O Calvário de Todos os Dias  

 

  

— Uai! É tu mesmo, Gaer?  

 

—  Rapaz! Há quanto tempo não te vejo, Callad?  

 

— Gaer, acredito que seja desde a quinta série. lembra da escola que ficava na rua Eduardo Marquez, perto da rua Paes Lemes, não é isso?  

 

— Exatamente de lá mesmo, Callad, ou seja, mais ou menos uns 50 anos atrás, meio século. Putz! É tempo pra dar com pau!  

 

— Vamos naquele bar ali, ó, vamos conversar um pouco. Você toma cerveja, refrigerante, pinga, o quê? — Perguntou Callad.  

 

— Cerveja e água com gás.  

 

Era um bar de esquina, poucas mesas e poucas pessoas no momento. Eram por volta das três e meia da tarde, uma paineira enorme cobria todo o bar com sua sombra. As mesas eram de metal, assim como as cadeiras. A tinta da parede do bar estava bastante desbotada, porém limpa, o chão era de cimento vermelhão, um balcão enorme de 4 metros de comprimento por 60 centímetros de largura em mogno.  

 

O dono do bar era um senhor já de idade avançada, mantinha o corpo ereto, a cabeça em pé, o olhar sempre no horizonte e firme. Tinha apenas os dentes caninos na arcada dentada superior, os dentes debaixo todos perfeitos. Estes destoavam demais dos dentes de cima naquele senhor tão bem-vestido e de uma postura de lorde. Usava calça de linho 120 cor bege, camisa de linho também, mas na cor salmão bem claro, e uma toalha sempre no ombro direito pra limpar o balcão, cadeiras e mesas.  

 

Callad perguntou o nome do proprietário do bar e se era possível colocar uma mesa perto da árvore e lhe servirem uma cerveja, amendoim salgado e uma porção de torresmo.  

 

O senhor Cassiel respondeu levando a mesa e duas cadeiras até próximo do tronco da árvore, retornou e levou dois saquinhos de amendoim salgado, dois copos e uma cerveja e disse:  

 

— Só tenho essa marca, posso abrir? O torresmo vou fritar, fica pronto em 15 minutos.  

 

Os dois olharam a garrafa, era litrão e leram a marca: A Prima Pode. E responderam: Claro! A Prima Pode, uai!  

 

Gaer e Callad se conheceram na escola. Quando terminaram a quinta série, mudaram de escola e nunca mais se viram. Foi durante a feira de ciências que se tornaram amigos.  

 

 Gaer fez um filtro de água com cascalho grosso, cascalho fino, areia grossa, areia média e areia fina no final, todo esse material dentro de uma garrafa de vidro. Cortava-se o fundo da garrafa e colocava o material na ordem até o bico da garrafa, no bico da garrafa colocava um canudinho. Jogava água suja pelo fundo da garrafa e no final a água estava limpa.  

 

Callad fez uma demonstração que o sal na água não dá curto-circuito; uma mola de metal tipo de chuveiro, ligava-se um fio de energia na extremidade da mola, na outra extremidade, um fio que ia direto para um prato com água e sal, a outra fase do fio ia direto para o prato com água e sal. Quando ligava os fios na tomada, a mola ficava vermelha e a água aquecia, mas não podia pôr a mão no prato, senão tomava choque.  

 

Os dois se divertiam à beça porque as pessoas perguntavam:  

 

— Posso beber a água?  

 

— Não!  

 

— Posso colocar o dedo na água? 

 

— Não!  

 

Os dois se divertiam e riam sempre que chegavam pessoas perto de suas invenções e perguntavam, mas sempre levavam um não. No final, cada um ganhou uma medalha.

  

— Callad, nós nos divertimos com aquela feira de ciências, né?  

 

— Bastante!  

 

— Gaer, você lembra daquela professora de religião, uma senhora que sempre estava de saia abaixo do joelho, blusa fechada até o pescoço, cabelos claros que sempre estavam amarrados com um lenço branco, óculos redondos e aros amarelo-ouro, andava com passos miudinhos e ligeiros e sempre abraçada com a bíblia contra o peito?   

 

— Claro que me lembro! Sempre sisuda, mal-humorada, olhos pequenininhos, mas enxergava tudo à sua volta, nariz fininho que parecia ser de cera, a boca grande e lábios carnudos... Acho que ela era descendente de negros de primeira geração. 

 

— Pois é! vou te contar algo cabuloso, Gaer. Na primeira aula, ela fez a gente rezar um Pai-nosso e três Ave-Marias, tinha uns evangélicos na sala e um espírita, rapaz! Esse pessoal se recusou a rezar! Pra quê... levaram tanta reguada nas costas, nas mãos, que foi de dar dó. Pior que antes do final da aula rezaram.  

 

— Você não imagina minha burrice, mesmo vendo tudo que a mal-humorada era capaz de fazer: eu fiz duas perguntas pra ela durante a primeira aula. Relembrando hoje, eu acho que ela era cínica também. A primeira foi: 

 

— Professora quem criou o mundo e as estrelas?  

 

— Foi Deus, Callad — respondeu Nahemah.  

 

— Professora Nahemah... e Deus vem  de onde?  

 

— Rapaz! Meu Deus do céu! Levei tanto tapa, puxões de orelha, reguada que você nem imagina. Ela primeiro rezou em voz alta um Pai-nosso, duas Ave-Marias e uma Salve-Rainha. Essa reza não conhecia, depois que descobri um dia, quando minha mãe fez um grupo de reza lá em casa.  

Depois das orações aos berros, ela disse pra mim:  

 

— Demônio! Você está endemoniado, satanás fez morada em você, seu capetinha! Vá pra última fila e sente-se na carteira lá no fundo, lá naquele canto. Apontando o dedo, vociferando: “Sai desse corpo, demônio!”.  

 

— Meu parceiro, todo mundo estava horrorizado, teve gente chorando, a coisa foi tão assustadora que ninguém fez brincadeira comigo, não houve um pio sequer.  

 

Quando a porção de torresmo chegou, eles já estavam na quarta A Prima Pode, aproveitaram e pediram mais limão e uma cachaça pra cada. Cassiel disse que só tinha a cachaça Atrás do Saco:  

 

— Vocês tomam Atrás do Saco? Não tem outra!  

 

— Essa mulher é louca! Surtou, só pode ser. E como você ficou nessa hora, Callad?  

 

— Branquinho! Quase translúcido, por um momento achei que estava invisível para os colegas, mudo como um poste, tremia mais que vara verde. Sentei-me na carteira no fundo da sala e torci pra chegar logo o recreio. Engraçado, né?, antigamente a gente falava recreio, hoje é intervalo.  

 

— Quando deu o sinal, fui o primeiro a sair da sala, bem na frente da professora Nahemah. Os colegas de sala ficaram bem longe de mim. Não vi nem encontrei nenhum colega de outra sala.   

 

— Foi aí que aconteceu algo estapafúrdio, Gaer. Uma menina de no máximo sete anos apareceu na minha frente, olhou bem nos meus olhos, um olho azul outro verde, tinha um vestidinho preto quase no tornozelo, meias vermelhas, sapato preto, cabelos amarelinhos encaracolados, o rosto parecia de boneca.  Ela segurou na minha mão esquerda, estava quente e úmida –  talvez seria a minha mão quente e úmida? Não sei ao certo –, e me disse:  

 

— Não há homens fortes ou fracos, tudo é contingente. Não sorriu nem mudou suas expressões faciais deste que apareceu na minha frente. Lembro que cheirava a jasmim.  

 

— O sinal do final do intervalo soou, regressei pra sala e nunca mais vi a menina. Pois bem, se a criança foi algo estapafúrdio, o que vem agora é de matar.  

 

Senhor Cassiel aproximou-se da mesa e perguntou:  

 

— Mais torresmo, ou outro tipo de tira-gosto?  

 

Já tinha descido a décima A Prima Pode, uma porção de torresmo, quatro saquinhos de amendoim salgado. Os dois trocaram olhares e pediram ovo de codorna, quibe cru, palito de dente e meia porção de fígado de frango. 

 

Cassiel descansou na mesa a décima primeira Prima, sorriu timidamente só com o lábio inferior e seguiu para a cozinha com o pedido no intelecto.

  

— Gaer, você sabe que minha família é católica, né? Tem gente lá que reza antes de sair da cama, antes de almoçar, antes de jantar e antes de se deitar, vai na missa todo santo Domingo e tem grupo de orações quarta e sexta em casa. Mas eu evito qualquer tipo de religião, mas não sei por quê! Semana passada estava na praça Nossa Senhora da Aparecida e lembrei que minha irmã me disse que a reforma da igreja tinha ficado muito bonita, resolvi ver e entrei na igreja.  

 

— Realmente ficou muito bonita. Pois bem, resolvi sentar-me e observar melhor. Não é que quando me ajeitei no banco, não percebi, mas me sentei entre duas mulheres! A do meu lado esquerdo estava vestida de branco, cabelos longos e um corpo muito bonito, tinha uma tiara na testa, um olho verde outro azul, seus olhos irradiava luz de forma diferente e cheirava a jasmim. Eu não estava delirando nem sonhando dentro da igreja.  

 

— Olhei para o lado direito, estava a professora Nahemah, mas bem maquiada, com uma roupa que delineava todo o seu corpo, nada extravagante, mas um tanto sensual, um perfume amadeirado, as unhas vermelhas e longas, sorria levemente, muito ténue, como se estivesse disfarçando, como se outra pessoa não pudesse ver o sorriso dela, só eu.  

 

— A mulher da esquerda tocou em meu ombro direito, quase me senti abraçado. Na mesma hora me vi dentro da escola, de frente para aquela garotinha. Estava como hoje, adulto, mas na escola todos eram crianças daquela época, eu não conseguia entender o que estava passando: Cheguei a pensar estar louco. Seria um surto psicótico?  

 

— Callad, há quanto tempo você usa drogas pesadas? Tudo isso é pura alucinação!  

 

— Camarada, calma que não terminei, mas te adianto, não uso drogas nenhuma, fica frio! Bem, logo que estávamos no pátio da escola a menina me perguntou:  

 

— Como você quer que eu apareça pra você? Assim como estou, como estava na igreja ou como um anjo? Posso ter a forma que você quiser.  

 

Olhei para o lado e vi a professora Nahemah: estava linda, corpo perfeito, os lábios brilhando, pois a todo momento molhava os com a língua bem devagarinho, o perfume dela era doce, muito adocicado, mas sutil, levantou-se devagarinho com a bíblia junto ao peito e disse:  

 

— A maldição dos homens não é a mulher, são os pregadores desse livro! Sorriu pra mim segurando minha mão direita e perguntou: Quer ler comigo?  

 

A porção de ovos chegou, tinha uns 40 ovinhos, os dois comeram tudo sem parar até terminar. Devoraram o kibe cru, beberam toda a cerveja que estava na garrafa e as doses de cachaça, palitavam os dentes com tanto frenesi que sangraram as gengivas. Os dois estavam mais arrepiados que javali assustado à noite.  

 

Após uns minutos de silêncio, Gaer pediu outra Prima e perguntou pra Callad balbuciando:  

 

— Então, como terminou? Se é que é verdade, quero saber.  

 

— Saí de perto da professora, me aproximei da criança e pedi a ela que tivesse a forma de uma mulher normal e falasse seu nome. Ela se transformou em uma mulher negra muito bem vestida, com turbante na cabeça, e disse seu nome: Suriel.  

 

— Suriel, você é um anjo? Tudo parece ser... e a professa, o demônio? Devo seguir-te?  

 

Suriel aproximou-se da professora, mantendo uma pequena distância, e disse:  

 

— Callad, você é livre! O que você chama de livre-arbítrio chamamos de escolha pessoal. O Criador lhe deu inteligência para viver nesse mundo, capacidade para distinguir o certo do errado, o bom do ruim, o bem do mal. A escolha é sua. Não é a busca da verdade que te fará feliz, mas viver verdadeiramente. O que é mais supremo; uma bem-aventurança banal ou um sofrimento magnânimo? 

 

— Olhei para a professora dos pés à cabeça lentamente, depois para Suriel, observei atentamente cada rosto das crianças. Lembrando de cada uma, fechei os olhos e tampei-os com as mãos por alguns segundos. Quando abri, eu estava sozinho na igreja. 

 

— Cassiel, por favor, traga a conta. Gael pediu a conta por volta das 03h30 da manhã, falava com dificuldades as palavras entrecortadas com assovio, se sentia já tão cansado que falava pelo canto da boca com um olho já fechado e a cabeça apoiada no ombro.  

 

Callad foi ao banheiro. Na volta, errou de mesa e se sentou junto a pessoas desconhecidas. Olhou-as bem de perto e falou:  

— Eu te conheço?