Machado não sabia mas era um homem egoísta por hábito. As pequenas recusas do dia a dia forjaram nele o caráter tacanho. O caso não era de crença ou de convicção existencialista. Aliás, por galhofa, costumava  usar o existencialismo para justificar as suas atitudes. Para ele, não havia missão mais digna, que lutar pela manutenção da vida, de sua própria vida. Quando o discurso alheio vinha lhe confrontar com moralismos Machado sorria, feito aquela pintura de Da Vinci, ao relembrar as orientações da aviação “primeiro coloque a máscara em você e só depois no outro”. Parafraseava o texto publicitário, evitando referir-se a crianças ou idosos. Essa elipse proposital, talvez se justificasse pela ausência desses tipos humanos em sua vida. E, mesmo existindo crianças em seu derredor e idosos entre a sua parentela, não lhe dizia respeito o bem-estar deles. A última vez que havia traído suas convicções, descobrira que o dinheiro enviado à irmã para financiar os estudos de um dos sobrinhos, pelo qual se afeiçoara, fora gasto com mantimentos. Sentiu-se aviltado pelo desvio do recurso. Imaginou que a escassez daquela família se prolongaria e, provavelmente, eles viveriam os anos vindouros lutando pelo prato de comida do dia seguinte. Pensando nisso, Machado decidiu sufocar o afeto pelo sobrinho e cortou laços com a irmã. Certamente viveria melhor sem saber notícias dos parentes. Afinal, o que os olhos não veem o coração não sente. E, a última coisa que ele queria, agora, era arrumar problemas com o coração.  
          Vez ou outra, aparecia em sua porta uma dessas testemunhas de Jeová, que sabendo de seu comportamento recluso, afeito aos vícios do suvinismo, resolvia desafiar o coisa ruim, que não era o Machado, mas aquele que vivia dentro dele. Em sua porta batia, ao que era recebido pelo homem, já cinquentenário e de aparência afável. Não raras vezes, Machado trazia consigo um copo d’água gelada, pois sabia que a sede era o que mais sentiam os pregadores. Mas a água nunca era para os outros, sempre era para si próprio. Bebia em pequenos goles, enquanto rebatia uma a uma as proposições de seus opositores. Seu gozo em vencer aquelas pequenas pelejas crescia à medida que a sede de seus adversários aumentava, como avolumava também a resistência deles em pedir água para o pai das trevas. Os homens da fé permaneciam naquele deserto de orgulho até não mais poder e isso era logo. Então, Machado se recolhia e soltava longas gargalhadas sozinho sempre que se lembrava da língua seca dos pregadores, cujas mentes confusas,  dificultava-lhes o argumento.
           Muito raramente, Machado ficava pensativo e até considerava mudar de jeito. Colocava umas moedas no bolso, na intenção de distribuí-las entre os mendigos do mercado. Mas assim que entregava a primeira, geralmente para a moça do balcão de caldos, que parecia flertar com ele, sobrevinha-lhe um sentimento de mudança de hábito e se sentia estranho, como se estivesse perdendo o controle sobre si. Era o suficiente para que ele passasse a balançar a cabeça negativamente diante de cada rosto miserável que lhe suplicava ajuda. Um desses pedintes, seu conhecido de longa data, costumava dizer “ a semeadura é uma escolha, Machado, mas a colheita é certa”, ao que, imediatamente, ele respondia “nada mais justo!” A premissa era uma verdade para o homem que aplicava e vivia aquela lei. Nem mais nem menos. Queria cuidar de si  próprio e responder apenas por suas escolhas. Aliás, sempre fora assim.
          Ele era um machado sozinho pelo mundo desde que a mãe morrera. Ainda criança, foi abrindo caminho pela vida, junto ao pai, cortador de cana. Até o dia em que o pai partiu para as barcaças do litoral, onde parece ter sido vitimado pelo trabalho escravo. Era o que diziam, ele mesmo nunca soube. O sofrimento da orfandade foi consumido pela urgência da vida. Pegou lombo de burro, pau de arara, ônibus fretado e gastou a juventude entre postos de abastecimento e cais dos portos de cidades litorâneas. A única irmã só lhe reencontrou quando boa parte das lembranças da infância já se haviam apagado. Não fosse um dos meninos dela, puxado a própria aparência dele, diria tratar-se de uma estranha. Mesmo essa ausência da memória afetiva não lhe trouxe sofrimento. Se era essa a vida, então seria assim. Viveria a velhice como bem queria. Dando só a si próprio satisfação. E estava de bom tamanho, matutava vez ou outra.
          E, foi pensando nisso, na suficiência da vida que tinha, mesmo sem eloquentes gestos seus ou grandes feitos alheios, que Machado foi partido ao meio pela peça solta de uma cortadeira em teste. Inacreditavelmente, as duas metades de si se mantiveram unidas, protegidas pela lâmina feita do mais puro aço, cuja serventia nunca antes havia se mostrado. Em pouco tempo todos já sabiam que o término da vida de Machado se daria ali, preso ao tronco do carvalho, cuja sombra abrigava todas as tardes as longas partidas de dominó. Não havia o que fazer os médicos diziam, a lâmina mantinha a circulação e a seiva da árvore agia como uma espécie de morfina. Qualquer tentativa de retirá-lo daquela condição seria decretar-lhe a morte precoce. Ele ouvia a todos e a tudo atinava. Abismado diante da tragédia sobre si, emudecera. Dores não sentia. Parecia anestesiado antes mesmo de ter sido. Estava surpreendentemente consciente. Até as vistas pareciam enxergar melhor. Sabia que agora era questão de horas.
           E, em pouco tempo, a polícia não mais pôde conter a pequena multidão, que se aproximava da cena desenhada de maneira tão inusitada. Não pôde ou não quis, pois parecia que algo extraordinário estava prestes a acontecer. Um milagre quem sabe. Os primeiros a chegar foram os testemunhas de Jeová, trazendo água fresca para aliviar-lhe o calor. Uma delas, uma senhorinha conhecida de Machado, acariciava- lhe a face com um tecido úmido e gelado, enquanto os outros faziam orações silenciosas ou entoavam cânticos, que agora, soavam sublimes. Os olhos de Machado estavam vívidos e luminosos. Uns diziam se tratar d’alguma epifania, outros falavam da proximidade da morte. Nem Machado sabia o que era. De repente, o mendigo seu amigo atravessou a multidão e ajoelhou-se diante dele. Silenciosamente, desatou-lhe as sandálias e começou a lavar e acariciar os seus pés. A água escorrendo fresca, abundante, misturada aos movimentos suaves das mãos do pedinte, pareciam-lhe o prenúncio dos gozos celestiais. De seus olhos escorreram duas lágrimas. Muito mais do que chorara nos últimos anos. A moça do mercadinho colheu-as com os próprios cabelos, que deixaram seu rosto impregnado com perfume de lavanda. “Você é bonito, Machado” ela disse em seu ouvido, completando “Quero me casar com você quando tudo isso passar”  Machado desejava responder com um sorriso bem largo, com uma daquelas boas risadas que dava sozinho, mas seu lábio limitou a curvar-se feito lua crescente. “Já tenho motivo pelo que lutar”, pensou.    
          Mandaram chamar a irmã, que chegou num instante trazendo o filho, sua cópia fiel. O menino quis enlaçá-lo mas a mãe impediu. “Tio, eu vou estudar, vou ser doutor”. “Vai sim”, a mãe completou. Machado começou a lembrar-se daquela irmã brincando no terreiro de casa. Subitamente seu rostinho risonho veio parar nos olhos dele. Lembrou-se de como eram amigos inseparáveis. Ela segurou sua mão e disse que nunca mais o deixaria. Ficou sentada bem ali, junto aos seus pés. Logo o sol foi encoberto pela sombra das nuvens, quando um raio rasgou o véu da tarde e, uma brisa suave começou a soprar. Tudo ficou silencioso. A multidão assentada em sua volta podia ser vista de longe. Todas as famílias da cidade conversavam baixinho como se fosse um velório. Velório? Sim, era o seu velório ao contrário. Estivera morto até aquele dia em que milagrosamente renascia. Os cânticos dos homens se misturavam aos dos pássaros, que se mesclavam ao balouçar das folhas das árvores, ao tilintar das pulseiras da moça, ao chacoalhar das contas do rosário, ao gotejar da água, onde seus pés e cabeça eram continuamente molhados. Viu seu sangue escorrendo e fazendo um riozinho como os riachos sertanejos, veios fracos a desaguar no São Francisco. Viu-se em uma canoa com o pai seguindo para o mar aberto.
Adelaide Paula, setembro, 2021.  

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Adelaide Paula
Enviado por Adelaide Paula em 18/09/2021
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