O desorientador

- Admissões?

À minha frente, sob o umbral da porta do arquivo morto, a figura mirrada de Amos Mayfield me estendia impaciente um punhado de formulários, impressos numa fonte Book Antiqua.

- Preencha esses papéis e depois os entregue na secretaria de admissões.

- Mas eu já estou inscrito na universidade - protestei, apanhando a documentação.

- Não foi aceito como orientando do professor Ian Brandom? Então, tem que seguir os procedimentos - retrucou o homem, cara de poucos amigos.

- Está bem... - acedi. - E esse setor de admissões...

Mayfield bateu com a porta na minha cara; decerto eu estava atrapalhando alguma tarefa inadiável, ou ele realmente não gostava de ter que atender alunos no arquivo morto. Subi a escadaria para o térreo pensando que se eu trabalhasse à noite naquele lugar, provavelmente também estaria sempre de mau humor; e voltei à administração, onde estivera na noite de sexta-feira. As mesmas funcionárias estavam lá e ergueram as cabeças quando entrei na sala.

- Boa noite - saudei-as.

- Boa noite - responderam Cicely e Kate.

A chefe ergueu-se da cadeira e foi olhar os papéis que eu trazia.

- Vejo que encontrou Mayfield.

- Um tipo muito simpático - ironizei, colocando a papelada sobre o balcão. - Ele me disse para preencher isso e entregar na secretaria de admissões. Seria aqui, por acaso?

- Esse era o antigo nome da administração de discentes - Redarguiu Cicely, folheando a documentação.

- Então, estou no lugar certo? - Indaguei, esperançoso.

- Infelizmente, você vai ter que ir ao quarto andar e falar com Hector Webb - disse Cicely, me empurrando os papéis de volta. - Mas sugiro que deixe isso para amanhã, ele já deve ter saído.

Suspirei. Ian Brandom estava me dando mais trabalho do que eu poderia imaginar. Recolhi os formulários e agradeci a informação.

Ainda tinha que pegar o último ônibus que saía do campus...

* * *

Noite de terça-feira. Bati na porta maciça de um gabinete identificado como "Secretaria de Admissões".

- Entre! - Convidou uma voz possante lá dentro.

Girei a maçaneta de latão e me deparei com uma saleta comparável em tamanho e disposição interna à do professor Brandom. Hector Webb era um homenzinho moreno, de farta cabeleira negra e roupas antiquadas.

- É o senhor Hector Webb? - Indaguei, formulários na mão.

- Eu mesmo - redarguiu o homem, fazendo um gesto para que eu me aproximasse. - Quem o mandou para cá?

- Amos Mayfield, do arquivo morto, através da administração de discentes.

Webb examinou atentamente a papelada, que eu havia preenchido e assinado em casa.

- Parece tudo em ordem - declarou por fim. Carimbou e rubricou vários formulários, antes de me estender apenas uma folha.

- Pronto! Agora, oficialmente, você é um orientando do professor Brandom!

Agradeci pelo que parecia ser o término da minha via-crúcis burocrática e saí da sala.

* * *

Manhã de quarta-feira. A caminho da primeira aula do dia, deparei-me com Herman Barkle num dos corredores da universidade.

- Se eu soubesse que dava tanto trabalho ser aluno do Ian Brandom, acho que teria escolhido outro orientador - confessei.

- Quem é Ian Brandom? - Questionou Barkle, testa franzida.

- O professor que você me recomendou - retruquei. - No segundo andar, sala 253.

Barkle balançou negativamente a cabeça.

- Não há sala 253 no segundo andar; a numeração vai até 240, pode ir conferir.

- Escute: Amos Mayfield, do arquivo morto, confirmou que ele existe - insisti. - E também o Hector Webb, das admissões.

Barkle cruzou os braços.

- O setor de admissões não existe mais... e Amos Mayfield está morto há mais de dez anos. Você andou bebendo, Martell?

Na hora, fiquei genuinamente indignado; como o sujeito ousava duvidar da minha palavra? Somente alguns dias depois, fiquei sabendo que aquilo tudo fazia parte de um trote para alunos transferidos de outras universidades...

Notável como haviam conseguido que até os mortos participassem.

[17-05-2021]