A queda do gato

"Um descuido..." pensou Rob, enquanto seu corpo pesado movia-se em queda livre na direção do chão. No século XVII, Isaac Newton formulara a Lei da Gravitação Universal, mas isso só veio a ter sentido agora para Rob, porquanto era atraído violentamente para a enorme massa da Terra. "Se eu fosse um gato...", pensou. Definitivamente, um gato não estaria em apuros.

Foi só mais um segundo... Um impacto!... Ai... e a escuridão.

Passou-se sabe Deus quanto tempo. Ele entreabriu os olhos: "Onde estou?".

— Não tema Rob, você está seguro! — disse uma voz esganiçada.

Ele foi tomado por uma grande surpresa... Já tinha visto muita coisa nessa vida, mas o que via agora superava imensamente tudo de estranho que ele havia presenciado até então: quem lhe dirigia a palavra era um felino, ou melhor, um gato. Pode-se dizer que seu tamanho era pouco maior do que um tigre, mas, sem dúvida alguma, era um gato.

Meeowww... Rob escutou, antes que uma outra face felina se aproximasse dele.

— Ele está bem? — disse uma gata tricolor, com suas enormes vibrissas fazendo cócegas no rosto de Rob. — Não sei se está preparado para compreender a realidade!

— De qualquer forma — disse o outro gato com pelagem tigrada. —, ele poderá decidir.

Rob pensou que estava sonhando, era isso, estava deitado sobre gramíneas e adormecera. Estendeu a mão para tocar o focinho do felino, contudo esse o repeliu... Rob insistiu e levou uma dentada que o fez gritar de dor! Os dois gatos riram.

— Está vendo, Rob — miou o gato tigrado. — não é um sonho! Você está prestes a conhecer a realidade.

Nesse momento, Rob teve a certeza de que não estava sonhando e também de que o gato não quis machucá-lo, do contrário poderia ter-lhe arrancado o braço. A mordida, porém, nem sequer tirou sangue.

— Ora, Rob, — disse a gata. — se você quer nos acariciar é só pedir! Nós gostamos muito disso.

A gata aproximou seu corpo da mão de Rob para que ele pudesse tocá-la, seus pelos nas cores laranja, branco e preto eram muito macios, e ele sentiu-se mais tranquilo ao acariciá-la.

Em seguida, Rob passou a buscar compreender de forma racional o absurdo da situação:

— Como é possível que eu consiga entender o que vocês me dizem? Que os gatos são inteligentes eu já desconfiava, mas jamais que pudessem exprimir seus pensamentos numa linguagem articulada.

— Isso se deve — falou o gato tigrado. — à limitadíssima compreensão dos humanos ante a realidade que os cerca, e também ao fato de que nós gatos, mesmo sendo mais inteligentes, preferirmos deixar que os humanos pensem que são uma raça de animal privilegiada, pois nos divertimos com as suas bazófias!

— No entanto — tomou a palavra a gata tricolor. —, sempre que os humanos buscam compreender a verdade nós os auxiliamos. Somos o que vocês chamam de divindades; o povo que mais se aproximou de ter ciência desses fatos foram os egípcios. Ora, é uma pena que o culto à deusa Bastet tenha sido relegado a uma mitologia antiga!

— Isso mesmo... — tornou a miar o gato. — Éramos nós... Por isso é que muitos humanos sábios que já viveram amavam os gatos, e Mark Twain foi afiadíssimo quando disse que se fosse possível cruzar gatos com humanos, estes sairiam melhorados, enquanto aqueles piorados. Desculpe se lhe ofendi!

Rob não ficou ofendido e sim maravilhado. Agora tudo começava a fazer sentido... Os gatos faziam parte de uma realidade mais elevada que a humana, mas ele ainda não compreendia o motivo de estar ali:

— Porque estou aqui? — indagou Rob. — Eu me lembro que caí do penhasco e apaguei... Estarei morto?

— Não, Rob, você não está morto! Você está aqui porque queremos que leve ao mundo a verdade, e os humanos não ofenderão mais a divindade dos gatos. Contudo, você poderá decidir se quer mesmo se lembrar da verdade quando acordar no mundo efêmero das ilusões humanas — disse a gata.

— Você quer, Rob? Quer ser um gato? — indagou o felino tigrado.

— Sim...

— Então, volte ao mundo e faça jus a revelação que lhe fizemos! — concluiu o gato.

Rob, então, sentiu que essa realidade desaparecia aos poucos, até sumir completamente e ele dar conta de si à beira do penhasco. Ele havia sobrevivido à queda.

A partir desse momento, ele estava convencido de que os gatos eram divindades, e sua missão religiosa era levar ao mundo essa boa-nova.

Não interessa a essa história quem era Rob antes da queda, e sim o que ele se tornou depois: uma espécie de religioso totalmente convencido de sua fé e da necessidade de propagar uma nova religião.

Quando retornou ao seu povoado, já levava consigo dois andarilhos que acreditaram nas suas palavras e prometeram contribuir na construção de um templo dedicado aos gatos.

Algumas pessoas simples logo aceitaram essa nova fé, enquanto outras a consideraram obra do demônio. Certas mentes esclarecidas também aderiram. Houve lutas e perseguições, muita intolerância por parte dos cristãos. Entretanto, foi finalmente construído o templo de culto aos gatos.

Mas as perseguições continuaram, ainda mais porque o número de adeptos aumentava exponencialmente; essas pessoas tratavam seus gatinhos como deuses, tinham o hábito de subir em telhados assim como os gatos e fazer suas necessidades por lá mesmo.

Essa nova religião foi uma febre que durou sete anos, tendo Rob como líder, e fez inumeráveis adeptos na cidadezinha.

Entretanto, um dia, Rob foi desafiado por um sacerdote cristão a provar que era de fato um gato e subir na cobertura inclinada de uma igreja. Rob, o enviado dos gatos, dizia ter o espírito de um gato e viu isso como uma oportunidade de provar a sua fé. Diziam os crentes da nova religião que uma divindade felina teria dado a ele a coordenação motora e elasticidade típica de um gato.

— Sou um gato, — ele disse ao povo. — já sobrevivi à queda de um penhasco!

De fato, Rob demonstrou uma incrível habilidade ao saltar e equilibrar-se lá no alto da igreja. O padre olhava boquiaberto, e a multidão estava em frenesi.

Fiéis relataram, posteriormente, ter visto um gato branco próximo a Rob. Talvez os gritos da multidão tenham feito ele perder o equilíbrio felino por alguns instantes... Foi aí que ele pareceu tropeçar em algo... Nossa!... Rob caiu de uma altura de doze metros.

— Sou um gato — ele pensou. — vou sobreviver!

Mas, ao tocar o solo, ele não tinha a elegância de um gato... A força do impacto comprometeu seriamente seus órgãos vitais. Em questão de minutos estava morto, e, segundo os fiéis, teria adentrado o Reino dos Gatos.

Desde aquele momento, a fé das pessoas começou a esfriar e elas passaram a ver os gatinhos como meros animais de estimação. Foi o fim da religião dos gatos.

Alguns anos depois, um articulista de um jornal importante do país, ao tentar entender o motivo dessa loucura que tomou conta da cidadezinha de L... na época, escreveu essas palavras a respeito de Rob Miau, como ficou conhecido, e sua religião dos gatos: "talvez fosse um louco ou então tenha ficado louco... No entanto, arrisco-me a dizer que a sua loucura tenha se dado justamente por ter compreendido a verdade. Nós humanos necessitamos das crenças arraigadas a respeito da humanidade, porém há uma série de coisas que estão além razão e, se pudéssemos apreendê-las em toda a sua incomensurabilidade, decerto que a nossa sanidade ficaria comprometida".