A VOZ DA EMOÇÃO (De Estar Contigo)
A VOZ DA EMOÇÃO (De Estar Contigo)
— “NÃO FOI DE EVA E ADÃO que nasceste. Vieste do profundo mar e de seus abismos de espermacetes. Talvez do vômito de cachalotes tenhas sido gerado. Milhares de milhões de anos se passaram até que a profundidade do mar tenha te jogado numa praia paradisíaca sem ninguém para admirar sua estonteante beleza produzida pelo vulcanismo da região desabitada por humanos nascidos da Terra”.
GABRIEL, UM NORDESTINO proveniente de uma família de Albinos, descia a avenida Paulista com esses pensamentos em direção à rua da Consolação onde pegaria uma condução para a zona sul, na qual habitava num cafofo periférico do Jardim Ângela. A pandemia fazia mais vítimas em seus bairros que em outros, devido a carência de saneamento básico.
— “QUE MIL MILAGRES aconteceram para que eu esteja aqui, em meio a essa multidão de compradores de bugigangas”??? — Gabi pensava e repensava sua condição de ser dito humano, habitante da cidade de São Paulo. Todos os dias ele fazia esse trajeto: do alagadiço mal cheiroso onde alugava o domicílio, até o hotel nas proximidades da Paulista no qual trabalhava de faxineiro.
A VOZ INTERIOR QUE soprara aqueles dizeres para ele, ele creditava a esses pensamentos aleatórios provenientes das leituras que fazia quando cansado e ao mesmo tempo energizado pelas coisas que aprenderia na leitura de meia dúzia de livros que sempre se renovavam ao lado de sua poltrona recolhida na calçada que havia salvado do carro de lixo que recolhia os restos do que sobrara de algum vizinho.
O MOBRAL O ALFABETIZARA e Gabriel não esqueceu que conhecera sua cara metade, mãe de seus três filhos, numa sala de aula no tempo da ditadura em 1984. “Você não deve nada aos milicos por ter sido alfabetizado acima da idade escolar convencional. Era o mínimo que podiam fazer por pessoas como você. Governos, você sabe, fazem sempre o mínimo que podem fazer, enquanto embolsam quantias fabulosas para seus membros”.
OS PENSAMENTOS CONTINUAVAM a dizer-lhe que ele tinha direito a muito mais coisas do que as que recebia dos que governavam. Afinal, como poderiam ser gratos, ele e seus familiares, por habitarem numa cultura alagadiça de germes e bactérias, sujeitos a esse odor insuportável que nem mais sentia, e a toda espécie de intoxicação???
OS PODEROSOS ESTÃO SEMPRE dispostos a enganar às multidões de iludidos por todo tipo universal de enganação. Ele havia aprendido a aceitar ser uma pequena hélice na engrenagem dessa sociedade. Quanta felicidade era estar fora do ambiente de trabalho em direção ao lar doce lar no ambiente familiar. Restava a espera e a ânsia: ver os filhos.
PRINCIPALMENTE A IMAGINAÇÃO. Quem poderia roubar-lhe da alma os multiversos habitados por seres os mais diversos. Quem sabe um dia talvez pudesse ter sido ou talvez pudesse vir a ser um desses Ets que visitavam mundos em formação??? Quem sabe pudesse visitar, numa outra encarna ação, universos paralelos. Acreditava que mistério é a pátria da alma, o terreno sutil em que vive o espírito.
PARA SUPORTAR TODA ESSA miserável condição dita humana, Gabriel afagava a fé como se afaga um cão de estimação. Estava frente à parada de ônibus próxima ao conjunto Nacional, um edifício na quadra esquina da Paulista com Augusta. Um cantor, espécie de clone do Tim Maia, entoava versos da canção: “Eu preciso de falar/Te encontrar de qualquer jeito/Pra sentar-se e conversar/Depois de andar de encontro ao vento/...”.
A MELODIA POPULAR DESPERTOU nele uma memória proveniente de um universo incrivelmente arcaico, muito mais antigo que a Grécia Antiga. Um lugar no qual havia uma solidão ilimitada em meio à imensidão de paisagens edênicas. Gabriel viaja nos versos da canção que se propaga em meio à solidão de pessoas que param para fotografar instantâneos do cantor no calçadão da fachada frente ao Conjunto Nacional:
“EU PRECISO RESPIRAR O MESMO ar que te rodeia/E na pele quero ter/O mesmo sol que te bronzeia/Eu preciso te tocar/E outra vez te ver sorrindo/E voltar num sonho lindo/Já não dá mais pra viver/Um sentimento sem sentido/Eu preciso descobrir/A emoção de estar contigo/...”.
GABRIEL SENTIU A EMOÇÃO DE estar sozinho e ao mesmo tempo acompanhado daquelas pessoas que o rodeavam e talvez quisessem a mesma coisa que ele: manter a esperança e a confiança no coletivo globalizado da espécie humana. Estavam todos tão sozinhos e ao mesmo tempo em companhia do total da humanidade em busca de uma sonoridade, de uma palavra de carinho.
ESTAVA ELE TÃO SOZINHO E ao mesmo tempo acompanhado da singularidade histórica, mito lógica, da coletividade dos seres ditos humanos. A paisagem surreal de um universo incomunicável como se todos os espíritos, bons e maus, nele habitantes, tivessem de repente, não mais que de repente, se congregado numa irmanação com essa paisagem urbana e ao mesmo tempo paleolítica que ele habitava e ao mesmo tempo era habitada por ele. Ele na paisagem e a paisagem nele: um mesmo ser indivisível.
O ÔNIBUS CHEGOU E GABRIEL nele embarcou enquanto viajava na musicalidade: “Ver o sol amanhecer/E ver a vida acontecer/Num dia de domingo”. Ele lembrou de como conheceu sua companheira. Já não eram jovens, mas aquele sentimento de descoberta de uma integração de almas necessitadas de compreensão e ajuda mútua os uniu logo, na esperança de que ambos estivessem prestes a embarcar na barca infinita que conduz os enamorados ao convívio no ambiente estelar.
“FAZ DE CONTA QUE AINDA É cedo/Tudo vai ficar por conta da emoção/Faz de conta que ainda é cedo/Pra fazer valer a voz do coração/...”. A canção reverberava em seu interior. O diapasão afinava as notas como se harmonizasse as sonoridades todas das esferas. Os orbes mais distantes e regressivos estavam nele. O tempo em todas as suas dimensões habitava a mente fertilizada de Gabriel, como se ele fosse um anjo.
AS VOZES SE ALTERNAVAM e cantavam nele, através dele, com ele, os versos que se repetiam, mas com outras novas significações: “Eu preciso te falar/Te encontrar de qualquer jeito/Pra sentar e conversar/Depois andar de encontro ao vento/Eu preciso respirAR/O mesmo ar que te rodeia/Na pele quero ter o mesmo sol que te bronzeia...”.
(P.S: Albinos não podem expor-se ao sol, mesmo com protetor solar, devido ao risco iminente de câncer de pele. Nome da canção: "Um Dia De Domingo").