A Casa Morta
Um silêncio frio e onipresente acordara a Casa de Alcides que se espreguiçara rangendo as janelas abertas. As portas da frente, também escancaradas, sorriram habitualmente cumprimentando a vizinhança. Por ali, casas dormiam fechadas, outras já acordadas conversavam com os pássaros e árvores e o sol, a pico, distinguiam-lhes que a muito passara a hora que se levantavam. Indiferente ao atraso, a Casa de Alcides esperou. Havia ocasiões em que despertava antes do alvorecer, outras que nem notava a passagem das estrelas. Era assim desde que Alcides se divorciara de Luciana, as horas eram inconstantes e desregradas de farras e solidão.
Não vira quando Alcides saiu e só voltaria a vê-lo lá pelas 20 h, se ele não se demorasse demais em algum bar. De poucos amigos, a Casa de Alcides refletia como faria para dizer ao seu habitante que a vida não podia continuar desse jeito", que o contrato estipulado era “te protejo das intempéries do mundo e tu me cuida do tempo”, assim já estava em dívida: diversas infiltrações na veia de sua parede já coçavam o reboco, as latas e garrafas jogadas no quintal atraíam ratos e baratas, a fuligem do cigarro já desbotava a última mão de tinta pintada pela própria Luciana quando eles eram felizes.
A lua deu o ar da graça, a noite partiu no céu sobre fumaça, amanheceu mais um dia frio. As mesmas portas e janelas abertas, o mesmo silêncio trouxe o vento do seu ranger e Alcides não retornou. Começava a preocupar-se, os vizinhos todos se perguntavam onde estavam seus habitantes. A Casa de Maria, que ficava ao seu lado e com a qual, secretamente, dividia um muro e dois alicerces, estava consternada. Em prantos dizia que Maria nunca passava tanto tempo fora sem um telefonema ou sem que alguém viesse pelo menos lhe trancar o portão e ligar a luz de seu narizinho. A Casa de Alcides tratou de consolá-la, contando em anedotas das discussões que Maria e Alcides tinham devido a som alto e que acabavam, em sua maioria, com ela ameaçando chamar a polícia, o que nunca fazia.
As notícias que circulavam eram as mesmas, nenhum dos habitantes voltou e todos já se alarmavam. Sendo casas de um conjunto habitacional ocupado, os dias de tamanha agitação haviam ficado no passado, quando da legalização, de lá pra cá só discórdias domésticas, vez ou outra um gatuno, o que gerava grande comoção e fofocas por semanas. Tudo estava diferente, dentro da Casa de Alcides o mesmo silêncio, mas nas outras, telefonemas não atendidos ruminavam o estômago dando uma grande impressão de fome. Havia um fato que como casa nunca se atentaram: suas comunicações restringiam-se na rua em que estavam, as notícias de outros bairros demoravam a chegar e quando chegavam nem dava pra saber se era verdade ou não, o sentido das coisas se perdia no telefone sem fio. Eram ilhas desabitadas.
Sem seus humanos os dias foram passando sempre na mesma data, não havia como mudar a página do calendário e o 14 de Julho se repetia, o tempo se desprendia de sua exatidão barata e se incrustava nas casas feito um vírus mortal que os matava lentamente. Os animais domésticos, famintos, deitavam e rolavam nas casas de portas e janelas abertas que se protegiam como podiam, derrubavam jarros, copos, pratos de armários e pias, os animais, mais ágeis, se esquivavam a procura de comida. A Casa de Alcides em vão tentou enxotá-los, não que houvesse muita comida, todavia, queria que alguma restasse, para o dia em que Alcides voltasse.
Na sua cabeça os ratos dançavam, feito piolhos, o que lhe envergonhava perante a Casa de Maria que não demorou a apresentar os mesmos sinais e se espalhou como uma praga sem poupar ninguém. No céu, longínquos pontos de fumaça se avistavam, cada vez mais frequentes. Boatos contavam que casas estavam morrendo em incêndios, que de tristeza entravam em autocombustão levando os sonhos de seus habitantes desvanecidos. A chuvas e o sol descascavam as paredes, a Casa de Alcides viu suas infiltrações comerem o reboco, expondo em ferida aberta o tijolo.
Na sua frente, a Casa de Bira, que desde antes dos desaparecimentos já não via gente, se queixava que as dores nas costas, por sustentar dois andares, cresciam e seus alicerces velhos fraquejavam. Do lado esquerdo, a Casa de Abigail, não parava de cantar hinos da igreja que desprovidos de moradores davam a impressão de uma celebração religiosa de fantasmas e mesmo depois do rádio parar ainda se ouvia, cantando baixinho, canções de arrebatamento. Da casa de trás nunca vira o rosto e nem se falavam, um acusava o outro sobre o caso dos ratos até que daquele lado já nada se ouvia. A Casa de Maria, pálida e tristonha, vivia queixando-se da ininterrupta corrente d’água que lhe atravessava do banheiro à calçada, proveniente de uma torneira deixada aberta e sua voz, dantes doce e cálida, agora era lastimosa e sufocante. Para a Casa de Alcides era doloroso ver sua amada definhando, sufocando de ausência desesperada e no seu tempo de estar forte lhe apoiava com o muro que dividiam. Viu, com pesar, quando a Casa de Bira, já idosa, veio abaixo, com um estrondo que acordou as casas ao redor em um irônico sinal de vida.
Os pássaros se divertiam a contar mentiras, diziam que os centros pululavam de gente que espremidas nas ruas se deslocavam em manada, marchando para frente, já que em fila, o impulso do primeiro raramente ganhava força suficiente para contrapor a onda que vinha detrás. Afirmavam que todos falavam a mesma língua reduzida a grunhidos intraduzíveis até para animais. Marchavam como formigas sem uma rainha e por isso, vez ou outra, um era pisoteado e ficava espatifado no chão, como as fezes dos cavalos. Comunicavam que nenhum deles jamais voltaria, pois nem sabiam para onde estavam indo. Quando souberam?
Esmaecidos, poucos restaram em si. As casas, antes alegres, se aquietaram, ainda que estivessem de portas abertas. A Casa de Alcides, na chuva ou no sol, ainda acreditava na volta do seu habitante. O que sabiam os pássaros? Estes sempre viam os humanos do alto e jogavam bosta em suas cabeças. Dentro de si tudo estava desordenado, livros empoeirados pelo chão, comidos pelas malditas ratazanas, o chão com uma crosta de limo, a tintura de Luciana apodrecida. Cria que se mantivesse paredes e telhas ainda poderia se chamar de Casa de Alcides e quando voltasse, embora maltratado, os cuidados dele lhe trariam de volta sua garbosa juventude.
Ao seu redor via tudo definhar, os portões enferrujavam os sorrisos, primeiro amarelecidos, depois enegrecidos, até que caiam os dentes de ferro. As vidraças quebradas, que antes refletiam em prisma a luz do sol, agora, quando refletidas, eram a causa das autocombustões. O capim e o mato crescido em desordem subiam as construções ficando suas raízes dolorosamente no cimento, as árvores caçoavam que o mundo era delas e as pobres casas débeis viam imensos galhos lhes invadirem e seus espinhos cortarem os olhos e garganta, nutrindo-se do que lhes enfraquecia, as casas murchavam feito flores sem água.
Nenhuma das casas fazia questão de bom dia, o mesmo vento que trazia o silêncio acordava e adormecia, sob esse guarda constante não se sabia quem estava vivo ou morto. A Casa de Maria parou de chorar e quando veio ao chão feriu mortalmente a Casa de Alcides que não durou muito tempo depois, assombrado pelo eterno cadáver da sua amada bem ao lado. Quando o tempo, seu carrasco, veio lhe buscar, apertou em seus tijolos o retrato desbotado de Alcides e Luciana, cuja separação, em seu coração, foi a causa dessa desgraça.