Os Ecto-Drummers
Os caras tocavam vestidos de fantasmas.
Eles agrediam as guitarras, baixo e bateria, enquanto os lençóis brancos dançavam como se uma brisa tivesse correndo por ali.
Mas não tinha como ser isso. O bar ficava no subsolo dum prédio comercial. Provavelmente era algum efeito especial. Um ventilador muito bem escondido, talvez.
O fato é que a galera estava muito empolgada. E as duas semanas de espera pareciam ter mesmo valido a pena. Os Ecto-Drummers era uma banda indie em ascensão. Por quê? Bem, diziam que o conjunto soava como um grande martelo invisível tentando arrebatar sua alma pra fora do corpo.
E era assim mesmo.
Eu sentia os músculos vibrarem. Depois, vinha uma leveza muito boa. Uma paz. E esse ciclo se repetia e se repetia e se repetia.
E o publico estava delirando, debruçado na borda do palco.
As poucas mesas estavam praticamente vazias. Ninguém queria ficar sentado. Mas havia uma pessoa que parecia não estar curtindo muito o som.
Uma velhota, de pelo menos uns oitenta e tantos anos, sequer olhava para a banda. Sua cara enrugada estava concentrada num saquinho sujo de pano, que ela remexia com os dedos ressecados.
Que diabos essa vovó tava fazendo aqui?
Depois disso, notei outra pessoa que perdia o show. Uma garota loura estava tombado ao meu lado, provavelmente bêbada.
E não dava pra dizer que eu estava sóbrio, porquê tenho quase certeza que vi uma garrafinha de Heineken sair flutuando da mão de alguém e espatifar no chão.
Aquela redoma de fumaça de cigarro, junto com o álcool e a música que parecia ser de outro mundo, afrontava a sanidade de um jeito bastante violento.
Mas era maravilhoso.
O baixista se meteu num solo tão terrivelmente potente, que achei que minha cabeça ia explodir. Ela tremia feito um liquidificador.
Próximo do palco, um rapaz bastante gordo e cabeludo caiu pra trás e derrubou uns três junto com ele, feito pinos de boliche.
Impossível entender uma coisa dessas!
Aquela era a primeira música da noite. Na verdade, a introdução da primeira música, o instrumental, e tinha gente entrando num coma alcoólico tão rápido.
A melhor parte nem havia chegado ainda. O vocal. Falavam muito sobre ele.
O guitarrista tocou as cordas com força, mas parecia ter tocado as pessoas, já que mais oito estavam fora de jogo. E ninguém parecia ligar. O amontoado de gente desacordada servia de tapete pra quem ainda tava curtindo o show.
Nesse ponto comecei me preocupar.
Eu já tinha mandado pra dentro pelo menos umas três cervejas. E se fosse isso que estivesse fazendo todo mundo desmaiar...
Olhei pra trás e vi que a nuvem de fumaça agora estava muito maior, densa e brilhante. E eu poderia jurar vi um rosto ali. Ou mais. E a velhota da mesa olhava para o palco. Aqueles olhos pequenos, junto com o nariz bicudo e curvado, fazia ela parecer uma ave de rapina pronta pra atacar.
No palco, o vocalista segurou o cabo do microfone.
Aquilo parecia interessar a mulher.
Na mesa dela tinha gravetos presos por barbantes montados em formato de cruzes. E no centro de cada um deles, um pedacinho de pedra, ou cristal, balançava como um pêndulo. E também um frasco redondo.
O vocalista soltou a voz. Um grito grave e agudo ao mesmo tempo, se é que é possível. Não dava pra acreditar que alguém conseguia produzir um efeito daquele com a garganta...
No fundo dos meus tímpanos eu senti uma espécie de sucção, como se tivessem enfiado um aspirador de pó dentro do ouvido.
Os outros caras da banda tinham parado de tocar.
Quem ainda estava consciente apertava a própria cabeça com força, alguns ajoelhados, outros deitados...
E quando senti uma faca atravessar meu cérebro, romper as sinapses, a visão turvar, as pernas ficarem bambas, me joguei numa cadeira próxima e ainda consegui ver a coisa mais estranha do mundo; a nuvem de fumaça agora rodava numa espiral, como água sendo puxada pelo ralo da pia. E meu corpo parecia ter a consistência de liquido.
O grito do vocalista estava pior do quê antes. Mais alto. Mais angustiante. Mais mortal.
Eu estava prestes a desmaiar, prestes a morrer, talvez, ser tragado por o quê quer que fosse aquilo, quando uma garrafa foi atirada por cima da minha cabeça e tudo ficou mudo. Como se tivessem desligado o volume do mundo, como se a realidade tivesse prendido a respiração.
Não havia mais gritos.
Não havia mais gente gemendo de dor.
Uns passos apressados quebraram o silêncio. Alguém corria.
Por todo lado as pessoas levantam, desnorteadas, se apoiando uns nos outros. O turbilhão de fumaça sumira.
No palco, os instrumentos estavam largados no chão e, entre eles, a velhota se agachou e arrolhou o frasco de vidro que agora não estava mais vazio. Tinha água suja ali dentro. Na verdade, algo que parecia ficar entre o estado liquido e gasoso. Ou poderia ser uma gosma viva. Definitivamente viva, pois a coisa girava e girava.
Os Ecto-Drummers tinham desaparecido.
Tinham desaparecido não só dali, mas pra sempre.
Ninguém nunca mais ouvira falar deles.
Depois de um tempo, as pessoas começaram questionar se a banda realmente existiu, já que naquela noite eles tinham feito sua primeira apresentação ao vivo. Primeira e única.
Todo mundo que presenciou aquele show macabro sabe que eles existiram. Mas não dava pra contar o que aconteceu.
Ninguém acreditaria.