O último angolano à prova de balas

[...]

Tinha descido na Tecnocarro, vindo do Sambila, local de residência. Logo que se livrou do táxi, espreitou o relógio no pulso para ver se ainda estava no tempo recomendado, olhou os movimentos daquela paragem: pessoas descendo e subindo, cobradores chamando, camiõesde contentores, uns em circulação outros descarregando mercadorias nas lojas próximas, poeira, sol, zumbidos humanos, faziam aquelas mediações.

"Por isso é que não gosto de vir a estas bandas, a pessoa fica tipo trabalha na padaria", pensou, enquanto cruzava aquela entrada da Sucanor e mirava de um lado ao outro a ver se apanhava um mototaxi para levar-lhe ao lugar que anotara.

— Leva-me ao Papá Lupini — disse Imortal, após chamar o motoqueiro. — Quanto custa?

— Na clínica espiritual, mó kota?

Imortal amarrou o rosto, limpou o suor com um lenço e fitou firmemente o motoqueiro que no seu entender, tentava insinuar coisas, ao invés de simplesmente responder a uma simples pergunta.

— Conheces outro lugar chamado Papá Lupini?

— Não mó Kota. Só que...

Bem que o motoqueiro tentou retorquir a resposta e fora rispidamente interrompido.

— Então pronto, leva-me só e mantém-te calado!

A entrada daquela residência, casebre ou então santuário, era misteriosa, logo a partir do beco que dava acesso ao mesmo. Havia um monte de figuras de madeira completamenteestranhas, criaturas místicas, entidades espirituais ou sei lá o que eles rezavam. Imortal aproximava-se à entrada mas em passos lentos e com uma das mãos jogadas à cintura, em prontidão para ferir quem ousasse fazer-lhe mal. Ele examinava cada item que pendia em cada canto, se questionando sobre a utilidade dos mesmos.

*

Manuel Kinganga, Nelo Imortal como se apelidara, sempre mostrou-se muito interessado no mundo do ocultismo, um desejo que já ardia desde a sua adolescência, mesmo antes de ingressar na corporação da Polícia Nacional. Há rumores de que ele tinha alguma coisa a dizersobre a morte do seu irmão mais velho, há dezassete anos, quando Imortal ainda tinha os seus 16 anos. Naquela altura, o irmão tinha apenas vinte e três anos e tinha conseguido entrar para a PIR, tornando-se o segundo orgulho da família, atrás do seu pai que na altura era o superintendente-chefe. Porém, de acordo as bocas do povo, o menor sempre invejara o irmão, por ser o mais velho e sempre o privilegiado. Dado que, após nove meses de exercício exitoso da profissão, Kwangana, o irmão, tinha sofrido uma crise repentina e desfalecido num hospital,logo de seguida. A autópsia havia revelado o que mais se temia, morte por envenenamento. Os familiares alegaram que, dias antes do incidente, os dois irmãos tinham saído juntos em convívio, coisas que raramente acontecia. No final do dia, o mais velho apareceu totalmente bêbado, outra raridade. Foram acusações e mais acusações, mas ninguém conseguiu provar nada e com o tempo, o mal-estar no seio familiar foi passando, e acabaram esquecendo aqueles momentos. "O tempo cura todas as feridas!", é o que se diz por aí.

Após a morte do velho Nkanu, o superintendente, sete anos depois do infortúnio com o filho. Imortal é solicitado a ocupar uma das vagas no ministério do interior, um direito que lhe cabia, por ser filho de um oficial. Ele tinha recebido a notícia com muito agrado, na verdade já esperava que isto acontecesse, por isso mesmo, dois anos antes, ele havia começado a praticar desportos de artes marciais com o intuito de estar sempre melhor munido, quando chegasse a hora.

"Quando chegar a minha vez, serei o melhor polícia de Angola. Vai ser tipo nos filmes, ninguém vai entender nada!", dizia a si mesmo sempre que estivesse na academia a dar no duro.

Quando a sua inclusão na corporação tornou-se um facto, Imortal mudou totalmente o seu modo de vida. Tornou-se retraído para os amigos e cada vez mais distante da família. Só queria saber de trabalho e tudo o que tinha a ver com o seu destaque nele. Porém, ele usava as piores cartaspara atingir a tal fama de grande herói da pátria, era dos policiais mais arrogantes no seu grupo e adorava resolver as coisas recorrendo ao seu revólver. Conta-se que muitos infractores não tiveram nem a oportunidade de conhecer o tribunal e nem a barra da prisão, pelo facto de ter calhado nas operações de Imortal, evitando burocracias, dando uma passagem directa para o além, mais cedo. Nelo Imortal, era perigoso e totalmente letal!

Após alguns anos, tendo alcançado a patente de Segundo Sub-chefe, insatisfeito e inconformado com a sua performance, decidiu então fazer a terceira lavagem do corpo.Procurou a clínica mais famosa de Luanda, aquela de tratamento espiritual e que tem a fama de curar todas as enfermidades. Passa nas estações de rádios e tudo, a única publicidade de feitiço que ouvi na rádio em toda a minha vida é daquela clínica. E se o caro leitor vive em Luanda, certamente terá ouvido também.Imortal, fora recebido de forma calorosa naquele dia de sábado, o primeiro dia a frequentar aquele lugar. Havia chegado no período entre as dez as doze, como lhe recomendara Kilembe, seu bom amigo e colega, cliente do grande mago Lupini.

— Olha, tenta chegar pelo menos às dez horas, no sábado. É a hora menos frequentada e que o kota está calmo. Ele faz rituais mais eficientes quando não há muita agitação. — Fora lhe dito.

Ele carregava um papelinho onde havia anotado as partes essenciais do endereço. Trajava a civil, uma calça jean, uma t-shirt e um casaco preto para camuflar a makarov quadrada, novinha em folha que ele tinha espetado junto a cintura.

— Quem é? — Uma voz feminina esbaforiu do interior, logo após Imortal ter batido com duas palmadas.

— Nelo. Sou Nelo e vim para uma consulta!

A senhorita chegou até a porta, atentou o indivíduo da cabeça aos pés sem dizer uma única palavra. Virou-se para dentro e convidou-o com um balançar da cabeça. Imortal reparou naquela expressão da senhora gordinha, rosto rechonchudo e anémico, com o muzumbu levantado, exalando aquele ar grosseiro. A senhora aparentava estar acima dos quarenta anos e usava um vestido largo de pano de várias tonalidades. Imortal sentiu um calafrio escalar suas entranhas, só de ler a expressão sombria da dikota.

"Entro nessa merda ou desisto?", pensou.

"Sandinga! Quero poder!"

Ao tentar entrar, a senhora travou-o com uma mão sobre o ombro e meneou a cabeça, sugerindo alguma coisa na cintura.

— O que foi?

— Arma nu son premitido! — alertou, estendendo a mão direita em direcção a um balaio de hastes de palmeira que se encontrava ao lado, por cima de um pilão.

— Arma fugentarre espíritos!

— Mas... Ali? Nem pensar! Se roubarem?

— Quem si atrever?

— Ah, ninguém se atreve. Está bem, se vocês odizem! — resmungou e colocou o revólver conforme fora ordenado.

No interior da casa havia um forte cheiro de incenso, pelo menos parecia incenso. Um pouco de fumaça saía de outro quarto adjacente. A luz da sala era avermelhada. Ornamentos tradicionais, estatuetas de madeiras, chifres, búzios, panfletos de gurus indianos, e tudo o que se pode chamar de sombrio, decorava o interior. Numa mesa bem em frente ao quarto onde saia fumaça, havia missangas e uma tigela de esmalte de cor branca, com um líquido vermelho que parecia sangue. Imortal tinha-se sentado na cadeira de fitas num canto, onde fora indicado após explicar metade do objectivo que lhe tinha levado àquele consultório.Apenas metade, porque quando ele tentou falar o resto, a senhora disse que já sabia e que já estavam à espera da presença dele.

— Mas eu não marquei a consulta, como vocês sabem? O meu amigo avisou?

A senhorita fitou-o com firmeza e revirou os olhos, com aquele ar de que "moço, nós sabemos até o que vai acontecer em 2050".

— Quero ser invencível. Quero puder brincar no meio do fogo inimigo nos fundos do Sambila, sem ser atingido por uma única pólvora! — Fora o pedido que o Imortal fez, após adentrar naquela sala fumegada onde estava o grande mago.

— Bom... Vai ti custarre muito carro!

— Carro??— Muito Dinerro, Jove Imortale!

— Ah... Sim! Imortal? Espera aí, como conheces este nome? Eu disse que me chamava Nelo.O mago fitou-o e esboçou uma gargalhada forçada e macabra, como se tivesse ouvido algo bem engraçado, assustando até o grande Imortal. Por fim, proferiu algumas palavras num idioma bem estranho.

— Ah, tinha me esquecido que vocês vêem tudo! (risos). Pronto, estou disposto a pagar. Quanto vai me custar?

— Um bala, 30 mil kwanza e trêes dia de tratamento. Nu pode fartarre nenhuma dia, se trasarre ou fartarre, nu funciona bem.

— Só?

— Parra ficarre anti-bala. Inumigo disparra, você nu morere, nu ficarre ferida. Nada!

— Conseguem fazer isso?

— Isso nué nada!"Eu quero! Quero ser imortal, mais do que a própria palavra, mais do que a própria alcunha!", pensou Imortal.

— Quando começa o tratamento?

— Depende, jove Imortal. Stá preparrado?

O Mago requebrou a cabeça e apontou para os bolsos do massoladi.

— Ah! Tenho aqui 15 mil — disse, colocando as mãos no bolso e retirando o maço de notas de mil a cada.

— A bala vou tirar mesmo da minha pistola que deixei ficar lá fora. A outra metade do dinheiro pago na próxima vez que eu cá voltar.

E assim procederam, fizeram os primeiros rituais mesmo naquele dia, Uma espécie de banho de folhas, inalação de fumaças de um elixir preparado e uma reza em linguagens estranhas enquanto rodavam os cornos de um animal sobre a cabeça. Imortal tinha saído daquela peregrinação, totalmente ébrio, como se tivesse ingerido estupefacientes.

No outro dia — o que aconteceu três dias depois — o processo tinha sido praticamente o mesmo, tendo acordado entre as partes, finalizarem com o procedimentonum sábado, quatro dias depois da segunda sessão.O sábado tinha se passado em branco, Imortal não se fizera presente, como combinado. Apareceu apenas no Domingo. Eram doze horas, ele transpirava sobre aquela farda azul escura, e mostrava-se muito preocupado pelo facto de ter faltado o dia anterior. Segundo ele, teve quecobrir um colega naquele dia de sábado, trabalhando mesmo até na manhã daquele domingo.

— E agora assim, o ritual ainda vai funcionar? — Indagou Imortal, naquele consultório.

— Verremos o que podemos fazerrr! — disse aquele ansião de cabelo enrolado e curto, rosto pálido e esbranquiçado, que usava uma bata branca, espécie de uma burca.

— Ficarre descansado jove Imorrtale.

Depois da terapia — uma cópia daquilo que haviam feito nos dias anteriores — lhe fora ordenado que bebesse daquele líquido avermelhado que se encontrava na tigela, à saída da porta daquele quarto. Antes de entregar o copo de "sangue" ao Imortal, o mago serviu-se de uma faca e rasgou a bala que tinha recebido, despejando toda a pólvora dentro daquele elixir,aumentando ainda mais a confiança do Imortal quanto à eficácia do tratamento.Imortal, que assistia ao processo com alguma ansiedade, ficou meio assustado, ainda hesitou em receber o copo e ficou a contemplar o fundo do mesmo, após tê-lo recebido.

"Merda! Isso parece sangue. Mas sangue de quê?"

"Que se lixe, quero ser o último homem à prova debalas!"

Imortal, que dialogava no seu interior, segurou a respiração para não inalar o odor, cerrou os olhos, levantou a cabeça e despejou rapidamente aquele líquido na sua garganta, sem apreciar nenhuma pitada do sabor.

— E agora, terminamos?— Ah! Amiga, esperra! A mamã Nzuzi está trazerre o pistola.

— Pistola? Ah! A minha pistola. Mas para quê, não falaram que afugenta os espíritos?

*

No dia seguinte, nas notícias matinais, a rádio da capital falava de um policial morto, fruto de um experimento sobre uma espécie de terapia à prova de balas que o mesmo fazia, um infortúnio. O centro espiritual Papa Lupini tinha sido fechado, de acordo com a fonte, era ilegal.O dono do estabelecimento e uma das funcionárias estavam sob custódia policial, a serem investigados sobre o suposto crime, perpetrado naquela manhã de Domingo.

Luanda, aos 21 de Fevereiro de 2021

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Lucas Cassule
Enviado por Lucas Cassule em 10/08/2021
Código do texto: T7317821
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