Nudes 
 
Quando acordou olhou para a janela aberta, a janela quase sempre está aberta, exceto quando sai de casa para fazer ou comprar algo. 
 
A luz do sol iluminava toda a parte de traz da casa, porém o sol ainda não tinha seus olhos cravados em sua direção, apenas a luminosidade do mesmo. 
 
Na posição que acordou, se manteve e viu que havia um corpo na sua cama nu. 
 
Solteiro de longa data, sem nenhum compromisso também, não tinha o hábito de levar namoradas ou companheiras para sua cama. Uma questão de moralidade e privacidade, colocava limites em sua casa. Local este que tinha como sagrado. Separado há mais de vinte anos, teve poucas namoradas, talvez uma ou no máximo duas estiveram em seu quarto para dormir. 
 
Movimentou apenas os olhos para ver aquele corpo feminino que ali estava. Não foi possível ver o rosto, um braço descansava sobre o outro apoiado em um dos seios, estava deitada de lado; a perna direita estava reta por debaixo da outra dobrada num ângulo de quase 45 graus. 
 
Na noite anterior, estava em casa sozinho, aliás, passara o dia todo em casa; arrumou a casa, limpou tudo, deu comida para o cachorro, tomou banho e por volta das 10 horas da manhã. Começou a ler. 
 
A cabeça da mulher, talvez seria uma moça, estava afundada no travesseiro, parte do cabelo, este longo e escuro, descansava sobre o rosto esquerdo dela. O corpo esguio, pele levemente bronzeada, obviamemte que era uma mulher de pele branca, deveria ter no máximo um metro e setenta de altura. 
 
O sol ainda não o fintara diretamente nos olhos, sua visão estava na expectativa da chegada do sol e naquele corpo nu que amanhecera em sua cama. 
 
Palmilhou o dia e a noite anterior centímetro por centímetro, segundo por segundo. Tinha lido exatamente, 127 páginas do livro 'Os Demônios' de Dostoievski, por volta das nove, quase dez horas da noite, comeu um nissin miojo, quer dizer, dois com molho vermelho. Depois lembrou do conto de Gogol ' O Nariz' leu o conto todo, vinte quatro páginas. O romance de Dostoievski como o conto de Gogol, não havia nada de sensualidade, nada que envolvesse situações amorosas ou do gênero. 
 
Olhando imóvel para aquele corpo inerte ao seu lado quase lhe roçando, lembrou de algumas discussões que já tivera com alguns de seus amigos sobre o olhar, a subjetividade. Por um momento analisando seus pensamentos e aquele corpo nu, poderia imaginar ser de uma mulher negra, uma etíope, ou asiática, europeia, sul-americana ou uma índia... 
 
O que lhe instigava era uma lembrança interessante naquele momento, lembrou de uma frase, não lembrava de quem nem quando ouviu: "Toda nudez será castigada...". por quê? 
 
Afinal! Como um corpo deve se cobrir, afinal de contas, todos os corpos nus, são apenas um, que seja uma Gisele Bündchen, Naomi Elena Campbell e tantas outras, nuas são apenas mulheres, todavia, quando estão cobertas por suas roupas, são muito mais que mulheres, tornado se referência para as demais, por que isso? 
 
Como pode um corpo nu ter pecado? Olhou novamente para aquele corpo despido que descansava (se é que estava descansando) na sua cama e remoía em pensamentos sobre o que é exatamente pecado? 
 
As religiões tratam a nudes de forma estranha, seus líderes ditam o que é e o que não é pecado, ostentam poderes que o nazareno nunca teve nem almejou ter, pelo contrário, pregava a distribuição dos bens da igreja para os necessitados, analisando como os comandantes das religiões vivem e agem, relembrou de um pensador que dizia: " O único cristão que existiu, morreu na cruz". 
 
Voltou a olhar para aquele corpo inerte quase tocando seu corpo na cama, não tinha a menor intenção de identificar a pessoa, percebia que cada vez que olhava o corpo, uma reflexão vinha à sua cabeça e de ideias em ideias, reflexões em reflexões, virou seu próprio corpo para o outro lado, colocou a mão esquerda entre o rosto e o travesseiro e sonhou que estava sonhando. 
 
Neste sonho dentro do seu sonho tinha uma esposa, encontrou a na cozinha, antes que ela se virasse tocou a e pensou na Naomi Elena Campbell, quando a esposa virou, estava diante da Naomi! A voz, a forma de ser era da esposa, mas o corpo era da Naomi, abraçou a esposa, conversavam longamente sobre as mesmas coisas do dia a dia, de seus projetos tudo tudo tudo. 
 
Segurando as mãos da esposa, abaixou a cabeça e pensou na Gisele Bündchen involuntariamente, ao levantar a cabeça, sua esposa se transformara na Gisele. Admirou a detalhadamente.

Então percebeu que sua esposa poderia ser igual a quem quisesse, entrementes, essa dedução só fora possível àquele que sonhava, mas como assim: sonhava que estava sonhando? 

 
Entretanto, quando a esposa se via no espelho e descobria que sua imagem fora roubada e tinha de outra, sofria, admirava com quem se parecia, penteava às vezes como ela, até procurava ter algumas roupas como ela, mas não queria ser ela, se entristecia-se tanto que se deitava na cama e ficava deitada nua, com uma perna esticada e a outra dobrada, com o rosto de lado atolado no travesseiro com o cabelo lhe cobrindo parte do rosto. 
 
__ Percival(1) Percival acorde, tenho que ir. 
 
Despertou do sonho do sonho, mas continuava dormindo e sonhando que alguém lhe tocava a orelha levemente sussurrando seu nome e dizendo: Percival Percival acorde, tenho que ir. 
 
Percival acordou, era noite, as janelas da casa estavam fechadas, estava na sala de frente para a televisão ligada, a tela estava escura com uma frase movendo como se estivesse surfando pequenas ondas:

A verdade é um afável feitiço fugidio!  


(1) 
Significado: Percival: A origem está em Peredur, nome galês de significado desconhecido.  ou seja, “atravessar o vale”. Segundo uma lenda medieval, Percival era um dos cavaleiros da Távola Redonda e esteve envolvido na busca do Santo Graal.