COMO SÃO BELOS OS PÉS DO MENSAGEIRO.
Itália, 1477. O jovem monge franciscano fraquejou e caiu ao longo do caminho. O sol forte. -"Não posso desistir." Disse a si mesmo, se colocando de pé e retomando a oração. As sandálias gastas e cheias de buracos de tanto andar. Mentalmente calculou que andara por três dias inteiros. Fora enviado a uma cidadezinha no Piemonte. -"Vai para Monte Loreto, irmão Felipe? Uma cidade de ateus e gente violenta, na divisa com a Emiglia Romana, a caminho de Milão." O jovem Felipe ficou surpreso. -"O superior não disse nada disso para mim, irmão Lucas. Aceitei a missão com o coração alegre pois é minha primeira viagem anunciando o evangelho." O monge mais velho o advertiu. -"Deveria ter pedido um tempo pra pensar, antes de ter aceito. Monte Loreto é muito rica. Tem uma capelinha mas está fechada pois a população não liga pra religião, só para o pecado e luxo. Eles mataram os três missionários que foram pra lá. Que Deus o proteja." Aquelas palavras não saiam da mente de Felipe. Ele viu uma caravana se aproximando. -"Aleluia. Vou pedir água e um pedaço de pão." Uma carroça e quatro cavaleiros a frente de seis pessoas a pé. -"Boa tarde, jovem. É um monge." Disse um homem bem vestido, líder da caravana. -"Boa tarde. Preciso de água, por favor." Disse o religioso. A cruz no peito dele brilhou com o sol. O homem no cavalo sorriu. -"Sim. Temos água." O homem desmontou e fez um sinal aos outro. Só então Felipe notou que a s pessoas estavam com as mãos amarradas. -"Não podem amarrar esses infelizes. Não podem escravizar essa gente." Um dos homens avançou com o cavalo sobre o monge. Felipe se desviou e caiu. Os homens o dominaram. Felipe apanhou muito e teve a túnica rasgada. Os homens roubaram suas sandálias e a cruz. A caravana partiu. Felipe ficou imóvel por três horas, devido as dores no corpo. Alguns urubus surgiram no céu. Ele acordou e se arrastou para fora da estrada. A sombra de uma árvore caiu como bálsamo para o jovem. Ali passou o restante do dia, fraco e muito ferido. -"Devo rezar. Em toda circunstância, dai graças. Obrigado por terem poupado minha vida." A noite caiu. O jovem se encolheu de frio e adormeceu. O sol renovou suas forças. -"Por isso ninguém quis me acompanhar até Monte Loreto. Por isso." Um dia inteiro de caminhada lenta, amparado por um cajado. Um riacho a frente. Felipe se jogou na água. Uma estradinha pedregosa e espinhenta. Os pés calejados. Um morro era o último obstáculo. Ele subiu com dificuldade. A vila lá embaixo. Finalmente tinha chegado a Monte Loreto. Felipe exultou e gritou o mais alto que pôde. -"Monte Loreto. Eu a consagro ao evangelho e ao Senhor Jesus." Uma brisa soprou de repente. Felipe desceu o morro e entrou na cidade. As casas eram belas. Alguns casarões e o calçamento em volta da praça indicavam que alí havia gente de posses. Embora pequena, a arquitetura da cidade lembrava Florença. O jovem monge sentou-se no gramado da praça. A capelinha fechada a sua frente. Ele chorou ao ver as paredes esburacadas, as janelas quebradas. A cruz estava quebrada. A capela destoava do restante das casas, com seus mármores nas fachadas. -"Veja, Ruggeri. Um missionário. Um maltrapilho." Gritou um dos quatro jovens que se aproximaram da praça. -"A morte com ele. Vamos." Ruggeri pegou terra e jogou sobre a cabeça do monge. -"Sou irmão Felipe de Assis e consagro essa cidade ao Senhor Jesus." Os outros rapazes atiraram pedras em Felipe. -"Teu pai é prefeito e deve saber que tem lixo na praça da cidade." Disse um deles a Ruggeri. Algumas pessoas voltavam de uma festa e riram ao ver o jovem coberto de terra. -"Ele andou muito até aqui, os seus pés estão em carne viva, coitadinho. Vai morrer, irmão Felipe." Observou Ruggeri. Algumas mulheres insultavam o jovem. -"Deixamos a capela de pé como sinal que não os queremos." Felipe se manteve quieto. O jovem foi apedrejado novamente. Uma das pedras atingiu sua testa. O sangue jorrou. O prefeito e sua família se aproximaram. -"Bravo, Ruggeri. Poupou meu trabalho de chamar a guarda. A esposa elegante sorria. Os três filhos pequenos. -"O que aconteceu, papai?" Perguntou Estela, a filha de seis anos. Ruggeri a tomou no colo. -"Um homem mau veio até a cidade. Ele já está indo embora." A menina loira, de olhos azuis sorriu. -"Não posso ver pois sou cega de nascimento. Me põe no chão, por favor." O boneca de tecido caiu das mãos da menina e rolou até os pés de Felipe. A menina deu alguns passos e tateou para achar o brinquedo. Ruggeri correu mas não pode evitar que a menina tocasse no jovem missionário. -"Peguei minha boneca." As mãos da menina com sangue. O prefeito tomou a menina nos braços. -"Estela. Temos de lavar suas mãos!" Gritou o pai com rispidez e raiva. A garota começou a chorar. Uma lágrima caiu sobre os pés de Felipe. As feridas desapareceram e a pele ficou lisa e brilhante mas só a menina percebeu. -"Como são belos os pés do mensageiro que anuncia Jesus." A garota apontou para o monge. -"Eu estou vendo, papai. Estou enxergando. Ruggeri, você tem mesmo olhos azuis como eu." O prefeito se ajoelhou e todos o imitaram. -"É um milagre. Minha filha foi curada." O prefeito deu ordens para cuidarem de Felipe mas ele já estava morto. O jovem foi sepultado na capela. -"Vamos abraçar a fé e construir uma linda igreja nesse lugar." Odenou o prefeito. A população passou a fazer jejum e penitência. A capelinha se tornou local de orações e louvores. Ruggeri estava feliz com a cura da irmã mas ao mesmo tempo triste por ter ajudado a matar Felipe. -"Eu vou entrar para a vida religiosa. Quero ser um missionário igual aquele jovem." Disse Ruggeri aos pais. Duas semanas depois, vinte jovens da cidade, inflamados pelo exemplo de Ruggeri e cheios do espírito missionário, decidiram abraçar a vida missionária e foram a pé até Assis. O superior e os monges se assustaram ao ver os jovens se aproximando. -"Viemos de Monte Loreto, meus irmãos. Queremos abarcar a vida religiosa." Eles foram acolhidos e abraçados pelos monges. Ruggeri e seus amigos se apresentaram ao superior da ordem. Seis monges estavam com o superior. -"Monte Loreto precisa de um cura, um padre. A população toda se converteu." Disse Ruggeri. O superior estava admirado. -"Interessante. De fato, há tempos queria enviar alguém a sua cidade, de fama tão ruim. Escolhi o irmão Lucas e ele já foi a Monte Loreto. Disse que aceitou a missão após um sonho que teve com um jovem monge corajoso. Não o encontraram pelo caminho?" Ruggeri e seus amigos estavam confusos. -"Não encontramos ninguém. Não vimos nenhum monge no caminho até aqui." Ruggeri contou ao superior sobre a chegada de Felipe a Monte Loreto, a cura de Estela e a conversão do prefeito e da população. -"O senhor enviou Felipe de Assis a Monte Loreto. Eu joguei terra e pedras nele. Nós o sepultamos na capela." O superior olhou para os monges. Um deles apanhou um livro grosso e o abriu na mesa. -"Eis a listagem de nossos mosteiros. Os nomes estão listados por ordem alfabética. Não há nenhum Felipe, meu jovem." O monge Lucas tomou o último gole de água. O estômago roncou. Ele viu uma árvore frondosa, a beira da estrada. -"Meus olhos não me enganam, aquilo são figos? Espero não ser miragem." O monge robusto correu até a árvore. Abraçado ao tronco, olhou para o alto e deu graças. Com esforço, conseguiu subir. Um grupo de quatro cavaleiros com uma carroça ligo atrás surgiu no horizonte. Lucas ouvira muitas histórias de salteadores e bandidos naquela estrada. Ficou quieto no galho mais alto da árvore, escondido entre as folhas. Ele notou que os cavaleiros estavam armados e felizmente passaram sem vê-lo. Ele desceu da árvore. O embornal cheio de frutos maduros. Dias depois, chegava finalmente a Monte Loreto. A cidade lá embaixo. -"Deus permita que eu cumpra minha missão. Que seja feita a vontade do Senhor." Ele desceu o morro e entrou na cidade. As ruas com calçamento, as casas luxuosas e casarões indicavam a riqueza dos moradores do lugar. A praça com a fonte. Ele sentou no gramado e viu a capelinha. As paredes caindo, as janelas quebradas. Um pedaço da cruz sobre a porta. Aquela capela em ruínas destoava do luxo da cidade. Alguns jovens se aproximavam. Um deles pegou uma pedra. -"Vejam, amigos. Um missionário." Lucas fechou os olhos e começou a rezar. -"Serei apedrejado e morto. Senhor, que sejam rápidos." Os demais pegaram pedras, exceto Ruggeri, o filho do prefeito. Ele se pôs a frente do monge Lucas. -"Basta. Ninguém vai apedrejar esse homem." Os jovens soltaram as pedras. -"Tive um sonho maluco no qual um missionário aparecia na cidade. Nós o matamos mas ele era um enviado de Deus." Ruggeri se apresentou ao monge. -"Sou Ruggeri, filho do prefeito Constantino. Venha até minha casa pois meu pai está muito doente." Lucas se levantou e seguiu os jovens. Ruggeri serviu pão, frutas e vinho ao missionário. O jovem rico pediu a um empregado que tirasse as sandálias do religioso. Ruggeri ficou admirado ao ver tantas feridas. -"Vai ficar aqui em casa, até seus pés cicatrizarem." Lucas não esperava aquela acolhida. -"Quê deus o abençoe, senhor." A mãe de Ruggeri chegou. Algumas amigas a acompanhavam. -"Ruggeri. O que está fazendo?" O jovem se virou. -"Esse missionário chegou a cidade. O meu sonho, eu contei para a senhora sobre o meu sonho. Está acontecendo." A mulher ficou irada. -"Balela. Sonhos, sonhos. Você é um sonhador, Ruggeri. Seu pai está inválido na cama, esperando a morte e você sonhando." Constantino surgiu. O homem magro e pálido estava de pé, na porta do quarto. -"Tenho fome." A mulher caiu de joelhos. -"É
um milagre." Gritou Suzana Ruggerii abraçou o pai. -"O senhor está andando! Mamãe, o papai está bom." O médico da família foi chamado. O prefeito estava bem novamente, sem explicação. -"A presença do missionário curou o papai. Eu creio." Afirmou Ruggeri ao médico. O prefeito acreditou nas palavras do filho. -"Vamos restaurar a capelinha, Ruggeri." O fato se espalhou. Logo, toda a população tinha se convertido devido ao milagre ocorrido com o prefeito. A capelinha foi restaurada e Lucas se tornou o cura da cidade. Ele levou Ruggeri e alguns amigos até Assis, onde se tornaram missionários franciscanos . Suzana ficou grávida. O prefeito estava feliz com o nascimento de uma menina. Estela era saudável, loira de olhos azuis. -"Felizmente, Estela não é cega como no seu sonho, Ruggeri." Disse Suzana ao filho. - A cegueira estava em nós, quando não víamos as maravilhas e bênçãos de Deus." FIM