que o profeta Jonas, ou alguém com seu mesmo nome e uma história identica teria escrito...
Preencheram o tempo entre a manhã e o final da tarde com muitas outras tarefas e também muitas conversas. Estavam cada vez mais próximos, ela quase esquecendo suas dores, ele quase esquecendo seus votos. Eram dois cientistas e, também, antes de tudo um homem e uma mulher. A técnica de Morgan tivera um certo atraso. Sarah ligou para casa e avisou as enfermeiras de Samuel que iria se atrasar, talvez passar a noite no Departamento. O menino estava com os sinais normais, na mesma. Sempre que perguntava de Samuel esperava ouvir qualquer notícia, alguma variação que significasse que ele estava voltando. Esperança vã, até agora.
O processo de Morgan, uma vez iniciado, tinha que ser concluído no momento certo, ou o pergaminho seria consumido pelo ácido e séculos de história se perderiam. Bruno decidiu que acompanharia Sarah até que pudessem desenrrolá-lo e ler seu conteúdo. Sua curiosidade o impelia. Seu desejo também.
Pediram algo para comer, jantaram em sua sala mesmo. Bruno pensou o quanto gostaria de ter um bom vinho acompanhando aquela refeição, mas afinal estavam no trabalho, estavam num ambiente formal. Que vontade estranha... Eram 23 horas quando, já cansados, observaram um amolescimento no pergaminho. Começaram a desenrolá-lo lentamente, com duas tenazes segurando cada canto superior, e uma terceira puxando o papel, milímetro por milímetro. Passou-se quase uma hora até terem o manuscrito visível, totalmente aberto. Era hebraico antigo, mesmo, da época dos profetas. Trouxeram o equipamento fotográfico para registrar o documento. Desta forma não perderiam o conteúdo. A seguir passariam à etapa de lavar o material do ácido e recompor suas moléculas com uma pasta de papel, o que permitiria que não desintegrasse em contato com o ar.
Mas já tinham a foto, e com ela o acesso ao conteúdo do pergaminho. Os dois eram peritos em hebraico bíblico, portanto não tardaram a chegar ao resultado final: um texto supostamente atribuído a Jonas, que constava quase com as mesmas palavras em seu livro do Antigo Testamento:
“Na minha angústia / Clamei ao Senhor, / E ele me respondeu; / Do Ventre do abismo, gritei, / E tu me ouviste a voz. / Pois me lançaste no profundo, / No coração dos mares, / E a corrente das águas me cercou; / Todas as tuas ondas e as tuas vagas / Passaram por cima de mim. / Então, eu disse: lançado estou / De diante dos teus olhos; / Tornarei, porventura, a ver / O teu santo templo? / As águas me cercaram até a alma, / O abismo me rodeou; / As algas se enrolaram / Na minha cabeça / Desci até o fundamento / Dos montes, / Desci a terra, / Cujos ferrolhos se correram / Sobre mim, para sempre; /
Contudo, fizeste subir da sepultura / A minha vida / Ó Senhor, meu Deus! / Quando, dentro de mim, / Desfalecia a minha alma, / Eu me lembrei do Senhor; / E subiu a ti a minha oração, / No teu santo templo (...)”.
Apesar do trecho ilegível, não havia dúvidas: tratava-se da conhecida “Oração de Jonas no ventre do peixe”. Mas uma questão se impunha: se comprovada sua autenticidade (faltava ainda o teste de datação) e seu cativeiro sob o oceano, como teria Jonas escrito o pergaminho, entre vísceras e sem luz?
Sozinhos no prédio do Departamento, os olhares de Sarah e Bruno, ao interrogarem essa questão, cruzaram-se e quedaram-se ali, perdidos um no outro. O rapaz perguntou à mulher que, apesar de não dever, amava:
- Então, Sara, acreditas no sinal, agora?
- Acredito que tu és meu sinal.
Após o longo beijo que se seguiu, um agora convicto Bruno sussurou ao ouvido de sua amada Sarah:
- Eu te disse; tenha fé...
Fontes: Bíblia Sagrada; Wikipédia; imaginação...
(Escrito em 2013).