O juízo Final
O juízo Final
Alexandre Santos
Na última década, o mundo passara por muitas modificações.
Modificações radicais.
Modificações definitivas.
Embora os astrofísicos dissessem que as aparências geográfica, morfológica, geológica, topográfica e climática do planeta permanecessem as mesmas, a Humanidade mudara e, por isso, a Terra também mudara. Aliás, considerando a opinião de cientistas, artistas, políticos, infectologistas, economistas, sociólogos e paleontólogos de diversas naturezas, historiadores afirmavam que, desde a Era Glacial, a Terra nunca passara por modificações tão profundas. Seguindo, talvez, a dialética, os estudiosos diziam que, mesmo sendo o mesmo, o Planeta de hoje era diferente daquele [Planeta] de ontem. Não se tratava de uma questão filosófica. O Planeta estava diferente mesmo. De fato, dispensando lupa, uma observação qualquer mostrava que, estando sujeitos a novo modus vivendi, apesar de não aparentarem modificações externas e continuarem no topo da cadeia alimentar, os homens estavam modificados, modificando, consequentemente o planeta. As observações mostravam, inclusive, que grande parte dos homens havia regredido na escala de evolução.
Estudos apontariam que, no curso da catástrofe, tinham surgido, pelo menos, duas espécies humanas - espécies que, apesar de idênticas do ponto de vista morfológico, cultivavam e praticavam modos de organização comunitária muito diferentes, o que, por si só, era suficiente para torná-las díspares.
Talvez pela proximidade histórica, embora abundantes, os registros da calamidade e da metamorfose social subsequente eram incompletos e imprecisos. De qualquer forma, nos ambientes mais esclarecidos, sabia-se que, naqueles últimos tempos, o surgimento de novas linhagens da cepa original da nova mutação do coronavírus e os sucessivos desdobramentos da pandemia tinham provocado a morte de centenas de milhões de pessoas, transformando grande parte da Terra num grande cemitério à céu aberto (naquilo que, poeticamente, Basílio da Gama chamou de 'pasto de corvos'), bafejado pelo cheiro nauseabundo, levemente adocicado, que os crematórios sanitários espalhados por todos os cantos das cidades vitimadas exalavam constantemente.
Uma hecatombe que, no dizer de muitos, significava o Juízo Final.
A tese do Juízo Final ganhava força especialmente porque, ao tempo que, em alguns lugares, cercadas pela morte, pelo medo e pelo sofrimento, populações miseráveis agonizavam a fome, a doença e os estertores próprios da Covid, experimentando o pior dos mundos, um mundo verdadeiramente infernal, em outros [lugares], comunidades tinham sobrevivido e superado a pandemia e, agora, já recuperadas, desfrutavam vida normal e começavam a dar passos rumo ao progresso, vivendo em óbvio Paraíso na Terra. Assim, nos termos da tese prevalecente, aqueles que habitavam o Paraíso eram os Escolhidos de Deus e aqueles que viviam a barbárie infernal eram os condenados ao fogo eterno.
Tudo muito lógico e muito bem explicado.
Por condenação de Deus ou infortúnio natural, dando um nítido indicador sobre o maior dos pecados, os países regidos pelo Egoísmo foram rapidamente levados à barbárie, experimentado a miséria generalizada e, sempre imersos em atmosfera contaminada, viviam constante ameaça de extinção. O caminho trilhado por estes países foi marcado pela recusa de compreender a natureza das coisas e dos tempos. Com efeito, preocupados em manter o velho sistema baseado em disputas - um regime que, dando irrelevância ao conflito de desiguais, permitia e, mesmo, estimulava poderosos a aumentar a pobreza dos pobres, açambarcando nacos das suas parcas disponibilidades para ficarem mais ricos -, muitos governos desdenharam a segurança e o bem estar das pessoas e, ao invés de enfrentar a pandemia com abordagens globais, preferiram tocar a vida como se nada estivesse acontecendo.
Assim, além de evocar princípios menores, como a 'importância de equilíbrios orçamentários' e a 'solidez da moeda', para repudiar projetos que exigissem a aplicação de recursos necessários para imunizar as pessoas e capazes de sustentá-las [as pessoas] durante longas quarentenas, os governos egoístas privatizaram a vacinação, excluindo os pobres da imunização, e forçaram as pessoas a manter as atividades econômicas como forma de obter o sustento do dia dia. Em consequência, o vírus encontrou ambiente acolhedor, não só para se disseminar, mas, também, para desenvolver novas cepas - mutações que terminaram por também infectar as comunidades ricas (que se julgavam protegidas) e, ao final, contaminar a todos, levando aqueles países à debacle sanitária e falência econômica. Marcados pela pobreza generalizada e cercados pela morte, os países regidos pelo Egoísmo se converteram em palcos de anarquia e nascedouro de hordas que sobreviviam do saque, carcomendo o que restava de organização social.
Com a banda regida pela Solidariedade aconteceu coisa diferente.
De fato, estranhamente, sobre o mesmo planeta, em contraponto surreal como se representasse um enclave celestial no próprio inferno, significativos pedaços de terra pareceram imunes ao vendaval que dizimava o resto da Terra, deixando florescer abundância e, mesmo, alegria.
Um viajante estrelar talvez não compreendesse como num mesmo planeta, podia, ao mesmo tempo, existir lugares tão díspares. Enquanto, no além do cinturão sanitário limítrofe das bandas politicamente antípodas, o coronavírus multiplicava mutações mortais, contaminando as multidões provocadas e permitidas pelo modo Egoísta de agir, no aquém [do cinturão limítrofe], o vírus tinha sido contido, restabelecendo o ambiente onde as pessoas puderam voltar à normalidade e prosperar.
Um olhar mais apurado deste viajante estrelar mostraria que, na banda próspera, regidos pela Solidariedade e decididos a proteger a vida das pessoas, depois de recorrer às milenares técnicas de isolamento e distanciamento [entre as pessoas] (e garantir a renda necessária para que, nestes períodos, elas pudessem manter o consumo dos bens necessários), os governos tinham investido em ciência e tecnologia para o desenvolvimento de vacinas e remédios contra a doença. Assim, guarnecidas por campanhas de vacinação em massa e dispensadas do trabalho para poder sobreviver, as pessoas puderam cumprir protocolos rigorosos de distanciamento e, sem ter por onde prosperar, a pandemia refluiu. Os habitantes desta banda saudável puderam, então, retomar a vida sem padecer as tristezas e torturas que afligiam a banda regida pelo Egoísmo, então duramente afetada pela pandemia.
Deste modo, criando o panorama descrito na literatura religiosa como Céu e Inferno, o Juízo Final dividiu o mundo em duas bandas: uma banda próspera e livre do vírus mortal, regida pela Solidariedade e chamada de 'Paraíso' pelos próprios moradores, e uma banda destruída pelo Egoísmo, chamada por todos de 'Profundezas', numa clara alusão ao inferno que encarnava.
Estava, pois, definida a essência do mais grave dos pecados: o Egoísmo.
Mais do que o vírus que tantos males trouxera à Humanidade, o modo de ser implícito e decorrente do Egoísmo era peça-chave do processo que dificultava, anulava ou impedia a realização bem sucedida de esforços para conter a sua propagação [propagação do vírus] e para curar a doença por ele provocada, sendo, portanto, o elemento central da maldição. Além de mais grave, se visto no longo prazo, o Egoísmo era, também, o pecado mais dispendioso e prejudicial, inclusive para os egoístas, pois, tal como um bumerangue, cedo ou tarde, seus efeitos voltavam e os alcançavam [alcançavam os egoístas], cobrando-lhes pesadas prendas.
E, assim, com homens vivendo diferentes estágios de organização social espalhados pelo Céu e pelo Inferno, distribuídos no Paraíso ou nas Profundezas conforme o grau de afetação pela pandemia, a Humanidade experimentou recomeço, dando inicio a um novo período civilizatório. Surgiu, então, uma nova Civilização. Vinha marcada pelas diferenças e pelos desníveis que caracterizavam as bandas que compunham a nova Humanidade - o Paraíso, que oferecia a qualidade de vida desejada por todos, e as Profundezas, que negavam tudo a todos. Acirradas pelas vontades e pelas ambições decorrentes do Egoísmo característico da banda infernal, estavam postas as condições para o despertar dos conflitos próprios das civilizações.
Dessa forma, reprisando o passado desde o nascedouro - fosse pela dificuldade de aprender com a história, para atender vontades incontroláveis ou, ainda, pela necessidade famélica -, as Profundezas protagonizaram os primeiros conflitos de sobrevivência e de rapina, dando início a mais uma longa história de disputas, as quais (aqueles homens não tinham como saber), pouco a pouco, se espalhariam por todo o planeta e, um dia, terminariam por provocar o fim daquele novo ciclo civilizatório, dando início a um outro.
A Terra continuava a girar.
(*) Alexandre Santos é ex-presidente da União Brasileira de Escritores e coordenador nacional da Câmara Brasileira de Desenvolvimento Cultural