MAR ABERTO

“É doce morrer no mar

Nas ondas verdes do mar”

DORIVAL CAYMMI

Recife, 1993.

Você sabe. O mar, tal qual um teatro, apresenta diferentes espetáculos.

Durante o dia, soa como um frevo em um trio elétrico sob um sol efervescente. Atrai multidões para vender e comprar tudo. E comer. E jogar água e areia para o ar, correr e pular, mergulhar e gritar. E as ondas beijam a areia com a espuma de delírios dionisíacos.

À noite, porém, as escuras águas solitárias cantam uma canção mais sutil. Uma ópera soturna sobre distâncias e amores perdidos que poucas pessoas conseguem realmente ouvir. Mesmo aqueles que você talvez veja à noite, na beira-mar, talvez não a estejam ouvindo, perdidos no barulho de seus próprios pensamentos.

Pedro era diferente. As noites de sábado eram seus momentos mais aguardados da semana. Era quando seu pai ia jogar futebol na Praia do Pina com os amigos. Lá pela década de 90, as crianças tinham certas liberdades fora de casa que as de tempos posteriores deixaram de ter. Enquanto seu pai jogava aquele jogo que ele nunca entendera o motivo de tanta gente gostar, Pedro vagava pela praia ouvindo aquela estranha e fascinante canção. E se afastava frequentemente dos jogadores para poder ouvir melhor.

Quantas histórias, antigas como o tempo, cheias de encantos aquáticos, eram sussurradas em seus ouvidos infantis, enquanto ele caminhava pela areia, sonhando acordado? Sentia-se diante de um portal através do qual fluíam as canções de mundos esquecidos.

Mas nunca atravessava o portal.

Apesar de todo encanto, as água negras alertavam do perigo. Pedro apenas molhava os pés, as mãos, às vezes até as coxas, mas nunca ia muito além disto. Afinal, todos sabiam que o risco de ataques de tubarões, naquelas águas recifenses, era ainda maior à noite.

Porém, houve uma noite na qual o portal se abriu mais que de costume. Nesta noite, como sempre fazia, Pedro foi se afastando aos poucos da partida de futebol onde seu pai se divertia com os amigos. Caminhou lentamente pelas extensões de areia que pareciam tão vastas e solitárias, acolhedoras e familiares. O vento soprava frio e salgado, como se o abraçasse. As ondas quebravam suavemente, como se com cuidado para não desmanchar o caminho de luz branca feito pela maior lua cheia que ele já vira. Até as estrelas pareciam mais próximas. Tudo indicava que aquela era uma noite especial.

O encanto, em forma de uma bela canção que só ele ouvia, começou, como de costume, suave e sutil. Cada nota acendia sentimentos abissais, fazia brotar do seu peito uma emoção forte e fria como um revolto mar noturno. O cheiro de maresia parecia transpassá-lo inteiramente e o deixava tomado por uma saudade e uma solidão intransponível e arrebatadoramente bela.

A solidão já não era novidade. Já a abraçava como uma velha amiga. Raramente encontrava outras crianças com quem conseguia se relacionar. Coisa que todas as outras pareciam fazer tão naturalmente. Era sempre o aluno a ficar calado no seu canto na escola, mesmo na hora do recreio. Observava as crianças brincando de correr gritando umas atrás das outras, ou jogando futebol, mas quase nunca o chamavam para participar delas. E quando o faziam, ele recusava. Preferia observar, ou ir para um pequeno jardim, onde era mais silencioso e ele podia ver árvores e pássaros, e até um sagui perambulando por um pé de goiaba, quando tinha sorte. A forma veloz e habilidosa como o mico se movia o fascinava. Perdia-se observando os detalhes das folhas, frutos, asas, penas e pelos. Quando em casa, ficava sozinho por horas com seus poucos brinquedos, inventando histórias sem fim.

Em frente àquelas misteriosas águas escuras, ele sentia-se pertencente de fato a algo maior que si mesmo. E a ausência deste algo era o principal motivo de sua saudade constante. Uma falta que era tão presente que já fazia parte da vida e da normalidade. Sempre o acompanhando como uma segunda sombra escurecendo tudo em sua volta. Ali, uma luz fluía dissolvendo qualquer sombra, na forma de uma pálida luz branca azulada que emanava da lua sobre a superfície do mar, pavimentando um caminho para o lugar do qual ele jamais deveria ter saído. O lugar do qual sempre sentira e sentiria falta. O lugar com o qual sempre sonhava e acordava em prantos, repetindo “eu quero ir para casa”. O lugar para o qual o trem dos sonhos sempre acabava o levando porque sabia que apenas lá ele se sentia vivo. Apena lá ele podia ser sem medo.

Desta vez ocorreu algo que ainda não tinha acontecido naquelas ansiadas noites de domingo. Em geral, as canções que ouvia eram todas abstratas, impregnadas de sentimentos profundos, mas nunca diziam algo direto e concreto. Começou a ouvir claramente uma voz, doce como estrelas em noites sem nuvens, que dizia:

— Venha, venha meu querido. Venha para o meu mundo. Onde reina o silêncio e a tranquilidade de um noturno mar profundo. É só atravessar a maré, pé após pé, para o lugar onde poderá ser como é. Venha, meu querido, não tema o mar profundo. Venha, venha! Venha para o seu mundo! Volte para casa, receba sua herança! Nunca mais tenha medo, ó minha doce criança.

Então ele se lembrou. Súbito como o quebrar de ondas nos recifes, espalhando uma vasta espuma de memórias esquecidas por toda sua mente.

Lembrou-se do antes. Lembrou-se muito bem.

Vivera numa grande cidade costeira onde havia um enorme castelo de torres cinzentas e bandeiras brancas. Dividida ao meio por um enorme rio, a cidade era costurada por belas e enormes pontes de madeira pintada de branco e azul. Ali, onde quer que estivesse, havia sempre a presença do mar.

Uma multidão vestia-se de diversos tons de azul e branco, reunidos para celebrar a Sagrada União. Canções eram entoadas ao som de instrumentos de cordas e de sopro, feitos de conchas marinhas. Duas luas cheias apresentavam-se no céu. Um delas cobria metade do céu com uma luz azul-prateada. A outra metade era dominada por uma sutil luz dourada. As luzes prateadas e douradas uniam-se no meio do céu, harmoniosamente, num perfeito casamento cósmico. A luz gerada desta interseção criava um fenômeno fabuloso, como uma fantástica aurora boreal que se derramava numa chuva fina e luminosa sobre todos os que sorriam e cantavam ali. Todos embebidos por aquela luz da sagrada noite onde o Pai e a Mãe abençoavam seus filhos na terra.

Numa outra cena, ele, que no antes não era Pedro, mas possuía algum outro nome pertencente àquele outro lugar, brincava com outras crianças que tinham os mesmos pensamentos e sentimentos que ele. Crianças de todo mundo que também pertenciam àquele lugar. Estavam numa praia extensa, o sol reluzia em infinitos pontos de luz branca sobre a água azul. E havia golfinhos! Como ele amava aquelas criaturas! Sempre adorara ver qualquer imagem deles em filmes ou em livros e revistas. Eles saltavam e cantavam, próximo à costa, divertindo as crianças. Seu coração dava saltos de alegria ainda mais altos.

E havia uma criança em particular, uma menina, que ele jamais havia visto enquanto era Pedro, mas ali, bastava olhar para ela para sentir... saber, que a conhecera por anos a fio, pela vida inteira. Sim, pois, só assim poderia haver tanto... amor? Bem, se o amor existia, só podia ser aquilo que estava brotando em seu peito. Vê-la fazia seu coração desabrochar em cores ainda mais belas do que as que vira no céu daquele mundo. Seus cabelos negros evocavam um mar noturno cheio de ondas. Seus olhos ostentavam o brilho da lua sobre o mar. E não havia palavra para descrever aquela sensação. Por ela, ele caminharia sobre o caminho da lua, através do mais escuro mar.

Tentou se aproximar, chamando-a pelo nome que ele, de alguma forma, sabia exatamente qual era. Mas as imagens tornaram-se turvas e ele voltou a ser Pedro. Voltou a ser o garoto na misteriosa Praia do Pina, à noite, onde um caminho de luz da lua surgia sobre o mar, o chamando de volta para casa.

— Vamos, meu querido, não vá demorar. A lua logo se irá, o portal vai se fechar. — Cantou mais uma vez aquela voz que agora parecia ainda mais bonita. Tão bela que doía fundo e o fez começar a chorar, sem saber exatamente o motivo.

Então ele foi. Com lágrimas descendo pelas faces, caminhou sobre as águas no caminho de luz.

— Isso, meu querido! Venha para o fundo! Venha! Venha para o meu mundo! Não precisa chorar, venha, venha para alto mar!

E ele continuou caminhando, feliz como nunca havia sido.

***

No dia seguinte os jornais da capital noticiaram o misterioso desaparecimento de Pedro Medeiros de Souza na Praia do Pina. Uma entrevista com o pai foi exibida no Bom Dia Pernambuco e nas duas edições do NETV.

— Tava jogando bola — Ele baixou a cabeça e respirou fundo — Ele sempre pedia para ir quando eu ia jogar... ele gostava muito... e nunca aconteceu nada...

— O senhor acredita que ele possa ter entrado na água? — Perguntou a repórter.

— Acredito que não. Eu sempre digo para ele não entrar, que tem tubarão, senhora.

— Ele não estava próximo de vocês?

— Ele gostava de ficar afastado, sabe? Mas nunca ia para muito longe, não, senhora. É que, jogando, sabe como é... quando dei por conta, meu filho já tinha sumido, senhora.

***

A polícia trabalhou com as principais hipóteses de rapto e afogamento. Buscas foram feitas por mar e terra. A única pessoa que aparentemente tinha visto algo foi uma moradora de rua que não quis se identificar. Ela afirmou ter visto uma criança e uma mulher de vestido branco caminhando pelas ondas, mar adentro. Tal depoimento foi evidentemente descartado.

O corpo de Pedro Medeiros de Souza foi encontrado por um pesqueiro em alto mar, nove dias após seu desaparecimento. Especialistas consideraram extremamente incomum o fato de ele ser encontrado ali, tão distante da praia. Uma vez que o normal era o mar devolver os corpos, após ficar com a vida dos afogados. Além disso, mesmo com tantos dias após o desaparecimento, o corpo estava em perfeito estado de conservação. Não havia sequer uma mordida de siri. Nenhum especialista foi capaz de explicar aquilo.

Porém, o que deixou todos, especialistas ou não, de cabelo em pé, foi o sorriso que Pedro trazia no rosto. Era como se sonhasse os mais belos delírios tropicais.

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