Quando a dor é do outro: o golpe

"O fatídico dia chegou. O dia em que a mentira, a opressão e o medo venceram a esperança na luta por dias melhores." Essa é a frase que um advogado tributarista leu em seu celular, insculpida na capa de um jornal do século passado, que encontrou na biblioteca virtual.

O jornal trazia em sua manchete jovens advogados dos tempos idos segurando uma faixa com os dizeres, refletindo as angústias daquele período.

Ele não deu muita importância, deu mais um gole no café, abriu outra aba e conferiu na página do escritório os clientes que atenderia no dia seguinte, em seguida volta à aba anterior e novamente observando aquela imagem pensou: "Pelo menos só matavam bandidos e vagabundos. Bons tempos!"

E continuou com seus afazeres noturnos, antes de ir dormir. O café não ajudaria nessa tarefa.

Ao acordar, desligou o despertador ainda sonolento, tomou coragem pra pular da cama e começar a se vestir. Havia acordado cedo por obrigação, precisava ir para o escritório, e tinha praticamente madrugado. Café demais...

Pegou o elevador e foi aguardar o uber próximo ao prédio. Aproveitou pra tomar um café na banca de jornal, já que a condução ainda levaria alguns minutos, estava presa no engarrafamento de sempre, avisou o motorista.

Um dos jornais chamou a atenção pela sua capa macabra, o país já batia um milhão de mortos diretos e indiretos ocasionados pela mortal pandemia mal combatida.

— Nossa! Esses jornais só trazem notícia ruim. Isso é normal em uma pandemia. Não podemos é ficar trancados em casa. A economia precisa girar!

Reclamou o tributarista.

O jornaleiro só assentiu com a cabeça, de forma não muito entusiasmada. Afinal, ele só estava ali, tendo que enfrentar diariamente o trem lotado, pra ganhar o mísero sustento da sua família.

— Arruma um café e dois chicletes aí, irmão.

— Qual, senhor? Esse?!

— Isso! Esse daí. Valeu!

O uber chegou. E lá foi ele a caminho do escritório, entre algumas palavras banais com o motorista; atenção praticamente total na tela do celular e analisando o valor das ações que havia comprado de uma promissora empresa de tecnologia, que desenvolvia ferramentas de trabalho remoto.

Foi quando, repentinamente, uma chamada de urgência interrompe a música "Como Nossos Pais", que ele nem percebera que tocava no rádio para relembrar o fatídico golpe ocorrido há décadas, afinal, era 1º de abril.

Mas o sinal da rádio inesperadamente é perdido, não era comum cair o sinal naquele ponto da cidade. A viagem seguiu e o Dr., continuava distraído no smartphone. O motorista colocou as músicas do pendrive.

— Aí, motorista! Rapaz, tenho tomado ivermectina para a prevenção contra esse vírus. Tu toma também?

— Claro, doutor! Melhor prevenir do que remediar. Não entendo porquê esses cientistas são contra.

— Fala não! Eles são esquerdistas. E essa máscara, esse troço incomoda muito.

O motorista riu, mas corroborou positivamente balançando a cabeça.

Quase uma hora depois, chegando ao centro da cidade, já próximo do escritório, ele percebeu uma movimentação estranha.

Exclamou o uber:

— Alguma coisa tá acontecendo. O trânsito tá todo parado naquela direção! Acho que é mais rápido o doutor ir andando daqui.

— Tem razão. Mas que diabos tá havendo. As pessoas parecem muito assustadas.

Foi nesse momento que dezenas de tanques de guerra atravessaram pelo meio da praça enfileirados e as pessoas desesperadas correndo pra todo lado. De repente, ouviu-se potentes explosões e o que pareciam ser rajadas de metralhadora.

— Que parada é essa, meu Deus! É tiro, Dr.!

— É, irmão! É tiro. Se abaixa, cara. Tô saindo. Vou me abrigar no escritório, não é tão longe.

— Vai lá, Dr.! Vou dar meia volta e sumir daqui. O bicho tá pegando, meu camarada!

No tenso caminho até o prédio do trabalho, ouviu as pessoas gritando "fora golpistas! Ditadura nunca mais!". Perguntou a um dos manifestantes:

— Tá acontecendo o que aqui, cara?

— Tu não viu?! Estão matando o povo. O presidente declarou Estado de Defesa e tropas do exército e da polícia estão em praticamente todos os Estados prendendo os governadores, os adversários políticos e todos que estão contra o governo genocida... invadiram os canais de rádio e TV e mataram pessoas ao vivo! É guerra, irm...

A fala foi interrompida por um forte barulho. O manifestante caiu ensanguentado bem nos seus pés, enquanto parte do cérebro estava pra fora, escorrendo por seus sapatos.

O advogado só arregalou os olhos em completo estado de choque, quando militares o imobilizaram sem qualquer chance de reação e o levaram pro camburão.

— Me soltem! Só estava indo pro meu trabalho. Sou a advogado, sou a favor dos militares!

— Cala a boca, comuna vagabundo. — esbravejou o sargento enquanto o espancava.

Desmaiado, o advogado, só foi acordar algum tempo depois, já sem roupas e preso num pau de arara.

— Por favor! Me tirem daqui! Eu não fiz nada!!

Um oficial apareceu:

— Fecha esse bico que tá só começando.

— Socorro!!! Não faça isso. Eu imploro!

Depois só foi possível ouvir um grito estridente de dor...

Uma nova ditadura estava sendo instaurada assim como aquela, com a qual o advogado simpatizava, ocorrida no século passado. Resta saber se o doutor sairia vivo pra contar o seu relato.

***

Brasil, 31 de março de 2035. Trechos do livro de memórias, recém-lançado, de um advogado.

LiteratoVidal
Enviado por LiteratoVidal em 03/04/2021
Código do texto: T7223091
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