Na sala do velório - Cap. I

Na sala do necrotério

Eu me encontrava ali, no meio da sala, sobre cavaletes e dentro do esquife, observado por alguns que, curiosamente, iam me ver pela última vez, talvez confirmando a morte para poderem proferir algum comentário que não fosse ouvido por mim e assim não precisarem se justificar comigo e muito menos ter que dar satisfação do dito.

Morri no dia que nasci, coincidência, e com a idade do ano que nasci, muita coincidência, ou determinismo da vida, com 16 livros publicados e outros 3 sem publicar, talvez alguém se sinta à vontade em fazê-lo, mas talvez só jogue fora os rascunhos escritos, que seja ao menos na reciclagem para que não se perca por completo e tenha alguma utilidade e os que se encontram digitados, esses é só apagar e fim.

Meu nome era Francisco Donizetti de Campos Elíseos. Francisco foi meu pai que escolheu, admirava a vida de São Francisco de Assis, sua simplicidade, modo de viver, tratar a natureza e os animais, portanto, não abria mão desse nome no seu primeiro filho, mas a mãe era devota e acompanhava as orações do padre Donizetti, fez questão de que eu também carregasse esse nome, diz que levou escrito em um papel no cartório para que quem fosse registrar não errasse a grafia, queria igualzinho o nome do padre para que eu fosse abençoado como ele. E o sobrenome composto que me deram foi bem diferente daquele que carregavam, combinaram que eu levaria comigo o sonho de um lugar que eles desejaram conhecer, mas nunca puderam, então quiseram me registrar com o sobrenome Campos Elíseos, fazendo referência à famosa avenida parisiense Champs-Élysées. Assim fiquei com o nome que tenho, ou tinha, até hoje.

Estava frio ali e chegavam flores, coroas de flores com dizeres que nunca ouvi em vida, elogios, declarações e tudo mais que alguém pode escrever sem a outra pessoa precisar ouvir. Acho estranho isso, escrever coisas que poderiam ser ditas para a pessoa, ou mesmo enviadas escritas em um bilhete, uma carta, demonstrando os sentimentos para ela em vida. Espera-se o indivíduo morrer para fazer-se as declarações, os elogios, as confissões, até mesmo alguma reclamação...morto não ouve e não se manifesta, não responde, e nem precisa ouvir, as palavras são para os que ficaram e estão ali, são para os vivos...

Tinha gente que nunca vi ali, foram no caixão e fizeram o sinal da cruz, não sei se foi para abençoar ou para confirmar a morte e dizer no seu íntimo que “foi tarde”.

Ninguém se importou com as minhas alergias, com a minha rinite e encheram o esquife de flores, eu espirra muito com cheiro forte de perfume e minha rinite ficava atacada, era horrível, mas ninguém se importou com isso e tinha flores, muito cheirosas, bem perto do meu rosto, aliás, em volta dele, quase entrando na minha boca, mas ninguém se importou com minha rinite, com minhas alergias a perfume, tanto que me limparam e me perfumaram com um tão forte que estou com os olhos vermelhos de tanta irritação, por isso estou com eles fechados para que ninguém perceba eles vermelhos e comecem a dizer outras coisas de mim que não são verdade, pois olhos vermelhos não são um bom sinal e podem despertar algumas suspeitas. Eu queria avisar das flores e para botarem menos perfume, mas ninguém me ouvia...então me calei...

As pessoas assinavam aquela lista que fica na porta, eu nunca assinei, aliás, assinava quando era criança, depois parei, nunca soube o real motivo daquela lista, parecia que você assinava a lista do próximo a ir...eu nunca tive medo da morte e nem de morrer, só não queria que fosse tão cedo e nem que fosse sofrível, com dor, quando fosse para ser que fosse de forma natural e rápida, assim como foi, por isso estou satisfeito e quanto a lista, não vou mais me preocupar o que fazem com ela.

Acho que ela ocupava um espaço e atrapalhava o trânsito de curiosos, de pessoas, eu também era curioso, mas a curiosidade é de ver como a pessoa ficou, de dar o adeus a quem nunca mais se verá, nós somos curiosos por natureza, ir em um velório e nem dar uma olhada na pessoa pode ser uma escolha, assim você ficará com outra imagem na mente, menos a dela no esquife.

A sala se enchia, esvaziava, foi um velório daqueles de varar a noite, a morte ocorreu bem à tarde e não daria tempo de o enterro ser antes de anoitecer, então ficou para a manhã do dia seguinte às 11 horas, assim daria tempo de todos que quisessem de se despedir do defunto, já não houve como fazer quando ele estava vivo.

Seria uma noite longa e uma manhã também...