A enchente
Naquela cidade, como em qualquer outra, havia pecado, havia horror.
Em uma manhã gotinhas miúdas foram caindo, num orvalho despretensioso e sem grandes perigos.
Lá pelas dez, as panelas de pressão começavam a chiar nas casas e uma pequena enxurrada prometia lavar as beiradas das ruas.
Onze e vinte meninos encapetados saíam correndo pelo portão principal do velho colégio, onde as goteiras já debochavam da infraestrutura.
Arrancavam seus sapatos, e saíam catando frieiras arroxeadas entre os dedos, naquela aguinha, ainda pouca, a lavar-lhes os maus odores dos pés.
Quando a mãe saía enfurecida a enxurrada já estava a meia rua. Ela foi dar um pulo para atravessar e catar menino pela orelha e caiu no leito do riozinho manso, formado pela chuvinha constante e fina, que já tinha alguma força de levar mãe na correnteza.
Vendo a esposa ali, divertida, dando gritinhos que mais pareciam de alegria, o pai foi se juntar a ela, pulou no leitinho do rio-chuva que se formava em frente a casa, levando o filho, a esposa e até a espingarda.
Na gritaria quase surda, ninguém viu que uma nuvem mais gorda, negona, pesada, chegava para dar volume ao leito. O sol foi embora de uma vez, cansou-se de brigar com a água. “Que desabe enfurecida.”
Na banca de alface a mulher viu as folhinhas verdes mergulhando na água amarronzada, e, passando a família náufraga, ela sorriu com ares de “bem feito”, mas não viu que também estava sendo levada.
A chuva chegou raivosa, derretendo o céu, engrossando o rio das ruas.
As velhas beatas rezadeiras, pegaram seus terços e se ajoelharam no assento do banco da igreja que a forte correnteza amontoava a todos os bancos, dentro do templo, formando pilhas na porta. O padre foi sendo levado com seu vestidão aberto feito guarda-chuva, que não lhe guardava do rancor de São Pedro.
O açougueiro desceu a avenida montado no lombo do boi morto e sangrento que viraria sopa, não churrasco naquela tarde desesperadora.
Sobre os telhados alguns poucos solfejavam o desespero das goelas, querendo socorro, que não vinha.
Por todo lado era terror e morte. Se não era na água, era no céu cinza e magoado que despejava energia, estrondos cada vez mais violentos e um dilúvio soberbo.
Os namorados passaram pelados, boiando na cama de solteiro. Os policiais nas viaturas flutuavam com os farois acesos.
Ninguém mais gritava, ouvia-se uma melodia, um surdo ritimava a agonia da morte premente, era o trovão teimoso que esgoelava. As horas iam derretendo no relógio sórdido do temporal. Os telhadinhos das casas anunciavam mortes sufocantes, finais trágicos, coletivos e aguados.
Os peixes do rio deram as caras em cima das telhas sujas. Um cachorro latia solitário no alto de uma escadaria. O poste faiscava e o povo gemia sobre tabuinhas, colchões, embarcações improvisadas.
As velhas da igreja entoavam um cântico embaraçado, enquanto o banco girava frenético tonteando-lhes as pregas vocais, até serem engolidas pelo redemoinho do bueiro.
Um menino, surfista sem mar, viu ali uma chance de surfar, pegou a tampa da caixa de isopor e se aventurou de pé pelas águas escuras, sentindo-se o Deus do trovão, escutando a tempestade, sentido o vento gelado e as facadas que as grossas gotas lhe davam no peito, trazia um martelo na mão. Só ele sorria da aventura doida do santo porteiro, se sentia um deus ali no meio daquela agonia.
Uma moça penteava os cabelos, enquanto se pendurava numa torre de aço.
O pastor vinha sendo levado com a Bíblia embaixo do sovaco, o terno e gravata submersos, um braço pra cima tentando se agarrar em algo.
A mulher que estava na ginecologista vinha de pernas para o ar em cima da maca, com tudo à mosta, o útero sem manchas, os seios sem tumores, a cabeça girando, vomitando sem parar.
Agora todo mundo era igual, todo mundo surfava na mesma onda, escondia a cabeça quando um raio luzia no céu, se afogava nas gotas sulfurosas. Até o prefeito estava no meio do alvoroço, mas ele tinha um submarino, só ele e sua família estavam bem.
Enquanto o mundo se acabava, a cidada inundava, as famílias mergulhavam involuntariamente, as mocinhas choravam de medo, os advogados distribuiam habbeas corpus para livrar suas almas do inferno, era uma bagatela, qualquer duzentos, trezentos resolvia.
O pastor se agarrou a um poste qualquer vendo aquele desaforo.
O prefeito, por sua vez, não podia abandonar seu povo. Resolveu abrir as portas do submarino, deixando vulneráveis os seus, resolveu dar as caras, fazer alguma campanha, colocou pés de pato, cilindro de oxigênio, máscara de mergulho e roupa de neoprene. Foi lá em cima, ter com o povo. Subiu no palanque da sua embarcação. Viu gente descendo sem ter onde segurar, viu gente se afogando e gemendo, viu gente com medo, viu o mundo se acabando e fez campanha, gritou alto para todo mundo ouvir, disse que faria de tudo para negociar com São Pedro, se ofereceu para resolver pessoalemente a pendenga.
O santo não gostou de ver seu nome assim na boca de gente vã. Lançou um raio poderoso, o mais forte de todos sobre a cidade, a água conduziu tudo, levou o choque a cada corpo, a cada menino, a cada mãe, a cada animal, a cada morador, a cada um que ali estava morrendo, se afogando.
Para alguns foi um golpe de misericórdia, morrer mais rápido é melhor que saborear a morte.
Para outros foi um fim triste, pois se agarravam aos cabelos da esperança.
Todos os corpos boiaram num fúnebre castigo. A mulher de pernas abertas não viu seu corpo ser tocado pelo corpo do prefeito, seu ex-amante.
As velhas beatas não perceberam o roçar do corpo do padre, ao qual já estavam habituadas em vida.
O casal de namorados não pôde sentir seus corpos se enroscando uma última vez. Os meninos não viram sua experimentação libidinosa precoce e morta sobre os corpos das meretrizes. O pastor não experimentou a aventura de vender os terrenos no céu. Os advogados esturricaram com os habbeas corpus nas mãos, a fofoqueira da banca de alface não percebeu que sua língua estava sendo engolida, o marido traído e que também traía não sentiu nenhuma mão tocando seu corpo uma última vez.
Quando o céu silenciou, quando a nuvem embranqueceu, quando a onda se acalmou, foi que o socorro chegou sobre a cidade-cemitério, onde toda uma população boiava com seus corpos pecadores, concupiscentes e vis. O helicóptero então, ficou sobrevoando estupefato, seria maldade do santo? Seria merecimento do povo?
Foi quando avistou lá no alto do morro, uma coisinha brilhando, parecendo fazer sinal, piscando, era um pedido de socorro, sem dúvidas.
O helicóptero se aproximou, ele tinha esperanças, o helicóptero tinha tudo o que precisava para resgatar quem quer que fosse, o helicóptero, este sim era bom.
Então viu-se um menino, com um martelo na mão. No alto de uma árvore. Refletindo a luz do sol, de onde também refletiu o raio que São Pedro havia destinado a ele.