O ENCONTRO SURREAL COMIGO MESMO DO PASSADO.
Eurípedes retornava do supermercado,
com duas sacolinhas nas mãos.
A máscara 3D no rosto.
A aposentadoria que não saía.
A vida difícil em tempos de pandemia.
-"Não creio. Duas sacolas e
deixei 160 mangos no mercado!"
Só um sujeito,
às portas dos 60 anos,
usaria a palavra mangos pra se referir ao dinheiro,
parafraseando a antiga cantora e
jurada do programa Silvio Santos, Aracy de Almeida.
-"Cantou bem, vai levar duzentos mangos!" Dizia a jurada.
Um corredor veio ao seu encontro. Eurípedes o reconheceu.
-"Juarez?
Não o vejo há vinte e cinco anos.
Rapaz, você está muito bem."
O outro sorriu.
-"Não posso reclamar, Euri.
Visitei, a semana passada,
uns parentes em Portugal.
O tio Adonias, que morou na rua
das Tulipas, vendeu um barco
meu ao CR7, o Cristiano Ronaldo.
Uma pechincha. Vou investir o dinheiro
numa academia de ginástica
em Americana.
Estou morando numa cobertura, na avenida Brasil. Passa lá."
Os dois eram amigos de rua e
de escola. Era notório a diferença
entre os dois homens.
-"O que tem feito, Eurípedes?"
O outro demorou pra responder.
-"Bem. Trabalhei muito.
A idade trouxe os problemas.
Casei com a Ritinha, aquela da nossa
sala. Separamos."
Juarez mediu o outro com os olhos.
-"Você era inteligente, esportista,
sonhador. Achei que estaria bem
de vida?"
Euripedes era sedentário,
vivia na pindaíba e divorciado.
Juarez estava esbelto, bem casado e milionário.
-"O cara era pobre e o mais
burrinho da escola, tendo repetido duas vezes na sexta série.
O que fez pra estar assim?"
Pensou Euripedes.
O telefone tocou.
Ele achou que era o dele mas
Juarez tirou um celular de última
geração da pochete.
-"É o meu. Alô?! Sim, é o Euripedes.
Neymar? A casa de Mangaratiba, sei.
Sou seu vizinho, craque.
Dou sim. Opa.
Firmeza, menino Ney.
Imagina. Abraço, fica com Deus."
Euripedes estava boquiaberto.
-"Você é vizinho do Neymar?
Que massa."
Juarez guardou o telefone.
-"Sim. Antes dele ir pra Mangaratiba
eu tinha um terreno lá.
Tem muitos pés de frutas lá e o
Ney quer uma muda de acerola.
Olha só. Só ir lá e pedir ao caseiro.
Tenho iates, quem sabe não passo
alguns ao craque?"
Uma BMW parou perto deles.
-"É a Paolla, minha namorada.
Tenho que ir."
O vidro do carro abaixou.
A atriz Paolla Oliveira estava
sorridente.
-"Juarez. Vamos passar no
apartamento do Marcos Dias Macedo, ganhador do Nobel de literatura? ( isso é ficção, pessoal, não ganhei ainda esse prêmio).
Ele mora aqui perto."
Juarez cumprimentou Euripedes.
-"Tenho que ir. Bom te ver, Euri.
Vou atender o desejo da Paolla."
O outro segurou Juarez pelo braço.
-"Cara, me diz o que você fez,
pelo amor de Deus, me conta.
Você está no topo, rico.
Está por cima da carne seca,
do provolone e do caviar."
Juarez sorriu.
-"Certo. Aqui está meu cartão.
Apareça às nove horas."
Euripedes estava satisfeito.
-"Eu vou, vou aparecer.
Obrigado, Juarez."
O outro entrou no carro. Euripedes ficou parado, vendo a BMW sumir no horizonte.
-"Esse barulho do motor é música.
Rapaz, o Juarez se deu bem.
Aí tem... Ninguém da turma se deu tão bem, nem o Luizinho que só tirava
notas altas e virou professor de inglês. Está cheio de dívidas e devendo aluguel."
Em casa, Euripedes olhou para
os boletos em cima
da mesa da sala.
-"Oh, céus. Oh, vida. Dureza ser
pobre no Brasil."
A noite caiu. Frio do início de inverno.
Após um banho rapidinho e
um miojo sabor galinha caipira,
ele vestiu a melhor roupa.
Chamou um carro de aplicativo.
O centro da cidade.
A avenida Brasil, charmosa e
dividida pelo rio.
Avenida iluminada, com suas belas
palmeiras.
O condomínio de luxo com
suas três torres altíssimas.
- " Rapaz. Cada apê nesse lugar custa 900 mil."
A portaria.
-" Boa noite. Tenho encontro com o senhor Juarez.
Aqui está o cartão dele.
Somos amigos de infância."
Se identificou.
O porteiro permaneceu inalterado,
olhando a agenda.
O interfone. As câmeras.
-"Sim, senhor Eurípedes.
Vou liberar."
Euripedes estava ansioso.
-"Pode entrar, senhor.
Torre Florence, cobertura.
Siga a esquerda."
Euripedes estava encantado com a beleza do lugar.
Juarez o aguardava no saguão de entrada.
-"Euri. Não queria que se perdesse.
Vamos subir."
O elevador social. A cobertura de Juarez.
-"Pedi uma pizza pra nós,
tudo bem?
Quer cerveja ou vinho?"
Euripedes quis vinho.
Juarez abriu uma adega.
-"Preferência? Vinho chileno,
português ou francês?"
Euripedes admirava a vista da cidade.
Ele afundou no sofá macio.
-"O que você escolher, Juarez.
Essa tela é de Romero Brito,
o brasileiro que fã sucesso em
Nova York. Tudo aqui é caro e
bonito."
Juarez abriu uma garrafa
de vinho chileno.
-"Venha conhecer o apartamento,
amigo. Não ligue pra bagunça da
cozinha pois o Ronaldinho Gaúcho
esteve aqui com uma galera.
Ele sabe se divertir.
Insistiu para o Fogaça cozinhar pra eles,
veja só. Eu moro mais em
Orlando do que aqui e
costumo emprestar o apê para os amigos." Juarez mostrou sua coleção
de relógios Rolex e canetas Montblanc.
-"Essas bonequinhas são da
Rússia, trouxe da última
copa do mundo.
Essa o Tite me deu, em Moscou.
Vamos comer, Euri."
A conversa era animada,
relembrando os tempos de escola.
Euripedes foi incisivo e direto, igual o Romário na cara do goleiro.
-"Diga na lata, sem rodeios,
por que se deu bem? Dá pra ver que você está por cima da carne seca, o rei da cocada preta, no luxo.
Tá com a pele boa, cabelo na
régua, parece ter vinte anos.
É traficante, engana a galera com golpes, cripto moedas ou o que?"
Juarez sorriu.
-" Achei a fonte da juventude.
Tudo graças ao doctor Rey.
Ele é meu amigo, sabia?!
O rei das cirurgias das celebridades de Hollywood."
Euripedes insistiu.
-"Rapaz. O que aconteceu pra você
se dar tão bem? Conta logo.
Se for algo ilícito vou entender."
Juarez ficou sério.
-"Quer mesmo saber?! Tem que guardar segredo, meu amigo."
Euripedes estava tremendo.
Juarez se levantou. Retirou um
quadro de Tarsila do Amaral da parede.
-"Não é o Abaporu original. É cópia.
O original está na Argentina."
Um cofre se revelou.
-"Aqui está meu tesouro, meu segredo." Euripedes riu, ao ver uma lamparina amassada sobre a
mesa de vidro.
-"Está de brincadeira.
Bebeu cândida, foi?!?
Essa coisa velha que a minha
bisavó usava na roça,
uma lamparina velha é o seu segredo?" Juarez sentou-se.
-"Sim. Lembra do seu Fernandes,
o velho português, dono de três
padócas em Sta Barbara?"
Euripedes puxou pela memória.
-" O velho rabugento que não tirava
a camisa da Lusa por nada
no mundo? Você o matou e
pegou a fortuna? Você é gay
e se casou com ele, herdando a fortuna do gajo? "
Juarez sorriu.
-"Não. Eu trabalhei pra ele durante uns meses. O portuga viajava
direto pra Portugal, fazia cruzeiros marítimos pelo mundo.
Era um bom vivant. Eu fiquei amigo dele.
Ele foi um pai pra mim.
Antes de morrer,
ele me deu essa lâmpada.
Eu, igual a você agora, não acreditei
no que ele disse."
Juarez abriu outra garrafa de vinho.
-"O portuga disse que encontrou a lâmpada na praia de Bertioga.
Ele a achou bonita e a levou pra casa.
Uma lembrancinha da viagem do
farofeiro português.
Resolveu lavar e lustrar a lâmpada. Uma fumaça surgiu e dela saiu um gênio,
um homenzinho com feições árabes.
O gênio disse que, por tê-lo libertado da lâmpada, concederia ao português
a chance de voltar no tempo.
Essa viagem ao passado seria
por uma única vez,
um único dia. O portuga resolveu
voltar a época que chegou a
Santa Bárbara d'Oeste,
no fim dos anos 60.
Ele comprou dezenas de terrenos
na zona leste da cidade,
na divisa com Americana.
O lugar era só barro, matagal
e pés de laranja. Tinha umas
dez casinhas, no máximo.
O tempo passou, a cidade
cresceu e a zona leste se desenvolveu, valorizando muito os terrenos
do portuga.
Ele vendeu os terrenos a um
hipermercado, a preço de ouro."
Euripedes estava incrédulo.
-"O portuga foi esperto. Sei não,
esta história está estranha.
A lâmpada é um portal no tempo.
É isso?"
Juarez puxou a lâmpada.
-"Exato. Antes de morrer,
o portuga resolveu me dar a lâmpada.
O portuga me disse:
-"O gênio me ordenou pra dar a lâmpada a uma pessoa de minha
confiança e amizade.
Essa pessoa teria uma só oportunidade de voltar ao tempo."
Assim, o português me escolheu."
Concluiu.
Euripedes estava interessado.
-"Eu duvidei mas depois resolvi lustrar a lâmpada. Pensei muito bem
pois teria só uma chance pra mudar
minha vida."
Euripedes se ajeitou na cadeira.
-"Deixa adivinhar. Você virou sócio do camelô Silvio Santos ou virou
agente do Pelé, ainda um garoto lá em Bauru?"
Juarez sorriu.
-" Sempre fui Durango kid e tapado.
Um zero a esquerda. Tinha que ser uma tacada genial e certeira. Firmei o pensamento e lustrei a
lâmpada do portuga com fé e força.
O gênio se libertou numa fumaceira
verde e fedorenta.
Tomei um susto pois só tinha visto algo parecido nos filmes do Aladin,
no Cine Cacique.
-"Você terá um único pedido do
grande gênio Salazar.
Uma viagem no tempo.
Uma única vez. Você deverá guardar a lâmpada e dar a alguém
especial, que terá a mesma
oportunidade que você terá agora." Euripedes estava atento.
-"Essa pessoa especial sou eu?
Puxa, muito obrigado. Como sabia?"
Juarez prosseguiu.
-"O gênio me disse na praça, quando o reencontrei. Sei lá.
Bem, prosseguindo. O gênio cruzou os braços.
-"Diga seu desejo, amo. Fale ao grande Salazar pra qual época deseja viajar?
Terá pouco mais de um dia pra ficar lá."
Disse o gênio a mim.
Eu tinha estudado a história dos computadores e escolhi
viajar ao Vale do Silício.
O gênio bateu palmas.
Eu senti a visão escurecer.
Um calor danado. Apaguei geral
e despertei nos Estados Unidos,
perto de São Francisco."
Juarez prosseguiu.
-" Na agenda marquei a casa do
Steve Jobs. A escola, os bares que frequentava, os amigos, tudo.
Sabia tudo dele. Eu o encontrei num bar, fumando com o Wosniack.
Irado demais, fantástico. Era ele,
o grande Steve Jobs, da futura Apple.
O gênio dos computadores e
celulares, o midas da tecnologia. Lógico, que na época eram totais desconhecidos, pobres e sem grana para os investimentos nos computadores mal feitos deles.
Paguei rodadas de cerveja a eles
e ficamos amigos. Fui a garagem
na casa dele. Uma bagunça de fios e eletrodos, cabos e papeladas.
Ele desenhava bem pacas.
Falou dos projetos e tal mas que tava
duro e pensava em vender
seus projetos a IBM ou outra gigante.
Eu sabia de tudo pois tinha vindo do futuro. Estava findando o dia da minha
viagem, quando mostrei os dólares a eles.
-"Eu sinto que o a tal coisa que estão desenvolvendo vai mudar o mundo,
uma nova era tecnológica.
As pessoas terão computadores em casa, nas escolas, escritórios, empresas, farmácias. Será um mundo diferente.
Algo surreal e maravilhoso."
Eles estavam boquiabertos
e admirados com minha visão.
-"Que massa, Brazilian Boy.
Não é muito dinheiro mas vai ajudar.
Vamos colocar seu nome no projeto, certamente."
Disse o Steve, entusiasmo.
Eu mal falava inglês mas aquele dinheiro falava por si.
- "Quero só cinco por cento do negócio. Não desejo muito."
Um tal de Bill Gates, um
nerd de óculos e roupas estranhas,
apareceu na casa do Steve. Eu o cumprimentei.
-"Janelas quer dizer windows.
Eu vou me indo. Windows, entenderam?" Provoquei o Bill Gates
mas o cara só ria.
Eram amigos no início de tudo e o Bill trabalhou na Apple.
-"Eu quero meio por cento das
ações de sua futura empresa, Steve."
Eles riram muito.
Era pouco o que eu pedia mas
eles não sabiam que eu
vinha do futuro.
O Steve comia uma maçã.
Ele amava maçãs.
-"Se eu tiver uma empresa, você terá seu meio por cento, brasileiro com
nome de mexicano.
Seu entusiasmo é maior
que o meu, Juarez."
Eu peguei um papel e desenhei
a maçã que ele mordeu.
Escrevi meu nome e endereço no papel. Fomos a uma feira de tecnologia.
-"Juarez. Vou usar uma maçã
como símbolo da minha futura empresa. Aqui está uma carta,
com meu nome, lhe dando meio
por cento da minha futura empresa."
Disse Steve.
Num passe de mágica, o tempo expirou
e voltei a realidade futura.
Acordei com a lâmpada do lado.
A minha caixa postal estava
abarrotada de cartas e documentos.
Os advogados me ligando. Os bancos me procurando.
Eu tinha meio por cento das
ações da Apple. Estava muito rico." Euripedes estava boquiaberto.
-"Uau. Você escolheu bem."
Euripedes abaixou a cabeça.
-"Eu não saberia o que pedir.
Sei lá, Juarez."
O outro se levantou.
-"Pense bem, Euri.
Dizem que a sorte nos visita uma
vez apenas, durante a vida toda.
É sua chance. Pode voltar e ver
a final do tri da seleção no México,
em 1970.
Ver o Sputnik cruzar os céus ou o
lançamento da Apollo 11 até a lua. A abertura do mar Vermelho ou o sermão da montanha."
Euripedes sorriu.
-"Puxa. Isso seria bom demais, ver
e ouvir o filho de Deus.
Vou pensar bem."
Juarez o abraçou.
-"Isso mesmo. Pense em você.
Uma única oportunidade pra mudar a sua vida, amigo. Volte aqui,
quando estiver pronto."
Nos quatro dias seguintes,
Euripedes fez uma retrospectiva
de sua vida. Ele ligou pra Juarez.
-"Estou pronto, Juarez."
Eles se reencontraram no apê de Euripedes. Juarez trazia a lâmpada numa bolsa. -"Tive três divórcios. Com qual delas ficarei? Estarei sozinho? Vamos nos reencontrar, Juarez?" O outro ergueu os ombros. -"Não tenho resposta pra tudo, meu amigo. Esfregue a lâmpada e confie. Após o terceiro pedido a lâmpada será inútil, fechando o gênio pra sempre nela. Eu tenho que ir, meu caro. A lâmpada é sua." Juarez saiu. Euripedes respirou fundo e esfregou a lâmpada. Nada aconteceu. Esfregou com força. -"Eita. Fui enganado." Uma fumaça saiu da lâmpada. Euripedes caiu no sofá. Um gênio apareceu. -"Ai, minhas costas. Meu terceiro e último amo tem direito a um pedido a Salazar. Uma viagem no tempo. Peça, meu caro. Use a sabedoria." Euripedes suava frio. -" Pois bem. Quero voltar aos meus tempos de Colégio Dom Pedro, em Americana. Semana da formatura. Quero me encontrar com meu eu jovem." O gênio cruzou os braços. -"Certo. Ficará no passado por um dia. Assim será mas após um dia, retornará." O gênio bateu palmas. Euripedes sentiu as pernas bambas. Um suador. As luzes. Estava num túnel de luz. Adormeceu. Ele abriu os olhos. -"Caraca. Voltei mesmo no tempo." Estava na quadra de esportes do colégio Dom Pedro. Ele olhou para o estacionamento e viu Belinas, Fuscas e Variantes. -'Que maneiro. Estou mesmo nos anos 80." O sinal da hora do recreio. Os jovens e crianças saindo das salas de aula. O homem ajeitou os óculos e se colocou no meio do jardim. A cantina da escola. Um rapazote de dezessete anos passou pela fila da sopa. -"Lá está eu, quer dizer, o Euripedes jovem." O balcão da cantina, com lanches e guloseimas do adolescente. O copo de Pepsi. -"Vou querer um pirulito Zorro." As moedas caíram no chão. Euripedes velho se abaixou e ajudou o moço. -"Obrigado, velho. O senhor é o novo zelador da escola?" Euripedes velho sorriu. Era ele mesmo, ali na frente. Cabeludo, gordo e ingênuo. O uniforme com manchas de catchup. A cara cheia de espinhas e sardas. O tênis Kichute mal amarrado. O zíper aberto. Uma lágrima rolou dos olhos do velho Euripedes. -"Não, amigo. Sou Euripedes, um visitante. Estudei aqui." O rapazote olhava pro lado. Euripedes velho viu a Nancy, a bela garota que ele nutria uma paixão platônica, nos tempos de escola. Três rapazes se aproximaram. -"Vamos ver o filme do Conan, o bárbaro. Euripedes? Ei, me dê as figurinhas da copa e da fórmula 1 que lhe dou o pôster do Schwarzenegger." Euripedes jovem sorriu e enfiou a mão no bolsa da calça jeans. Euripedes velho sussurrou ao rapaz. -"Não faça isso, rapaz. Essas figurinhas serão valiosas no futuro. Essa do Emerson Fittipaldi, na Coppersucar, valerá uma boa grana." O rapaz guardou as figurinhas.-"Não, Pereba. Rapelei o Minduim no bafo. Não quero mais o poster do Conan." Os três garotos se foram. O rapazote devorou o lanche e pediu um pastel. -"Que coisa. As moças namorando e o cara de dezessete anos trocando figurinhas!" Pensou o viajante do futuro. A bola pesada de futsal veio no ar, como uma flecha. Euripedes velho deu um tapa na bola antes que atingisse a cabeça do Euripedes jovem. -"Puxa. O senhor me salvou da bolada." Euripedes sorriu. -"Sim. Isso custou a perda da audição do nosso ouvido esquerdo, quer dizer, do seu. A ambulância veio até a escola e te levou pro hospital São Francisco. Você perdeu o baile de formatura, onde o Tinoquinho beijou a Nancy. Ele casou com ela e você, quer dizer, eu sofri." O Euripedes jovem nada entendeu, mascava seu chiclete Adams. -"O senhor falou alguma coisa? O senhor fala pra dentro. É esquisito." Um carro de som passou na rua, tocando um sucesso de Pet Shop Boys. O velho Euripedes sorriu. -" Caraca. Amava essa música. Eu me chamo Eurípedes. Meus pais são Helena e Gilberto." Disse o rapazola. -" Legal. Moro na Vila Dainese. É uma boa caminhada. Meus pais tinham os nomes iguais aos seus. Quer dizer, ainda têm." O rapazote arregalou os olhos. -"Eu moro lá também. Meus pais têm os mesmos nomes que os seus? Só falta ter o mesmo nome que eu" Euripedes velho apontou o Pereba. -" Me chamo Eurípedes também. Aquele rapaz, o Pereba. Ele vai se casar com a Lucinda, a briguenta da sala. Terão seis filhos. Ele é seu, nosso melhor amigo, sabia?" O rapaz riu. -"Brincou? O Pereba odeia a Lucinda cara de cavalo. Não suporta a voz dela." Euripedes velho apontou a Nancy. -"Você, quer dizer, nós não demos bola pra Nancy até que ela se mudou pra sua sala. Nossa sala. Metade da escola gosta dela mas o Tinoco vai casar com ela." O rapaz terminou de tomar o refrigerante. -"O Tinoquinho com a Nancy? O tonto do Tinoquinho? Eu acho que o senhor está delirando ou bebeu cândida. Fica falando eu, nós. Como conhece os nomes dos meus amigos?" Euripedes velho tirou fotos do bolso. -"Eu sou você do futuro, do ano 2021. Sou você com quase 60 julhos nas costas. Posso provar. Veja, o Tinoco é esse. Estudou no Senai e virou gerente do Unibanco. Esse é o Pereba com a Lucinda. Aqui o Minduim com a professora Aguimar. Tenho essas fotos pois são do futuro. " O rapaz olhou as fotos e tossiu. Ele riu. -"Brincou, velho. O senhor vem do futuro, então? O Juarez tá alí. O esquisito quatro olhos. O que ele é no futuro? É um Zé Mané que não serve pra nada, a família o detesta." Euripedes mostrou outras fotos. -"Não. Ele tá bem pacas e comprou cobertura na avenida Brasil. Aqui as fotos." O rapaz olhou e de imediato, não acreditou. -" Onde é hoje a mansão dos ricaços com área verde? É sério?" Euripedes velho sussurrou. -"Milionário. Vai ter ações de uma empresa ligada a computadores, essas coisas. Veja, essa cicatriz. Você, fomos roubar goiabas na chácara da Balsa. O Pereba, o Raul e o Baiano foram juntos. A cerca de arame, o corte no braço. Você apanhou em casa." O rapaz estava assustado. -"Ei, velho. Você sou eu!? Quando eu tiver sua idade vou estar tão caído assim? Cruzes!" O rapaz se benzeu. -"Ei, Euripedes mais novo. Olha o respeito. Estou assim por causa de você, quer dizer, sei lá. Por causa de nós. Tenho culpa também. Você não está na quadra como os outros, não gosta de ler nem é popular com as gatas. Olha sua roupa! Que asqueroso, Eurípedes! Eu, nós vamos terminar o colégio aos 20 pois repetiremos ano que vem, quando iremos estudar no Heitor Penteado. Vamos dirigir só aos 23 pois papai não deixa ninguém pegar o Del Rey. E daremos o primeiro beijo aos 25, não será bom. Você será coroinha do padre Itamar, na igreja São Domingos. Vai odiar quando a Júlia nascer, deixando de ser filho único e mimado. Não passaremos em concursos públicos e teremos que ralar em dois trampos para aumentar o orçamento. Conseguiremos a casa própria só aos 48, alí perto do shopping de Sta Barbara, num condomínio novo." O garoto sorriu. -"Não entendi bolhufas. Quer dizer que no futuro, lá nos anos dois mil e bolinha, Santa Barbara vai ter um shopping? Americana têm quantos shoppings, uns seis?" Euripedes velho concluiu. -" Exato. Eu vim de 2021 e Americana ainda não tem shopping! O Chico Sardelli, esse que é dirigente do Rio Branco, ele é o prefeito atual. O Cine Cacique fechou, virou hotel e galeria de lojas. Rio Branco e União Barbarense disputam a quarta divisão do futebol. Americana teve muitas tecelagens fechadas, devido ao tecido chinês, já não é mais a princesa tecelã. Vivemos uma pandemia, um vírus chamado Corona, surgido na China, vai matar milhões de pessoas no mundo. No Brasil já temos 500 mil mortos. Eu já fui vacinado, graças a Deus." O jovem estava boquiaberto. -"Só falta você dizer que o Donald Trump, do Rockfeller Center, é presidente dos Estados Unidos." Euripedes velho pôs a mão no ombro do moço. -"Não mas já o foi. Trump foi presidente dos Estados Unidos sim. O atual é o Biden. Tancredo Neves será eleito presidente do Brasil mas não será empossado. Michael Jackson não chegará aos 60 anos e Madonna ainda estará no auge, assim como a Cher." Euripedes jovem sentou-se no chão. -"Pára. Tenho que ir ao banheiro. Vou fazer nas calças de tanto rir Só falta dizer que a rainha da Inglaterra tá viva e inteiraça?" Euripedes velho ficou sério. -"Exato. A rainha tá na ativa. O computador invadirá as casas e será popular. O sertanejo sofrerá uma transformação radical, com artistas jovens e até mulheres fazendo sucesso. O mundo estará globalizado, tecnológico demais mas o ser humano está destruindo o planeta com lixo e queimadas. Há muita desigualdade, violência e fome." O rapaz se empolgou. -"O Brasil será campeão da copa de novo? Que barato saber o futuro, velho." O sinal tocou. -"Tenho que entrar. Aula de educação artística." Disse o rapaz. -"Vai lá, Euripedes. A gente se vê na saída da escola." Euripedes ficou olhando o rapaz se misturar aos alunos. -"Melhor nem mostrar celular a ele, coitado. Pode pirar na batatinha." Ele perambulou pelo centro da cidade. -"Sensação estranha ver essas lojas que não existem mais. G.Aronson, Buri, Mappin, Mesbla, BCN, Banco Safra, Papelaria Apollo, bar do Garoto, Arapuã e outros." O calçadão tomado de gente, as lojas de tecidos. As tevês antigas nas lojas. As ruas do calçadão com os paralelepípedos. O trem de ferro apitou. Euripedes sorriu ao ver a plataforma lotada de passageiros. A escola Pitágoras do outro lado da linha férrea. Esticou até o mercadão municipal, ponto de encontro tradicional. Passou em frente ao salão social do Rio Branco Esporte Clube, na avenida Fernando de Camargo. Cinco jovens desciam a avenida e ele reconheceu os jornalistas Zaramello Jr, o Peninha, Jota Júnior, Rogério Assis e Fofão. -" Que massa! Só faltou o Antônio Edson e o Veronese!" Exclamou. Ele visitou os supermercados Minibox e Batagin. Entrou na igreja de santo Antônio. . Os carros antigos, poucos prédios, as pessoas com roupas coloridas de néon e ombreiras. Uma nostalgia boa. As moças com calças pantalonas. Ele voltou a escola. O pipoqueiro em frente. O sinal. Euripedes velho viu o rapazola Euripedes sair. A bolsa pesada de livros. -"Vamos tomar um sorvete? Eu o acompanho até sua casa, depois." O garoto sorriu. -"Nossa casa, você quer dizer. É estranho ver a gente mais velho." Sentados num banco da praça comendador Muller, um silêncio se fez. . O prédio da atual biblioteca ao fundo. -"Tenho pouco tempo, meu amigo. Podemos nos dar bem se seguir alguns conselhos." O rapaz devorou o sorvete. -"Que você não seguiu e quer botar a culpa em mim?" Euripedes velho concordou. -"É, mais ou menos. Eu me arrependo de muitas coisas, sabia? Eu sei que errei muito. Sempre pensei que, se tivesse a chance de voltar no tempo, faria tudo diferente. Estaria bem melhor, sabia? A gente quando jovem quer fazer coisas mirabolantes mas o tempo passa rápido e não fazemos nada do que queria fazer. O que deixamos de fazer na juventude vai afetar nossa vida futura, para o bem ou não. Se nossa vida vai mal ou não está como gostaríamos, não é culpa da sociedade, do sistema, da família, entendeu? Não segui metade dos conselhos do papai e falhei nos cuidados com a mamãe. Poderia ter estudado mais pra conseguir uma profissão melhor remunerada e assim dar mais conforto aos velhos. As chances até apareceram mais eu não estava preparado. . Você tem que se esforçar nos estudos, Euripedes. O Senai é uma grande oportunidade de crescimento. Muitos de nossos amigos de escola estudaram lá e estão bem de vida. Vão abrir, daqui a alguns anos, uma agência do INSS em Americana. Aqui está o caderno de questões e o gabarito. Talvez ache errado mas pense bem. Guarde isso com carinho pois vai trabalhar pouco e ganhar muito." O rapaz pegou o caderno. -"Está bem mais não é correto fazer isso." Euripedes velho continuou. -" Você saberá o que fazer. Aqui estão os resultados de algumas loterias. Dê algumas dicas ao tio Olegário, que sempre joga e nunca ganhou nada. Ele vai ficar feliz e sairá do aluguel. Seja discreto e não revele seu segredo. Você poderá jogar só quando tiver dezoito anos." Eles caminharam pela avenida Campos Sales. -"A discoteca Squalidus, quanta saudade! Em 2008 vai ser lançada a mega sena da virada, aqui estão os números sorteados. Mantenha segredo sobre isso e leve os velhos pra uma segunda lua de mel pela Europa." O rapaz guardou os papéis no bolso. -"A Nancy. Ela ama bomba de chocolate e livros da Clarice Lispector, tipo Poliana. Esse é o ponto que você poderá usar pra conquistar o coração dela. Incentive pra que ela exerça o curso de psicologia, coisa que o Tinoco não fará e a deixará infeliz. Deixe o refrigerante de lado e invista nas artes marciais. O tio Ademar tem uma academia de karatê e você nunca entrou lá. Isso o deixará mais forte, saudável e disciplinado. Pare de abrir garrafas com os dentes e morder todas de canetas pois eu sofri muito no dentista Flávio Spinelli. Chegaremos aos cinquenta com apenas três dentes originais e isso é péssimo. Minha imunidade é baixa e sofreremos muito na pandemia, meu amigo. Use boné e protetor solar, até em dias de chuva pois teremos câncer de pele aos 42! Beba muita água, meu jovem. Leia muito e faça palavras cruzadas. Em 94 vão mudar a moeda e confiscar a poupança dos brasileiros, cuidado." Eles andaram por um bom tempo, até chegarem ao bairro onde Euripedes morava. -"Não jogue aquele Nintendo no lixo, ele será raridade no futuro." Ele viu, de longe, os seus pais na calçada. -"Lá está o velho Sebastião lavando o Del Rey. A casa tá precisando de reforma. Que saudades." Euripedes velho chorou. -"Não posso entrar. Não quero que me vejam. Converse mais com eles e ajude mais a mamãe. Curta cada momento com essas pessoas pois são nossos primeiros e melhores amigos. Acho que é só isso." O rapaz enxugou as lágrimas. -"Desculpa. Nós choramos a toa. Vou me esforçar pois lembrarei de você e não quero ficar assim não. É brincadeira, Euripedes velho." Euripedes sentiu um torpor e a vista escureceu. -"Estou indo embora para o nosso futuro, garoto. Mais uma coisa, o Corinthians será campeão da libertadores e do Mundial da FIFA, acredite. Cuide-se, rapaz. Adeus." Euripedes acordou na garagem. O calendário mostrava o ano de 1021. Ele se levantou num salto. O Del Rey de seu pai estava alí, na garagem. Conservado e lindo. -"O carro do meu pai. Deu certo. O rapaz fez tudo direitinho!" Ele abriu a garagem. Seus pais regavam o jardim.-"É o mesmo bairro, a mesma casa mas é um sobrado agora. Estou de volta." Ele abraçou seus pais. Sentia-se bem de saúde, o corpo definido e forte. -"Agora deu pra tirar um cochilo na garagem, vovô Euripedes? O almoço está pronto." Ele se virou. Nancy segurava uma criança. Ele beijou a esposa. Ficou um tempo admirando a mulher. -" Está estranho hoje. Seu pai tem uma Ferrari mas morre de amores por carros antigos. Sua neta está com fome." Euripedes vibrou por dentro. -" Minha neta? Sou avô?! O danadinho do Euripedes jovem conseguiu. Que bom." Euripedes beijou a esposa Nancy. -"Nosso filho se formará em Harvard. Temos que planejar a viagem, querido." Disse Nancy. A casa era luxuosa. Os móveis modernos. As telas de Monet e Van Gogh nas paredes. Euripedes foi até o quarto. Um cofre atrás de um quadro de Romero Brito, presente do amigo Juarez. Ele abriu o cofre e tirou a lâmpada amassada de lá, ficando alguns segundos admirando aquele objeto. SE VOCÊ TIVESSE A MESMA OPORTUNIDADE DE VOLTAR NO TEMPO, O QUE FARIA? F I M