O Imponderável da Razão
— Oi! Tudo bem? Posso me sentar aqui do seu lado?
— Claro! Fique à vontade. Meu nome é Pegasus.
— O dia hoje está muito agradável, sai de casa hoje com mil coisas na cabeça. Entende?
Olhei disfarçadamente para aquela mulher que cheirava a confusão, não era bela, mas tinha uma névoa de mistério que a envolvia. Sentou-se no banco com as pernas cruzadas com seu vestido curto, não estava de todo provocante, mas tinha uma certa volúpia, não assimilei de imediato, todavia, a mulher era sensual.
— Sim, e como! O dia promete grandes surpresas.
Inspecionei-a dissimulando certa ironia masculina, desdenhei-a ao me movimentar no banco e, com um olhar matreiro despretensiosamente pra ela, perguntei: — Qual é o seu nome?
— Qual nome você prefere? — respondeu com uma pergunta.
Por alguns instantes, fiquei remoendo a pergunta engraçada, ou maliciosa? Digamos uma peraltice... Seria uma pergunta só pra me seduzir? Que tipo de semente aquela mulher queria que germinasse em mim? Quais as intenções dessa mulher, que sem a menor cerimônia senta-se ao meu lado e puxa conversa?
Os olhos da minha vizinha de banco eram de matar, até me arrisquei, mas não conseguia manter os olhos nos olhos dela. Algo me desviava o olhar: uma angústia, talvez uma intuição de que uma aventura perigosa me rondava... um calafrio percorreu todo o meu corpo. Todas as vezes que tentei fixar os olhos nela, ela descansava as mãos no joelho dobrado sobre a perna esticada por debaixo.
— Uai! Você está de brincadeira comigo, né? Afinal, todo mundo tem nome, até as pedras tem nome próprio, ou seja, o nome de pedra não muda ao nosso gosto, o nome pedra será sempre pedra, pra gente poder identificar e falar sobre pedra e as demais coisas.
— Olha bem nos meus olhos, querido; que diferença faz eu te chamar de Pegasus, amor, Branca de Neve, Sebastião, Rosa, Ângela ou Rosangela? O seu nome determina quem você é? Vamos lá, vai, escolhe um nome que você gosta...
Eis o dilema! Estava diante de uma mulher louca, essa debochada queria só implicar comigo ou apenas se divertir? Aquela maluquinha começou a se transformar em uma esfinge, quanto mais ruminava minhas dúvidas, mais obcecado ficava por ela. Não resisti, decidi me aventurar com a alienada... às vezes, sei lá, vai que, no final das contas, tenho um belo dia!
— Nêmesis! Gosto desse nome, acho-o perfeito pra você, posso lhe batizar com o nome Nêmesis?
— Adorei por fazer uma escolha, não pelo nome em si. Você é uma gracinha!
Nêmesis piscou levemente o olho esquerdo, mudou as pernas de posição, encostou as costas no banco, puxou o vestido para próximo dos joelhos, alisou o vestido sobre as coxas para não ter dobras, alisou-as como se fosse uma segunda pele. Deixou os cabelos caírem sobre os seios. Virou para mim e perguntou:
— Você gosta de conhecer pessoas? Fugir da mesmice do dia a dia, perambular, fazer coisas sem a menor ideia de como as coisas vão desenrolar, vaguear apenas para conhecer lugares, fazer amigos?
— Sim, perfeitamente. Que tal fugir agora? Podemos procurar um lugar onde ficaremos mais à vontade. O que acha? — perguntei.
— Com você vou a qualquer lugar, é só você falar, escolha um lugar bem interessante, conversaremos longamente pra nos conhecermos e nos divertirmos. Você quer se deleitar com uma nova amiga, não quer?
Nêmesis seria uma garota fácil ou paranoica? Estaria sob efeito de drogas? Ou seria uma qualquer?
Um motel, minha casa, na casa dela? Elucubrei, conjecturei, cheguei a simular fantasias! Várias possibilidades e situações; não tinha receios de escolher, mas ela estaria consciente de tudo? Devo compactuar na companhia dessa aventureira insana?
— Meu amiguinho adorável! Por acaso, passou pela sua cabecinha que eu seja uma devassa, ou uma impudica? Não estou chapada de drogas. Podemos ou não ser amigos? Ou você não acredita em amizades entre homens e mulheres sem desejos? Olha lá! — esticou o braço, apontando o dedo para o meu lado direito — sabe que lá tem um lago muito bonito perto daquele platô? Podemos ir lá... o que acha?
Olhei para a direção do dedo em riste, já conhecia o lugar, conhecia muitas trilhas que levavam até o lago. Realmente é um lugar muito bonito, tem área pra camping. Todavia, era uma longa caminhada, a não ser que fosse de carro; se fosse a pé, seria impossível voltar sob a luz do sol. Queria ela dormir lá? Comigo?
Estaria pensando em dormirmos no primeiro dia que nos conhecemos? Essa acelerada é mesmo destrambelhada. O que minha mãe pensaria disso? Afinal, minha mãe falava mais comigo sobre as garotas do que meu pai.
— Adoraria conhecer sua mãe. Com certeza teria bons conselhos pra você sobre mim. Não sei por quê, mas essa ideia passou pela minha cabeça — disse Nêmesis, retocando o batom.
Comecei a sorrir desconcertado, sorri apenas com a metade da face do lado esquerdo, uma pequena contração no canto da boca, esfreguei as mãos e pensei: seria coincidência ela falar de minha mãe quando pensei nela?
— Então, meu príncipe, vamos até o lago, terá tempo de sobra pra descobrir que não sou doida, louca nem destrambelhada. Ou tá com medinho de passar uma noite ao meu lado? Vamos lá, vamos nos conhecer. Vamos apenas conversar, dar boas risadas e dormir, nada mais; para de fantasiar!
Essa moça tão descolada, bonita! Aliás, nem achava bonita, mas agora mudei de ideia. Quem é essa figura? O que quer com essa lorota? Devo confiar nela? Seria uma mulher mesmo?
— Meu anjinho, posso me transformar pra você! — piscou com os dois olhos — como prefere: uma mulher negra, ou uma branca? Uma loira ou uma ruiva? Uma magra ou uma gorda? Qual você escolhe? É só falar!
— Você é uma necromante ou um anjo do mal? Qual das duas você é? Diacho! Você lê meus pensamentos. Quem você é? Saiba que não tenho medo de você!
— Está com medo, sim, e seu pavor é porque não está no controle. Você acredita que é e sempre será o predador e eu a presa. Doce engano, meu amor! Como já lhe disse, qual a diferença entre ser feiticeira, bruxa ou santa? Ser Nêmesis ou Sebastiana? Por que conhecer pessoas com ideias preconcebidas e com atitudes preconceituosas? Seja independente, a tradição é para os fracos, não aja como um boi no rebanho, ninguém te obriga a nada, é você que escolhe por vontade própria. Não seja parte de uma massa amorfa!
Olhei para frente, havia uma avenida muito movimentada... carros, motos, bicicletas e pessoas indo e vindo. À minha direita, via um cerrado ainda preservado, lá longe, tinha uma lagoa. Olhei para cima e comtemplei o sol que o alumiava sem desdém. Procurei nuvens, mas fugiram todas, nuvens ingratas.
Com certeza estou drogado, tudo isso é demais para minha cabeça. Estou ficando com miolo mole ou já estou caduco? Balbuciei em silêncio — meus lábios tremiam de pouquinho em pouquinho — olhando para a Nêmesis... ou seria Sebastiana? Ou a bruxa que virou feiticeira?
— Meu príncipe, olha pra mim. Fecha os olhos só por uns instantes, tá? Não se preocupe, não vou te levar pra floresta, não sou o lobo mal da história.
Fechei os olhos, ela segurou minha mão esquerda, começou a alisar vagarosamente minha mão, às vezes, o braço e, em seguida, ia até a ponta do dedo médio. Tocava levemente. Não estava me excitando, mas eu sentia certo êxtase, como se estivesse sendo arrebatado da realidade.
— Vamos inverter, quero que você toque e alise meu braço até a ponta do meu dedo, acaricie levemente minha pele, massageie o mais suave possível, mas sinta perfeitamente que toca em algo. Se lhe digo que nesse momento não é meu braço, mas de um animal qualquer, seja um cão, cavalo, qualquer um, pode ser uma ave qualquer. A realidade não é o que vemos ou tocamos, mas o que acreditamos, o que imaginamos, é nossa consciência que determina o nosso campo visual, não o contrário. Pense comigo: a justiça não é o mesmo que ser justo. O inverso também é verdade: a justiça é determinada pela nossa consciência, enquanto justo é do mundo. Como o meu braço que você toca agora pode ser o que você imaginar. A justiça é única. Assim é a coragem, o belo, a felicidade, o bem, o amor.
Quando Nêmeses parou de falar, na verdade ela apenas estava renovando o fôlego pra continuar com aquele papo de doido, resolvi olhar o que acontecia atrás de mim. No centro da praça, estava acontecendo uma manifestação.
Uma mocinha de no máximo 19 anos tirou o sutiã sem tirar a camiseta e colocou fogo. O povo em volta, na maioria mulheres, foi à loucura, aplaudia, gritava. Outra moça tão jovem quanto a primeira tirou a blusa, o sutiã — colocou fogo nele — e escreveu sobre os seios, com tinta vermelha: igualdade e liberdade.
Um mancebo resolveu embrenhar-se na roda pra dizer não sei o quê, mas o reboliço foi homérico. Foi escorraçado pelas mulheres, estavam com sangue nos olhos de ódio devido ao atrevimento do intruso... e gritavam: “fora opressor, machista explorador, seus dias estão contados!”.
A menina, que escreveu as palavras de ordem sobre os seios, aproximou do efebo, deu-lhe duas bofetadas na face e gritou: Fora, canalha insolente! Uma terceira, que terminara de raspar todo o cabelo, correu atrás do infeliz com um porrete nas mãos, gritando: “patife, palhaço, suma daqui infame!”.
Num repelão, lembrei que uma de minhas irmãs, se soubesse daquela manifestação, seria a primeira a queimar o sutiã, raspar o cabelo, pintar símbolos de liberdade no corpo e gritar palavras de ordem. Seria a primeira a benzer o intruso às pauladas.
— Acho melhor voltar pra casa. Tchau, coisa bizarra! — e saí dali a passos largos.