Geleziniz vilkas, o lobo de ferro
Enquanto Roma ardia, os pretorianos exterminavam a mando de Nero Cláudio César Augusto Germânico, todos seus parentes. Os gládios sedentos, naquela noite, fartaram-se de sangue. Entre fogo, gritos e destruição, um dos perseguidos, parente distante do imperador, Palemon, luta por sua vida. Nem tanto a linhagem real o tornava especial como sua capacidade criativa. Enrolados em capas rotas como mendigos, Palemon e a filha corriam pelas ruelas romanas entre casas consumidas pelas chamas e a turba desesperada e sem rumo. Coxeando devido a uma trave que caíra sobre sua perna direita, em momento nenhum arrefece sua disposição, pois não luta por sua vida, mas pela pequena filha. O que não pode fazer por sua bela esposa Pompeia Sabina, arrebatada pela luxuria do Cesar, certamente conseguirá por sua filha. Cuidando sempre para que não aparecessem seus cabelos cacheados loiros cobertos pela capa, continuaram por algumas horas, esquivando-se dos pretorianos tanto quando do fogo. Já era madrugada quando, em uma colina, os dois sentaram-se na relva úmida para descansar e observaram ao longe o céu negro tingido de um clarão vermelho sangue da cidade que ardia.
Palemon nunca fora um guerreiro, antes um artesão, um hábil construtor e consertador, mesmo assim, nesses tempos de violência, carregava seu gládio sob a capa. Previdente, havia deixado um bornal com víveres para a fuga que já previa. A loucura de Nero era evidente e indubitavelmente viria a procura de seus parentes, ameaças mais próximas ao trono. A luz do alvorecer já despontava quando levantaram-se e continuaram a jornada pois certamente Cesar mandaria legiões a seu encalço. Caminhavam durante o dia, apesar das queixas da pequena Lívia e a noite abrigavam-se em alguma caverna ou entre arvores caídas. A mão permanentemente no gládio, pois já, há dias vinha sendo acompanhado ao longe por um grande lobo, talvez o maior que já tenha visto, e não sabia o momento que a fome o forçaria a atacar. Pequenas caças os alimentavam e ao invés de enterrar ao avançarem, deixava o que restou para o lobo. Somente a noite conseguia vislumbrar o vulto do enorme lobo. A luz da lua lhe dava um brilho e reflexo acinzentado metálico, porém a luz do dia parecia o afugentar. Uma noite, poucos minutos antes do amanhecer, Palemon estava especialmente cansado da jornada do dia anterior e demorou a acordar. Ao abrir os olhos viu aterrorizado sua filha ao lado do lobo, e antes que pudesse fazer qualquer coisa, com três pulos o animal estava a dezenas de metros de distância. Ele não a atacara, portara-se como um cão, ou um animal de estimação. Depois dessa noite, ele se fez visível, acompanhava-os de perto. E indicava o caminho a ser seguido. Quando tomavam um caminho diferente, ele ficava uivando, parado, até que voltassem ao caminho que ele estava.
O cansaço o extenuava, mas a necessidade de proteger a filha o estimulava. Palemon argutamente desviava dos soldados romanos, que o procuravam. Eram duas centúrias apenas com esse fim, capturar o último familiar do imperador. Numa das manhãs, uma das centúrias cercou o lobo e Palemon ao longe observava entristecido, o animal acuado que seria certamente destruído. Um sentimento de pesar e impotência pela vida do nobre animal que o acompanhava. Quando a primeira flecha o atingiu, o lobo alterou sua rota e ao invés da fuga passou ao ataque. Em segundos o lobo destroçou a centúria. O ataque foi feroz e implacável. As flechas e lanças quebravam em seu peito enquanto seus dentes trituravam igualmente escudos, armaduras ou ossos. O que restou da centúria fugiu aterrorizada chamando o animal de “lobo de ferro”.
Durante sua jornada, seguiu rumo ao norte, e foi incorporando alguns andarilhos em seu trajeto. Uma multidão díspar o acompanha. Famílias romanas em fuga, soldados desertores e mendigos. Palemon era tido como um mago, tanto pela sua habilidade inventiva, mas principalmente pela ligação com o gigantesco lobo cinzento. A todos recebia, pensando que o agrupamento auxiliaria na defesa, caso fossem atacados.
Era primavera quando chegaram em um vale cercado de altas montanhas. Após cruzarem um rio, o lobo não os deixou prosseguir. O grupo elegeu Palemon seu comandante e decidiram ali erigir sua morada.
O que Palemon temia, ali aconteceu. Apenas haviam erguido uma pequena paliçada quando foram cercados pela centúria restante, acrescida dos sobreviventes da primeira, cerca de cem soldados no total. Contra um grupo de trinta civis entre homens, mulheres e crianças e doze soldados. Sobreviveram ao primeiro ataque com a perda de cinco soldados, três homens e uma mulher. Quase sem armas, certamente não sobreviveriam ao segundo. Quando a centúria se aproximava atacando em três frentes, ouviu-se o uivo aterrador do lobo, que descia saltando da colina atrás do acampamento. Passou por dentro do acampamento, uma sombra acinzentada pulando a paliçada com saltos gigantescos. Em segundos arrasou os soldados romanos. Nunca veio outro ataque de Roma.
Existiam algumas vilas próximas que mantinham comercio e convivência pacífica. Com a organização e liderança de Palemos, sua cidade evoluiu rapidamente e acabou por assimilar as aldeias vizinhas. Com o nome de Voruta, e com um exército fiel e o progresso sereno de sua cidade, poucas foram as tentativas de ataque de exércitos nômades. A cidade desenvolve-se , banhada pelo rio Neris de aguas frias e cristalinas.
Embora estivesse em seus planos, o cuidado com a cidade sempre o impedia de executar seu projeto original de retornar a Roma. O lobo poucas vezes apareceu nesse tempo de paz. Com cinquenta e oito anos Palemos morre defendendo a cidade e o comando passa a sua filha Lívia, agora adulta e excepcional guerreira. Todo solstício de verão, o lobo aparece uivando de madrugada no alto das colinas que cercam a cidade, como homenageando a morte do amigo. Até hoje o “lobo de ferro” é o símbolo da cidade agora chamada de Vilnius, capital da Lituânia.