A História de Belamais e Almala
Amie aprendera desde cedo a evitar as nagas. Eram um povo mau, criaturas esquisitas cujas as próprias mães abandonam seus filhos no mundo sem preocupação. Não criam laços e vivem sós, se reunindo apenas para orgias. Quando morriam, as outras deixavam a terra reivindicar o corpo, sem funerais.
Certa vez, andando pelo bosque profundo, viu uma naga lutando contra um veado. Nunca havia visto uma naga e não conseguiu deixar de admirar-se pela beleza dela. O verde vívido de sua pele, os chifres, as unhas em suas mãos e a forma de seus pés. Tudo na naga era beleza.
Puxou o arco. A flecha acertou o veado bem no meio da testa e ele deitou-se no chão.
A naga olhou para os lados para ver de onde veio, e seus olhos encontraram com os de Amie e encarou aqueles olhos dourados com interesse. Amie também observou os olhos dela, amarelados como os seus, mas enquanto os próprios eram de um castanho dourado, os da naga eram um amarelo mais próximo de um verde. Na verdade, eram aquela cor que não se sabe se é verde ou amarelo, e eram brilhantes, como se possuíssem sua própria luz em vez de refletir a do ambiente.
- Saia! A caça é minha, te aproveitaste do meu trabalho.
- Podes ficar com a carne dele. Gostas de peixe?
Enquanto mostrava à ela as suas conquistas no rio, Amie admirou-se olhando a naga mais atentamente. As formas dos músculos de suas pernas e braços eram bem definidos, as duas jóias que possuía como olhos, os chifres davam a impressão de estar usando uma coroa. Até mesmo as unhas, instrumento mortal, que juntamente com a mordida eram por onde as nagas injetam o terrível veneno nas veias das vítimas. Tudo nela era beleza.
- Tá envenenado, não quero. Os humanos só querem fazer mal à nós.
- Se eu comer então não estará envenenado. Tu terias de esperar um pouco para eu assá-lo, não gosto de comer cru.
- Tem outros vindo! E eu esperar aqui para eles chegarem?
- Não há ninguém além de nós, mas se não quiseres os peixes tudo bem. Vais fazer algo com o couro? Digo, a pele?
- Não, mas como sei que queres não darei de graça.
- Não queres os peixes?
- Não.
- Bem, não posso oferecer mais nada. Chamo-me Amie, podes me dizer teu nome antes de nos despedirmos?
Como não veio resposta, guardou o arco e se pôs a ir embora, mas então ela disse.
- Podes pegar a pele e ir embora.
Enquanto fazia o esfolamento, voltou a perguntar o nome.
- Eu sou chamada caçadora mais forte do bosque profundo. O que Amie significa?
- Não sei se tem um significado, é só o meu nome.
Ela fez questão de escolher os peixes, e levou todos que pode carregar. Amie precisou dar-lhe também uma bolsa, para carregar a carne e os peixes com mais facilidade.
Chegando em casa, os peixes que tinha só poderiam ser comidos frescos, não havia o bastante para condimentar e secar ao sol para os outros dias. Disse aos pais que trouxe somente a pele do veado porque ouviu barulhos de um animal, podia ser selvagem, então trouxe a pele que era leve, e deixou a carne que era pesada para andar com velocidade.
Não disse que o animal era uma naga. Isso poderia gerar mal estar desnecessário. O pai levou a pele para que um amigo da mãe de Amie fizesse couro. Como não podia pagar pelo curtume, o coureiro ficaria com parte do couro como pagamento.
Quando contou para Belamais aqueles acontecimentos, ouviu um sermão.
- E se tivesse te atacado? Ou roubado tudo e te deixado sem nada?
- Eu não ia correr mais rápido que as pernas dela, tinha que dar um outro jeito. E acho que o jeito que dei foi bom.
- Vocês humanos são ardilosos, mas não se confie muito nisso. Tinha um arco, a flecha não precisava ter sido para o veado.
- Mas ela não tinha me feito nada!
- E o veado te fez? Porque ajudou ela?
- Matar um ser assim, dotado de pensamento, não é algo para ser feito sem necessidade. As criaturas dotadas de alma devem ter suas vidas respeitadas até às últimas circunstâncias possíveis.
- Os humanos usam uma moralidade estranha.
- Pode ser, mas pode ser que as fadas também.
- Nós não! Qual raça seria mais racional que a nossa?
- Uma terrível demais para imaginar.
Mas disse esse seu terror rindo, e ela também demonstrou achar divertido.
Depois, acertaram a venda. Belamais deu além da ambrosia, como era de costume, unguento. Amie não sabia se unguento era usado no curtume, mas levaria para o coureiro avaliar, e caso não, ainda possuía valor.
No meio do caminho, de repente e sem nenhum motivo procurou um lugar para fazer uma pausa, sentou e acendeu uma fogueira, pondo para assar um pouco de carne seca que trazia consigo, além de uns peixinhos pescados naquele mesmo dia, bem menores que os de antes.
- Sente-se comigo, a comida é boa.
A naga conhecida como caçadora mais forte do bosque profundo aproximou-se com suspeita.
- Qual erro meu te fez me descobrir?
- Se eu contar, pode ser que eu não descubra na próxima vez. Os peixes estavam bons?
- Ainda não os comi. Dei uns para alguns bichos, queria ver se morriam. Mais tarde, se estiverem bem, como os outros peixes.
- Estes não estão envenenados, garanto.
Comendo um pedaço, entregou outro a ela.
- Estão bons, mais prefiro cru e sem tempero. Os humanos estragam o gosto da carne.
- Coma um dos que ainda não assei.
A refeição seguia silenciosa, então ela entregou um animalzinho para Amie.
- Corte a sua parte e a estrague colocando coisas que tiram o sabor, eu quero a minha fresca.
Obedecendo, entregou em suas mãos a parte mais macia da carne, e ficou com a mais fibrosa e enervada.
- Tu sabes esconder bem o próprio medo Amie.
- Por que diz isto?
- Me tratas tão benzinho, com tanta cautela para que eu não use minhas garras em ti.
Podia olhar mais de perto as garras na mão dela. Eram triangulares com os lados levemente arredondados, dotados de uma cor meio marrom e meio cinza, mas muito pálida, quase branca. Através de suas garras, assim como por sua mordida, era inoculado o mortal veneno nas veias das vítimas, mas não deixavam de ser belas. Será que se não soubesse serem tão mortais, ainda as acharia tão belas?
- Não me fizeste mal algum, então não existe motivo para deixar de fazer-te o bem.
- E os peixes, que te fizeram?
- É diferente, eles não têm alma, por isso posso comê-los mas não posso comer você, por exemplo.
- Não podes me comer porque sou mais forte, não preciso de uma alma como escudo contra alguém fraco, mas me diga, essa alma é valiosa? Eu conseguiria trocar por um bom leitão ou carneiro?
Amie sorria.
- Alma não é uma coisa que pode ser trocada, é aquilo que existe em nós que nos dá inteligência, o poder de aprender e de lembrar, de imaginar, compreender o que falam e colocar em palavras o que pensamos, o que nos dá o poder de pensar.
- Então é porque tu sabes que eu penso que não podes me atacar?
- Atacaria somente para me defender, e você não me atacou.
- Como sabe que os peixes não pensam?
- Eles não parecem ter essa capacidade, então se podem eu estaria cometendo um crime sem saber. Mas é óbvio que as nagas pensam, e quando alguém comete algo sabendo que é um crime, é um crime imperdoável.
- Tu achas que as fadas também possuem alma, então?
- Estavas me seguindo desde que eu conversava com Belamais?
- O nome da coisinha amarela é Belamais? Então sim.
- Por falar em nomes, o seu é muito grande.
- Não é um nome, é um título. Se aparecer outra mais forte eu terei de ser chamada por alguma outra coisa. Nagas não costumam possuir nomes.
- Almala é um nome bonito na sua opinião?
- É uma palavra bonita, que significa?
- Não sei se tem significado. Ouvi em uma canção de um marinheiro, onde era o nome de uma grande rainha que veio do povo humilde, se coroou rainha derrotando cinco reis, criando seu próprio reino.
- Gostei. Podes me chamar assim então. Mas pare de ser amigo daquela Belamais.
- E porque?
- As fadas são malignas. Todas as criaturas do mundo devem viver em seu lugar, se não houverem panteras os veados comeriam todas as plantas e depois morreriam de fome, e o mundo acabaria. Mas as fadas não respeitaram esse ciclo. Quando eu era criança, as fadas vieram nos lugares onde morávamos e matavam-nos, mas não matavam para comer, como é justo que seja, mas apenas deixavam o cadáver lá, apodrecendo. Elas mataram apenas para matarem, para que não houvessem mais nagas lá. Aqui os humanos também não gostam de nós, ninguém gosta de nós, mas a maioria dos humanos só atacam as nagas que machucarem-os. Se não fossem os homens, as fadas estariam sendo más aqui também, por temerem os homens, agem com cuidado.
As fadas temiam os humanos? Amie sabia que os humanos temiam as fadas. Se os dois lados pensam que vão perder a guerra, a guerra não começa. Mas se por algum motivo um dos lados pensar que está mais forte…
Sabia também do pacto que os antigos haviam feito separando as terras dos homens e das fadas, de modo que não fizessem fronteira e evitando que se encontrassem por acaso. No vazio entre as duas terras, era lá que a maioria das nagas vivia. Apesar de humanos e fadas não gostarem delas, um acabava protegendo as nagas contra o outro.
- Almala, é verdade que as mães nagas abandonam os filhos para morrer?
- Claro que não, mas diferente de vocês para nós os filhos não são pertences dos pais. Nossas crianças vivem soltas, e são cuidadas e vigiadas por todos os adultos, assim uma mãe má não fará mal aos filhos. Vocês deixam suas crianças serem cuidadas pelos pais, mas ninguém vigia os pais, e eles podem fazer as maldades que quiserem com os filhos. Nisso as fadas, que são más, são mais sensatas que os humanos.
- Os pais humanos amam seus filhos, e são as últimas pessoas que lhe fariam mau.
- Então não existem nem mães e nem pais malvados com os filhos, e os bons nunca deixam de ser bons por nenhum momento?
- Mas quem cuida das crianças?
- As árvores do bosque não são plantadas, nem adubadas, nem regadas, mas crescem firmes e fortes vivendo séculos. Os humanos dizem que querem cuidar das crianças, mas na verdade querem ser donos dos filhos. Dizem que protegem os filhos do mundo, mas quem no mundo protege os filhos de seus pais? Ao menos vigiá-los? Se nada de errado acontece dentro das famílias, então vigiá-las não vai mudar nada. Mas querem que as coisas não mudem, por isso não querem vigias. Pelo menos as fadas protegem melhor suas crianças, são muitos adultos vigiando uns aos outros para que todos façam tudo certo.
- E protegem melhor que as nagas também, não é?
Ela se levantou com violência e jogou o que estava comendo na fogueira.
- Porque são fracas. As nagas são fortes e protegem a si mesmas, enquanto as fadas são fracas e por isso lutam juntas com covardia contra uma naga sozinha. As fadas temem-nos porque somos fortes e lutam com truques sujos, expulsando-nos de onde vivemos.
Virou-se para ir embora.
- Forte naga do bosque profundo chamada Almala, perdoe-me. Tu estavas fazendo críticas sinceras e possíveis a maneira que o meu povo vive, e eu me irritei e disse coisas apenas por ter ficado irritado, peço desculpas. Farei tudo que puder para nunca mais lhe magoar, mas estamos nos conhecendo agora, é natural que surjam alguns estranhamentos. Conforme conheço quais coisas gostas e as que não, menos farei aquilo que te desagrada.
- Sabes falar bonitinho. Diga, gosta daquele inseto?
- Não chame Belamais assim. Olhe, algumas nagas fazem coisas ruins às vezes, e os humanos também. A mesma coisa são as fadas.
- Ingenuidade ou autoengano. Sabias que não existe a palavra “eu” na língua das fadas? Tudo na vida delas se resume a vida da colônia, elas existem apenas para servir umas para as outras. Não existe “uma fada”, existe apenas “um pedaço da colônia”. Elas nunca iriam contrariar a vontade do seu grupo, pois existem apenas para ele, tu sabes disso. Sabendo tudo isso, ainda se apega a essa ilusão? Ainda pensa que aquele inseto é seu amigo?
- O inseto se chama Belamais, não custa dizer o nome.
Virou-se e dessa vez foi de fato.
Era difícil empilhar a madeira seca no buraco, de modo que houvesse ar para o fogo queimar bem. Os humanos tinham hábitos funerários superiores, Belamais percebia. Simplesmente jogar o corpo para fora da colônia como se fazia antes era completamente inadequado, doenças ainda podiam permanecer no ambiente ao redor do cadáver, e ao ar livre podia ser contraída por alguma fada novamente. Os humanos enterram ou queimam, dificultando muito que uma doença ressurja.
As outras disseram que era ruim porque tinham de tocar o corpo, mas ela argumentou que quando quando a morte acontecia dentro da colônia já tinham de tocar nele de qualquer maneira, mesmo que fosse para jogar fora. O que havia demais em fazer o trabalho completo?
“Não deveria ser assim”, uma protestou, “quando sente que a doença está para matar, é dever delas saírem da colônia e morrer do lado de fora”.
- Nem sempre quem está doente sabe que está, anciã, ou quando sabe, pode não sentir que é grave. Se a doença começar leve e a piora for muito rápida, de modo que não dê tempo para sair, então a culpa não é dela. Se a cada leve mal estar que sentíssemos fossemos lá fora para morrer, então nossa espécie já teria desaparecido.
Acabaram por concordar de mau gosto com essa ideia. Então decidiu-se assim: Levava-se o corpo para fora o mais rápido possível, como já era de costume, cavava-se o chão e dentro se faria uma pira funerária, e depois que a pira terminasse de queimar tapava-se o buraco com terra. Uma mistura dos dois rituais humanos de modo a melhorar a eficiência no controle de doenças.
Belamais era das agricultoras, que trabalham do lado de fora da colônia, então estava acostumada a trabalhar na terra, mas isso era diferente. Não cava-se tão fundo para plantar uma semente, e ela teve dificuldade em encontrar uma pá para o serviço, até que encontrou uma adequada ao tamanho de uma criança humana que lhe serviu perfeitamente. Por que os humanos faziam ferramentas de trabalho para serem usadas por crianças era algo que parecia muito estranho para ela, mas havia sido útil.
Pensando bem, o coveiro não era a primeira profissão que as fadas tomavam para si dos humanos. A própria casta biológica dela era a das guerreiras. Fora copiando os humanos que as fadas aprenderam a agricultura. Antes só existiam as colhedoras, que recolhiam as plantas que nasciam espontaneamente. As guerreiras, sendo mais forte que as outras castas, mais alta e esbelta, do tamanho de uma mulher humana baixa, eram mais adequadas ao serviço. As colhedoras podiam participar da colheita e dos cuidados das plantas, mas arar a terra, adubar, e semear eram trabalhos que requerem força, então desviar aquilo destinado a tirar vidas para criar vida parecia para Belamais ser uma trapaça muito bonita contra a natureza.
Conforme os hábitos funerários fossem sendo incorporados, havia ainda uma profissão que ela considerava fundamental que fosse aprendida, a forja do metal. Mas uma coisa de cada vez, já havia sido muito difícil convencê-las a fazer um buraco e acender uma fogueira dentro.
A primeira camada de madeira cobria o fundo, o corpo estava por cima dessa camada e tinha terminado de cobri-lo com a outra camada. Acendeu a fogueira. Quando fosse a época de chuvas, deveriam cobrir os túmulos com um telhado e paredes para que mesmo chovendo o corpo queimasse, mas a repetição das práticas levaria para a melhora.
Enquanto o fogo ia nascendo, Belamais começou a lembrar da fada que havia sido dona daquele corpo. Fora da casta das domésticas, a sua cuidadora mais próxima, com quem aprendeu a falar e muitas outras coisas, até que chegou na muda e passou a ser ensinada por alguém da sua casta, e escolheu ser uma agricultora.
Engraçado, antes as fadas só eram machos reprodutores, mães, domésticas, colhedoras, construtoras e guerreiras. Agora havia uma enormidade de tarefas a serem feitas nas colônias, e ao nascer cada fada que não fosse apenas uma parideira ou um macho tinha todo um leque de opções sobre quais tarefas gostaria de fazer em sua vida. Talvez o serviço fúnebre fosse mais adequado para as construtoras por causa das semelhanças no trabalho, da forma física delas.
Seria um alvoroço! Originalmente as construtoras eram uma das castas que nunca saíam das colônias, nascendo e morrendo sem nunca ver o exterior. Mudar isso, mesmo que apenas para algumas, e para se realizar uma atividade somente ocasional seria bem radical para suas irmãs mais velhas.
Em outros lugares, as fadas já haviam se afastado muito dos costumes antigos, e estavam prosperando. Capaz das irmãs sangrarem pelos ouvidos se ouvissem isso. Talvez elas merecessem isso um pouco.
O fogo já passara da infância, agora um jovem, comendo a madeira e também Rauza. Não, o fogo queimava apenas um corpo, o lugar onde ela morou quando esteve neste mundo. Agora ela podia ter ido embora e se tornado um com o nada, ou existir em outro lugar, mas ela não estava ali, aquilo que queimava não era ela.
Houve uma pessoa, a quem Amie chamava de bisavô porque era o pai da mãe, essa era a mãe de outra mãe, e essa era a mãe de Amie. Quando esse tal bisavô morreu, nos seus ritos fúnebres Amie juntamente com outras pessoas contavam as suas histórias vividas com o falecido, suas alegrias e tristezas, as sua conquistas e os sonhos que não vieram a ser outra coisa. Belamais não conhecia uma história sobre Rauza. Ela havia a alimentado, ensinado a falar, ensinado sobre a colônia e só. Nenhuma história que fosse dela, apenas uma história das fadas contada mais uma vez, os mesmos personagens e enredo com outros atores. Ela lembrava-se muito bem de Rauza, mas será que ela se lembrava de Belamais? Ela havia cuidado de tantas, nunca fora de dar trabalho, nem tinha também como dar orgulho na época em que era tão jovem.
Havia sido a sua cuidadora antes da muda, e fora depois da muda que possuiu uma cuidadora, Laimei, que a ensinou a realizar o seu trabalho dentro da colônia, quando poderia se destacar. Mas se novamente não dera trabalho, não fora excepcional. Aprendera a ser agricultora, a fabricar e consertar as ferramentas que usava, aquelas que não serviram para cavar um túmulo. Mas fora Amie que lhe ensinara a ler e escrever, a comprar e a vender, sobre histórias de tempos distantes em lugares antigos. Naqueles dias Amie ainda era um pouco uma criança, e olhava para cima quando olhava para Belamais, mas agora já se olhavam de frente. Amie não estava nem perto da maturidade ainda.
O fogo já era um adulto robusto. Devia-se esperar ele envelhecer e morrer para poder então enterrar suas cinzas, mas enquanto isso não acontecia sua poderosa luz preenchia o mundo.
- Deve estar muito cansada desse trabalho todo.
- Amie, me assustaste, não faça mais isso. Sim, eu estou cansada.
- Deixe que eu termino de fazer isso, espero terminar de arder e fecho o buraco, trouxe minha pá. Eu sei que as fadas consideram os cadáveres coisas sujas que trazem doenças, e doenças nunca devem entrar na colônia. Também queres água e ambrosia?
- Obrigada, quero sim a água e ir embora, deixando você trabalhar sozinho sem te ajudar. Mas a ambrosia você comprou, ela é sua, a tão preciosa comida das fadas que nunca apodrece e que pagasse bem caro por ela.
- Se é minha, faço o que quero com ela, e quero dar metade a você.
- Então devia ter deixado de comprar essa metade que queres me dar, há muita comida na colônia quando eu chegar, não preciso dessa.
- A ambrosia que está na colônia está longe e voar com fome não deve ser bom.
Sentaram-se, dividiram a água, comida e um silêncio agradável. Admiravam as chamas dançando em uma caótica e belíssima coreografia, a qual pessoa alguma poderia imitar.
- Talvez vocês não precisem fazer isso, todo esse processo com os cadáveres.
- Queres manter o nosso costume antigo?
- Não, mas para vocês os cadáveres são coisas sujas, a serem evitadas. Os humanos poderiam queimar e serem os coveiros das cinzas para as fadas, mediante um pagamento. Uma fada então seria selecionada apenas para vigiar se eles estão seguindo o procedimento correto com os corpos, sem ela mesma se envolver. Uma boa alternativa a sua proposta não é? Se mantém o antigo costume de as fadas tocarem o mínimo possível nos cadáveres e eles são destruídos usando as duas grandes barreiras de impedir a contaminação, a queima e o enterro, com alguns humanos sendo pagos. Todos são beneficiados com isso.
- É uma boa ideia, mas eles aceitariam serem pagos com ambrosia e unguento?
- São dois itens muito caros, então talvez sim. Seria melhor a sua colônia vender unguento e ambrosia, assim teriam dinheiro e com ele pagariam os coveiros. Desse modo vocês teriam os mesmos serviço usando menos unguento e ambrosia.
- Obrigada, essa ideia é boa. Lutarei por ela.
- Já que a ideia é boa, gostaria de ser pago por ela.
- Deveria ter cobrado antes, agora não há como me forçar a pagar por ela.
- Eu acho que não preciso forçar, somos amigos.
- Amigos se ajudam de graça.
- Então você irá me ajudar de graça?
Amie sempre a divertia.
- Diga o que é e eu digo se faço.
- Eu e uma amiga chamada Almala queremos saquear uma colônia de fadas abandonada.
- Qual a razão de ter sido abandonada? Ficou impregnada por alguma peste?
- Não, eu sei que você não aceitaria entrar em uma assim. A colônia era ainda mais tradicionalista que a sua e não haviam parideiras, apenas uma mãe, e todas eram irmãs estritamente falando. Quando uma reprodutora ficava fértil, ela ia embora e fundaria sua própria colônia. Quando a mãe da colônia morreu, acontecia de não haver nenhuma reprodutora ali naquele momento, então não poderia haver uma nova mãe e a colônia chegou ao fim.
- Porque precisam de mim?
- Não fomos os primeiros a tentar saquear. As colônias das fadas ficam embaixo da terra, onde não há luz, e toda sua arquitetura foi feita para pessoas que voam. É muito difícil para nós se não tivermos ajuda.
- Tudo bem, eu aceito.
Marcaram o dia e despediram-se, com Amie admirando sua amiga com muita atenção. Não era muito mais alta que uma criança humana e bastante esbelta. Isso escondia como era forte em seus quatro braços e duas pernas. A pele era dourada e marrom, e suas quatro asas batendo a levantaram do chão. Amie sentou e esperou o fogo, que ainda ardia com toda a sua fúria, terminar, e assim fechar o túmulo. O movimento das labaredas e Belamais voando no ar eram diferentes em tudo e por isso não havia como comparar, mas Amie sabia qual era a dança mais bela.
- Eu não sabia que a sua amiga Almala era uma naga.
- Ela é aquela mesma daquela época, lembra-se, da história dos peixes e do couro?
Fez uma longa pausa.
- Nossa, sim, me lembro. São amigos desde daquele tempo?
- Eu e Almala ficamos depois.
Eram luvas muito bonitas, a costura era feita com fios de bronze. Deve ter sido um pouco caras. Moveu os olhos das luvas e observou a amiga de Amie. Era igual a aqueles demônios daquela época.
- As suas luvas que está usando agora são feitas daquele couro que eu te dei Amie?
- São.
A outra intrometeu-se.
- Eu chamo-me Belamais.
- Eu sei.
A pausa estava virando silêncio. Belamais não iria deixar isso.
- Almala, não vai se apresentar para mim?
- Já sabes o meu nome.
- Deixa Belamais, ela é mesmo meio arisca.
- Não tem problema não, mas vou recomeçar minha apresentação. Sou Belamais, uma agricultora e mercadora da minha colônia, a colônia que fica a oeste da curva do grande rio que corre do leste para o norte. E você?
A fada estava fazendo o possível, então não tinha como a não ser jogar o jogo.
- Sou Almala, chamada caçadora mais forte do bosque profundo, nascida na antiga grande campina das nagas do leste, hoje chamada apenas de a grande campina que antecede o mar da aurora.
Seriam engraçadas aquelas apresentações formais, não fosse uma tensão no ar tão massiva que poderia ser cortada com faca.
Passado muito tempo depois que a fada voltou de lá de dentro para marcar os lugares onde havia algo a ser pego, iniciaram a entrada.
Ela e Amie amarram-se com as cordas, verificando bem se os nós estavam firmes, e a outra não precisava de nada disso pois aquela raça de insetos possuía asas. Desceram os três pela abertura da colônia abandonada.
A lanterna que Amie trouxe preenchia a casa da escuridão de luz, expulsando-a do seu lar, e assim Almala percebeu que o material das paredes não era pedra crua.
- O que é isso?
- Argila verniz. Uma argila fabricada por nós e usada na construção das paredes, e também nos revestimento das paredes de pedra. Quando sólida, é mais dura que o granito, e mais resistente, pois ao aplicarmos uma grande força sobre ela, em vez de se partir ela se dobra, como bambu, sem ficar deformada depois.
Já havia visto aquela coisa antes. Então esse era o nome do vidro do qual eram feitos os facões dos demônios alados. Em noites escuras o brilho de lanternas brilhava sobre aquelas lâminas hediondas, e de dia o brilho do sol, mas a todo momento dançavam no ar com fome de carne e assim que mordiam continuavam a dança, pois podiam ser famintos, mas não comiam.
- Também é usada na fabricação de armas.
- Sim Almala, em algumas colônias ela é usada na fabricação das armas das guerreiras, mas nós não usamos porque lâminas feitas dela se gastam muito rápido, e ao afiá-las retira-se muito material, de modo que não tem uma vida útil longa. Minha colônia prefere metal. A argila verniz é assim mais apropriada para construir tijolos e revestir as paredes.
- Será que também é valiosa? Vamos carregar três coisas então: Ambrosia, unguento e argila verniz. A Almala é a mais forte de nós então ela levará o que for mais pesado. Belamais, qual o peso que cada uma dessas coisas?
- A Ambrosia é a mais pesada e a Argila Verniz a mais leve.
- Está decidido.
Os demônios construíam suas moradias em corredores verticais muito profundos. Onde estavam já não era mais a uma passagem, mas sim um salão. Duas paredes paralelas não muito próximas corriam juntas para a esquerda e para a direita, para cima e para baixo, onde terminavam em um chão que ainda não podia ser visto.
Almala desamarrou-se da corda e usando suas garras para se prender na parede, descia mais.
- É muito perigoso isso que está fazendo, volte a se amarrar.
- Sua ideia Amie, estou executando do jeito certo.
Amie trouxe quatro cordas, duas para si e duas para ela. Amie ia até onde podia amarrado, e quando a corda terminava, prendia a outra bem firme no lugar em que estava e se amarrava nela, para a fada subir e desamarrar a primeira. Tudo um processo muito complicado e seria mais eficiente se apenas um dos dois fizesse isso. Possuía garras, não precisava daquilo.
Terminado o saque daquele dia, voltaram em vários outros, e na quarta descida do décimo primeiro dia do saque, Almala escorregou.
O vazio abraçava com suavidade no seu voo para baixo até outra coisa a abraçar.
- Os seus braços e asas são mais fortes do que parecem.
- Obrigada. Você é mais leve do que parece.
No rosto das duas estavam as expressões de que acharam aquilo engraçado.
No fim do dia, porque Almala pediu a fada que ficassem a sós, se despediram de Amie juntas.
- Obrigada por me salvar.
- Você já agradeceu.
Sem rodeios, a conversa devia ser iniciada.
- Belamais, você faria tudo pela sua colônia, pelas suas irmãs?
- Sim.
- Se houvesse guerra contra os humanos daqui, você mataria Amie por elas e pela sua colônia?
- Isso não vai acontecer.
- É só uma hipótese. Pense, nessa hipótese, você mataria Amie por suas irmãs e sua colônia?
Belamais pareceu não gostar da hipótese, balançou a cabeça como se estivesse tentando retirar algo estava grudado nela.
- Isso não vai acontecer, não preciso pensar nisso. Algo mais?
- Não. Obrigada pela conversa.
- Até breve.
A rispidez na resposta dela era compreensível, então tudo bem.
Alguns dias depois, Amie disse a Belamais que por alguns dias não poderiam ir a colônia morta.
- Almala me pediu para ir com ela no lugar em que nasceu.
- Amie, você confia muito em Almala.
- Sim, mas não confio absolutamente. Sei que não podemos confiar em ninguém dessa maneira. Existem as pessoas que quanto mais conhecemos, menos confiamos, mas com Almala, quanto mais eu a conheço mais tenho motivos para confiar.
- Cuidado Amie, a natureza das nagas é a de seres solitários, que não formam vínculos. Será que ela te vê como um amigo ou como uma propriedade? Será que a amizade de vocês é a mesma coisa para ela que é para você?
- Penso que a maneira como cada um vê uma coisa é única, ninguém pode ver com os olhos de outra pessoa, então sim, acho que ela não vê nossa amizade da mesma maneira que eu vejo, e tudo bem, não quer dizer que ela veja menos importância do que eu, apenas que vê de outra maneira.
- Mas pode ser que seja menos, e então?
- Então seria triste, mas eu sobreviveria.
- Pode ser uma emboscada para ela te matar, longe daqui não seria punida.
- Pode ser que caminhando por aí eu encontre um saco cheio de moedas e sem dono, mas eu não faço meus planos para o futuro considerando isso. As coisas ruins não são mais prováveis que as boas apenas por serem ruins. Tomarei os cuidados razoáveis, e isso quer dizer me planejar com aquilo que sei. Tudo que sei me diz que não há nenhum motivo para Almala querer me matar.
- Mas Amie…
- Eu já até adivinho, mas deixe explicar novamente: Tomarei os cuidados razoáveis, e isso quer dizer me planejar com aquilo que sei, e antes que você tentasse dizer, eu já sabia que não sei tudo. Essa nova consideração não apaga as minhas considerações anteriores.
- Mas Amie, por que confiar tanto nela a ponto de irem sozinhos para tão longe?
- Eu tenho muitos motivos para confiar nela e muito poucos para desconfiar. Agora me diga, você tem apontado para todos os lados para me afastar dela, dizendo que ela me vê como uma propriedade e que ela pode querer me destruir. Quem destrói sua propriedade por nada? Qual a razão de quereres me afastar dela? Ela fez algo?
- Um dia desses ela me perguntou se caso a minha colônia e a sua vila brigassem eu iria te matar em nome das minhas irmãs.
Amie levantou a mão esquerda, retirando a luva com a palma virada para frente e os dedos abertos.
- Aperte a minha mão colocando seus dedos entre os meus, e eu apertarei a sua. É um gesto humano importante.
Belamais fez.
- Essa pergunta foi cruel, ela não devia tê-la dito. É como perguntar se você prefere perder um olho ou uma mão, não tem nenhuma boa resposta. Eu sei que eu e sua família somos, de maneiras diferentes, importantes para você, e por ser de maneiras diferentes, não é possível comparar essa importância. Mas se puderes, perdoe-a, ela é uma naga, como você tanto diz. Eles não possuem algum instinto social como ambas as nossas raças e por vezes elas fazem coisas assim sem perceber. Não penso que ela quisesse te magoar com a pergunta, acho que era uma dúvida sincera e pensava que tu poderias responder, mais ou menos do mesmo modo que se pergunta para alguém se gosta mais dos dias de sol ou das noites de luar. Conforme ela aprende mais sobre essas coisas, que para nós são instintivas, penso que ela mudará. Mas nem por isso acho que nossos instintos estejam sempre certos e que ela tenha de se tornar igual a um de nós. Outros pontos de vista, ver as coisas de outra maneira, aumenta os horizontes da nossa visão e vocês podem ensinar e aprender muito uma com a outra.
- Obrigada por tentar.
A viagem até aquela campina seria longa, não poderiam ir e voltar no mesmo dia, então se prepararam para levar as coisas para que pudessem dormir lá.
Almala, sempre provocativa e maldosa com as palavras, estava quieta, em um silêncio tão sólido que podia ser cortado no ar com uma faca. Mas Amie respeitou. A jornada era longa, e quando paravam para comer, faziam refeições sem conversar. Partiram antes do sol se levantar, depois ele se deitou e se levantou, e quando chegaram na campina, ele já estava começando a se deitar uma segunda vez.
Já na campina ainda não haviam chegado ao seu destino final. Almala ia guiando Amie até chegarem em umas ruínas.
- Aqui era antes um lugar de nascimento e de vida. Era o lar do festival da fertilidade. As nagas vivem sós, cada uma trata da sua vida sem que a outra interfira. Mas na época do festival elas se reúnem em alguns locais, e nesses locais durante vários dias homens e mulheres se juntam para gerar a próxima geração. Dizem que Nurur, a única cidade das nagas e também a única nação fundada por nagas começou como uma dessas casas de fecundidade. Este lugar em que estamos também foi um dia uma casa de fecundidade, os ovos das nagas eram postos juntos, ninguém sabia qual era de qual mãe, e a mãe não sabia qual ovo era de qual pai, tal como costuma ser em todos os lugares onde as nagas vivem.
- Este é um lugar sagrado para as nagas, eu entendo.
- Esse conceito de sagrado é estranho para mim e acho que para a maioria de nós. Cada ser pode entrar em contato com os poderes do mundo sozinho, sem precisar de um intermediário, seja um sacerdote, um livro ou um lugar. Os poderes do mundo falam diretamente conosco, sem mensageiros, basta ouví-los. Talvez isto que as nagas tem possa ser chamado de religião, ou talvez não possa, mas aqui era um lugar de fecundidade e de nascimento, e agora não é mais.
- Posso perguntar como é? Como é voltar aqui onde você nasceu?
- Não nasci aqui. Minha mãe e pai viviam e se esbarraram por acaso nessa campina, e eu fui feita fora do festival, algo estranho de acontecer, então eu os conhecia. Eu crescia solta mesmo assim. Eu sabia onde este lugar ficava, mas é a primeira vez que venho. Antes que eu fosse fértil, uma colônia de fadas decidiu exterminar todas as nagas deste lugar. Eu nunca saberei o motivo de tomarem essa decisão. Éramos mais fortes que elas, então o combate um a um era difícil para elas, assim um grupo de fadas atacava uma única naga. Além disso, matavam as crianças, que eram presa fácil para uma única fada guerreira. Ao perceberem isso, as nagas passaram a procurar as suas crianças e vigiá-las, para que não fossem atacadas sozinhas, e as nagas também lutavam juntas agora, de modo a eliminar a vantagem das fadas. Todas as crianças são ariscas, as das nagas então! Gostam de fazer o que bem entendem, não de ficar num só lugar sendo vigiadas, e eu fugia constantemente, para depois ser trazida de volta. Mas ficarmos todos juntos se mostrou um erro. As fadas tinham muita experiência em lutarem juntas, e as nagas só conheciam as brigas um contra um, ou um contra poucos, ainda estavam desenvolvendo as técnicas de lutas em grupo, e as armas das fadas eram superiores, suas armaduras leves e fortes, seus facões afiados, leves e resistentes, além de atacar por cima, pelo vôo. Um dia eu fugi, e depois de algum tempo sem que ninguém viesse me buscar, eu voltei para a nossa fortaleza. Ainda havia nagas e fadas vivas, agonizando no chão, mas a maioria eram cadáveres. Eu saí daquele lugar, corri muito até ficar cansada. Outras nagas, percebendo que não tinham o conhecimento para vencer lutas de grupo contra grupo, decidiram fugir também. É fácil acertar um alvo que está de costas para você, e as fadas caçavam os fugitivos exterminando-os. Eu fui uma que por pura sorte, suponho, conseguiu fugir da campina até estar longe, e assim cheguei ao bosque profundo.
- Então estamos em lugar que pertence a essas fadas perigosas?
- Foi por isso que eu disse que nunca saberia o motivo delas tomarem aquela decisão. Essa colônia era muito fechada, não negociando com nenhuma pessoa externa. Outras fadas e alguns humanos também começaram a ser atacados por essa colônia. Nenhum tratado de paz foi possível, e seus inimigos unidos eliminaram a colônia, cada parideira e macho dela, para que assim com o tempo as adultas que fossem morrendo não fossem substituídas pelas crianças. Funcionou, a colônia não existe mais e eu nunca poderei perguntar porque fizeram aquelas coisas todas.
- Se tu o puderes, gostaria que viesses comigo em outros três lugares dessa campina.
- Quais?
- A antiga fortaleza que as nagas construíram para se proteger daas fadas e a colônia morta delas.
Almala sentou-se no chão. Observou aquele lugar, olhando cada detalhe.
- Quero ficar aqui mais um pouco, conhecer este lugar, mas sim, podemos ver esses lugares, mas hoje podemos passar a noite aqui? E amanhã explorá-lo? Então iremos nesses lugares depois.
- Fico feliz com isso.
- Qual é o terceiro lugar que queres ir?
- A fronteira que a campina faz com o mar da aurora. Sou um pescador de rio, quero conhecer a água salgada.
Nos gestos se mostrava que ambos acharam aquilo muito engraçado. Amie sabia o momento de ser solene e de ser leve e brincalhão.
Durante a noite, eles acenderam uma fogueira, mas mesmo assim Almala sentia frio, Amie percebeu. As nagas possuem sangue frio. Levantou-se e abraçou Almala pelo lado que estava voltado para fora da fogueira, pois os humanos tem seu próprio calor.
- O que está fazendo?
- Te aquecendo.
- Eu não pedi.
- Mas eu estou pedindo para te aquecer. Negarás uma coisa tão pequena para um amigo?
- Não.
Amie retirou a luva da mão direita, pois ela entre eles dois com a palma virada para Almala e os dedos abertos.
- Aperte a minha mão, pondo seus dedos entre os meus e então eu apertarei a sua. É um gesto importante para os humanos.
- Se eu apertar sua mão sem nenhum de nós estar usando nossas luvas, posso te arranhar e envenenar. Não quero isso.
- Faça com cuidado. Eu confio em você.
Ela fez.
- E agora?
- Vamos dormir.
E adormeceram segurando suas mãos.
Havia já bastante tempo que se fofocava da histórias dos três. Há muito tempo, ela era chamada de a nascida sem veneno, porque como o próprio nome dizia, suas garras e sua mordida não possuíam o veneno das nagas. As outras a importunavam por causa disso, dizendo que morreria de fome sem a ajuda dos adultos, seria sempre dependente, e Jaila, sem entender muito o significado do que estava dizendo, repetia, e assim a naga não era apenas indiferente com amizades, como a espécie delas costuma ser, mas avessa a elas. As nagas não buscavam companhia, e precisavam de espaço para si mesmas, mas aquela buscava a solidão, sempre fugindo das outras, precisava de um mundo só seu.
Mas as outras morreram e aquela sobreviveu, sem ajuda de ninguém nisso. Jaila ainda era muito criança para entender essas coisas, mal aprendera a falar quando aconteceu.
Era uma noite sem lua e a fortaleza anoiteceu sobre ataque daqueles demônios, uma naga adulta, ou apenas uma criança mais velha, quase todos eram adultas para a Jaila daquela idade, a puxou e tapou sua boca para que não fizesse som algum, para que as fadas não a ouvissem, mas o tempo foi longo demais e sem respirar desmaiou. Acordou depois do fim do massacre, percebendo que as atacantes haviam ido embora, procurou por sobreviventes. Haviam, mas além dela mesma, todo o restante estava morrendo. Precisou colocar o que fosse útil em uma sacolinha e abandonar o lugar.
Todas as nagas são venenosas, incluindo as verdes, que não eram menos venenosas que as outras. Era aquela lá que tinha nascido estranha. Mas as nagas negras eram mais venenosas que as outras. As nagas costumam ser imunes ao seu veneno, mas o veneno de uma naga negra mata qualquer criatura que não seja ela mesma, inclusive outras nagas. A única criatura no mundo imune ao veneno de Jaila era Jaila.
Ela sobreviveu a perseguição, abandonou a campina, e logo se entrosou com as outras de sua espécie que viviam no bosque profundo. Passou a ser chamada de “olhos brancos” porque apesar de seus olhos serem vermelhos, não um vermelho da cor de sangue, mas um vermelho da cor do carvão em brasa, havia duas manchas brancas ao redor dos dois olhos, a única parte de sua pele que não era negra.
Conforme crescia pararam de lhe chamar “olhos brancos”. Começou a vender a pele dos animais que matava aos coureiros, e com o dinheiro comprava coisas que precisava. Em vez de morar em uma toca no chão, como era costume, pagou aos homens que lhe fizessem uma casa assim e assim, para protegê-la da chuva, do sol forte, do frio e do calor. Ela envenenava as suas armas, de modo a não usar ataque corpo a corpo, e nenhuma naga ousava em tentar tomar suas posses, pois conseguiu domesticar um cão que sempre vigiava a casa.
Ela pensou em lhe dar um pouquinho do seu veneno diluído com frequência, de modo que a dose não fosse mortal. Talvez isso o tornasse imune com o tempo. A prova veio um dia em que chegou em casa e encontrou duas nagas mortas no chão, e seu cão a sua espera correu para brincar, como sempre fazia. Apesar de estar todo arranhado, nos dias que se seguiram as feridas fecharam e ele não ficou doente em nenhum momento. Funcionou.
Quis ainda fazer um teste novo. Conseguiu outro cão, e conforme terminou de fazer esse longo procedimento com esse segundo, aproveitou que o primeiro gostava de brincar de dar mordidinhas, e mordeu-lhe e enfiou fundo as garras nele. O veneno tem esse efeito de anestesiar, então ele não sentiu dor nem ficou irritado. Se a imunidade fosse parcial e ele morresse, já tinha o segundo que também já estava tão imune quanto podia ser.
O cachorro não morreu nem ficou doente, e as feridas sararam como se fossem feridas normais. Funcionou.
Ela então possuía um cachorro que vigiava sua casa em sua ausência e um cachorro para ajudá-la nas caçadas. Um falcão para o dia e uma coruja para a noite, um facão muito afiado, um arco, luvas para as suas mãos não envenenarem ninguém que não quisesse envenenar, e também sabia montar armadilhas de caça. Havia uma escadinha no telhado na parede do lado de fora de casa que dava para o teto, e no teto plantava diversas ervas das quais precisasse ou fosse vender, além de plantar ao redor da casa.
Pararam de chamá-la de “olhos brancos” e passaram a dizer “Rainha no bosque profundo”. Era um nome arrogante demais e as pessoas tinham tendência a não gostar de quem era arrogante, o que poderia atrapalhá-la. Então adotou o nome Jaila e assim se apresentava, algo muito mais simples.
Certa vez ouviu sobre outra naga no bosque profundo que também era engenhosa na caça, não atacando a presa simplesmente corpo a corpo. Ela usava arco e flecha, um facão e armadilhas. Ela era verde e seus olhos tinham uma cor vívida e brilhante, que uns diziam ser amarelo e outros verde. Chamavam-na “a caçadora mais forte de bosque profundo”, porque quando matava suas presas com as próprias mãos, usava apenas a força, e nunca veneno.
Curiosa para ver se era quem pensava ser, um dia foi até ela se apresentar. Estava certa, era a mesma naga da campina. Permanecia viva, mesmo sem veneno, mesmo sem ninguém.
Apresentou-se a ela e a caçadora mais forte do bosque profundo já ouvira falar sobre Jaila, mas não a reconheceu da época da infância das duas. Jaila quis dizer quem era, mas a outra permanecia igual, avessa a toda companhia, e nunca pode se aproximar mais do que o suficiente para dizer o nome.
Mas algo havia mudado. Adotou o nome de Almala e andava com frequência na companhia de algumas nagas, e algumas vezes na de humanos ou fadas também. Duas pessoas, Amie e Belamais, das raças humana e fada, lhe eram as mais próximas. Jaila não compreendia porque ainda era rejeitada.
E se talvez agora, com Almala possuindo uma nova personalidade, Elas duas pudessem se aproximar?
- Olá Almala, caçadora mais forte de bosque profundo, Lembras-te de mim?
- Sim, você é aquela chamada rainha do…
- Desculpe por interrompê-la, mas não me chame assim. Meu nome é Jaila.
- Estranho. Não gostas do título que possuis? São palavras de enaltecimento.
- Você preferiria que Amie lhe chamasse de “caçadora mais forte de bosque profundo”?
- Não gostaria, mas tu e eu somos como desconhecidas uma para a outra.
- Mas não precisa ser assim. Eu gostaria que fossemos próximas também.
- O porquê?
- Eu também sou uma das sobreviventes da grande campina que antecede o mar.
- Mentiras, não houveram sobrevivente do massacre.
- Conheço duas, que são tu e eu. Posso provar.
- Então faça.
- Eu sei que tu nascestes sem veneno nos dentes e nas unhas. As nagas do leste te chamavam…
Não deveria ter começado por aí.
- Eu sei como elas me chamavam. Por que apareceu só agora?
- Não apareci só agora, mas em outros momentos que vim até ti tu eras muito arisca. Nunca trocava duas palavras com quem fosse, eu não queria forçar nada entre nós. Mas você mudou agora, quero ser sua amiga, como Amie e a fada.
- Amie é uma propriedade muito útil para mim, assim como Belamais. Queres me pertencer também? Tu me poderias ser bastante útil, de fato.
- Por que está me dizendo algo assim? Amo ser livre.
- Então rejeito a tua proposta. Também não quero ser o animal de estimação de ninguém, como esse seu cão é para você.
- Não se trata de nada disso. Eu entendo que Amie e Belamais são sua propriedade, mas eu não sou apenas mais uma naga, nós duas podemos ser as últimas do nosso povo.
- Nosso povo acabou rainha no bosque profundo, eu pertenço a um novo povo agora, e se você pensa que ainda pertence ao povo das nagas do leste, lhe digo que um povo não pode ser formado por uma única pessoa. Se você não pertence a algum outro povo, então você não pertence a nenhum e está completamente sozinha. Mas isso não é de todo mal, não somos humanas ou fadas, a natureza das nagas é serem solitárias mesmo, não precisamos de ninguém, eu não preciso de ti e tu não precisas de mim. Há algo mais que queira dizer?
- Não, apenas isto.
Cambaleante, foi embora, mas em um outro dia ela encontrou Amie só.
- Bom dia Amie, sou Jaila, uma naga do bosque profundo.
- Tu disses chamar-se Jaila? Então seria a rainha no bosque profundo?
- As nagas no bosque profundo não possuem uma monarquia, não sei porque me chamam assim. Prefiro ser Jaila.
- Jaila, como sabes o meu nome?
- São poucos os humanos amigos de uma naga e de uma fada. Na vila dos humanos que fica ao sul da curva do grande rio que corre do leste para o norte, há apenas um.
O grande cachorro espreitava Amie. Aquilo não parecia bom.
- Como chama-se o cão?
- Chamo de meu cão de caça, para diferenciá-lo de um outro cão que possuo, que chamo meu cão de guarda, pois ele vigia minha casa na quando não estou.
- Você é criativa com os nomes Jaila, quem lhe chamou assim?
- Eu mesma, eu me dei o nome de Jaila.
Então ela era mesmo boa com nomes, quando se importava em ser.
- Deve ser triste ser amigo de Almala.
- Por que seria? Gosto de nossa amizade.
- Não poder apertar as mãos de um amigo sem ser envenenado.
- Não há nada demais nisso.
- Não seria melhor se fores imune ao veneno das nagas?
- Seria, mas também seria muito bom poder voar como as fadas.
Belamais. Esse era o nome da fada. Como poderia perdoar Almala por possuir amizade com uma criatura daquelas e ignorá-la, alguém que era verdadeiramente do seu próprio povo e não apenas outra naga?
- Mas se tu não podes voar como as fadas, ainda podes ser imune ao veneno das nagas.
Sorriu com aquelas palavras.
- E com qual feitiço, maga?
- O veneno das nagas foi feito para agir no sangue, se bebido, não é tão letal. Eu própria fiz isso com os animais que me pertencem e eles são imunes, veja.
Retirando as duas luvas arranhou o cão de caça. Ele não esboçou nenhuma reação, e se o veneno tivesse realmente poder sobre ele, já estaria deitado no chão e sem vida.
- Se me beijar, provando o meu veneno, te tornarás imune ao veneno das nagas e não haverá medo em tocar em Almala.
- Por que me fazer uma favor tão grande?
- Ela não se lembra, mas crescemos juntas na Grande Campina das Nagas do Leste.
Amie olhou o cão de caça e ele estava em posição de avançar. Para exibir a imunidade dele, bastava remover uma luva e depois colocar de volta. Ela retirou as duas e ainda está com as mãos nuas. Morrer pelo veneno das nagas era indolor, ser morto pelo cachorro não. Havia verdade que o veneno fora feito para ser inoculado no sangue, não através da ingestão. Ela não gosta de ser chamada de “rainha no bosque profundo”, mas não a chamavam assim por nada.
Se Amie rejeitasse, certamente perderia para ela e seu cão. Talvez morrer era melhor do que morrer com certeza.
- Aceito a sua generosa oferta Jaila.
Aproximaram-se um do outro e ela abraçou Amie fortemente, mas com delicadeza nas mãos para que suas unhas não o arranhassem. Ela soltou todo veneno que conseguiu no longo beijo, e ao terminar estavam ambos com falta de ar, mas ela logo recuperou o fôlego enquanto Amie caia sobre o chão inconsciente.
Belamais já estava no limite das forças, suas quatro asas não apenas estavam cansadas, mas doendo e doendo muito, mas sem poderem parar. Amie não poderia ter evaporado no ar.
Quando finalmente encontrou, tocou e sentiu seu corpo frio. Não era bom, ela sabia. Carregando em seus quatro braços, percebeu que uma vez em repouso as suas asas recusaram-se a voltar a bater, elas simplesmente não mais obedeciam, como se por vontade própria, agora estavam paradas.
Sem poder voar, corria, com todas as forças das pernas não acostumadas a fazerem isso. Dava alguns saltos vez e outra para ver se conseguia se levantar do solo e ir para o ar, até que finalmente as asas se lembraram como se voa, e chegou na casa dos pais de Amie.
Colocaram o seu corpo sobre uma cama, havia choro. Belamais só conseguiu falar ou pensar com clareza depois de lhe darem um pouco de água.
- Por que ainda não pegaram o unguento? Um outro bálsamo ou remédio? Onde está o médico, já foi chamado?
- Não há mais necessidade de se chamar um médico Belamais.
- Como não há! Tirem as cascas dos seus olhos, Amie não está melhorando!
- Infelizmente és tu que tem que retirar as cascas dos olhos, veja.
Alguma força havia retornado a seu corpo. Ela foi até Amie. Estava tão frio quanto antes, e agora percebeu que não conseguia perceber o pulso de Amie. Aproximou o ouvido do rosto de Amie. A respiração estava muito fraca para ser ouvida. A respiração estava tão fraca que não enxergava o peito levantar e subir.
- Está muito mal, chamem o médico!
- Já morreu Belamais, você sabe.
Não, não morreu, não era possível. Começou a bater, balançar. Nenhuma reação, e eles continuavam sem chamar o médico! O tempo urgia e ninguém queria fazer nada, a própria família havia abandonado Amie, como se fossem fadas abandonando as que não servem mais para a colônia. Por que ninguém estava querendo ajudar Amie?
Tentou gritar, mas a garganta estava sem voz e os pulmões sem fôlego, e nem sabia o que dizer, não conseguia formular frases em sua mente. Parou de sacudir Amie e deitou sua cabeça sobre o seu peito, abraçando com todas as forças.
A sala vazia só possuía uma cadeira. O teto ficava muito, mas muito longe do chão, a sala era larga e sua parede circular, não havendo portas ou janelas para um lado de fora, e onde quer que olhasse, tudo era branco. Amie sentou-se.
- Não vai conversar comigo.
Não havia ninguém mais na sala, com quem estava falando?
- Realmente não irá vim conversar?
Estaria falando comigo?
- Podes me ver?
- Por que eu não poderia?
- Tu não podias antes.
- Quando?
- Quando tu estavas acordado.
- Então aqui não é a morte, estou só dormindo e isto é um sonho?
- Você está morrendo mesmo Amie, mas acho que o nome sonho é adequado para descrever esse lugar.
- Você é a morte?
- Não.
- Quem é você?
- Alguém que observa. Já tenho te observado a bastante tempo. Te acompanhei o tempo todo, vendo tudo que fazias desperto e teus sonhos quando dormias.
- Você é um deus?
- Deuses não existem Amie, bem, eu realmente acredito que eles não existem.
- Então você é eu, uma parte de mim que nunca veio a consciência?
- Não Amie, eu não sou você, nem parte de você ou você parte de mim. Somos pessoas diferentes.
- Quero perguntar de novo quem você é, mas da primeira vez você só me disse “alguém que observa”. Isso é o mesmo que não me dizer nada. Por que não quer me dizer quem é?
- Eu poderia tentar dizê-lo Amie, mas não acho que você compreenderia. Mas tentarei assim mesmo, o fim está perto para você, não negarei isso a alguém que já tem tão pouco. Eu sou um viajante entre os mundos, minha raça não pertence a lugar nenhum e eu não sei como ela surgiu, tal como as pessoas do seu mundo não conhecem tudo sobre o passado de suas espécies. Mas certa vez uma pessoa contou-me uma história sobre as origens do meu povo. Era uma pessoa inteligente e bem informada, mas não sei se o que me disse era verdade.
Não quero pensar em Benjamin, não quero pensar nas coisas que ele disse. Saiam pensamentos, por favor saiam.
- Isso não importa para você não é? Eu estava tentando entrar no seu mundo através de você, por isso lhe observava, para encontrar um caminho e usá-lo.
- Quando você diz mundo, quer dizer as coisas que ficam embaixo do céu? A terra e o mar? Você veio de um lugar onde ficam as nuvens, ou onde ficam as estrelas?
- Não Amie, o seu céu também faz parte daquilo que chamo de seu mundo.
- Quando você diz mundo, queres dizer o tempo e o espaço? Você veio de um lugar fora do tempo e do espaço!
- De um lugar que fica fora do seu tempo e do seu espaço. Existem outros tempos, outros espaços, eu estava em um deles por exemplo.
Algo mudou em mim, eu já fiz essa proposta uma vez. Naquele momento ela tinha um uso prático, e agora, o que tem? Foi o Henrique e Castelo que me mudaram? Não, eu já estava diferente quando cheguei ao Castelo. Foi Benjamin, foi a história do grande povo antigo, foi ele ter me enganado, usado e me salvado. Quando eu fiz essa proposta para Benjamin, as coisas acabaram mal para mim, porque estou indo por esse mesmo caminho uma outra vez?
- Amie, você está morrendo no seu mundo.
- Eu sei, havia me distraído disso com a história incrível que me contou. Podes me salvar?
- Não Amie. Para fazer isso eu teria que estar no seu mundo, apenas observar não basta, e entrar era justamente o que eu estava tentando fazer quando foste envenenado. Não posso te impedir de morrer naquele mundo, mas posso te impedir de morrer.
- Minha cabeça está bagunçada agora.
- Se tu permaneceres neste mundo, morrerás. Tu te tornarás um com o nada, como diz o provérbio. Mas eu posso levar a tua mente comigo, para outros mundos, e assim algo de ti permanecerá. Se decidires ficar, a mente morrerá junto com o corpo.
- Isso quer dizer abandonar minha família e minhas duas amigas?
- Sim, mas elas já te perderam de qualquer maneira. Seu corpo está morrendo.
- Se eu for, poderei voltar?
- Talvez sim Amie, mas não sei, e não conheço nenhuma maneira em que pudesses voltar na qual eles fossem te reconhecer, digo, tu terias de arrumar um outro corpo, em algum lugar, em alguma época. Poderia ser muito longe da época e local onde as pessoas que você conhece vivem, e sua aparência poderia ser muito diferente. Não há como voltar para sua vida antiga Amie, ainda que encontrasses uma maneira de retornar ao seu mundo. Tu serias uma coisa mais parecida comigo do que com o que és agora, ainda que encontra-se uma maneira de permanecer neste mundo, não mais pertenceria a ele. Então, vens comigo para uma nova vida, ou dormirá o sono sem sonhos?
Fechou os olhos, e sem abri-los me deu sua resposta.
Com o rosto ainda repousando sobre o peito de Amie, Belamais sentiu o toque suave de algo frio sobre sua cabeça.
- És uma fada estranha. Vocês não possuem repugnância aos mortos?
A voz era menos que um murmúrio, mas quando olhou percebeu os dourados olhos marrons de Amie sobre si, se movendo de um lado para o outro para entender onde estava, os lábios azulados, mas se mexendo e falando.
- Você está vivo! Não tenho repugnância a você!
O tumulto da casa, que já estava morrendo pela conformação, agora renascia pela esperança de vida. Amie estava terrivelmente frio, então o colocaram perto do fogo, deram-lhe água e comidas leves. Ele respirando ainda com dificuldade perguntou.
- Onde está Almala?
- Faz alguns dias uma naga veio conversar com ela e tiveram uma briga. Quando ela viu o seu estado, imaginou que fosse ela se vingando. Está atrás dessa naga que te atacou.
- Ninguém me atacou, de quem Almala foi atrás?
- Uma naga chamada Jaila, dita “rainha no bosque profundo”.
As forças de Amie retornaram de tal modo como se nunca foram afastadas dele. Decidiu partir para a vila dos humanos, que ficava do sul da curva do grande rio que corre do leste para o norte, ao invés de ir atrás de Almala ou de Jaila, dizendo que possuia assuntos prioritários para serem resolvidos lá no mercado.
Belamais ainda estava, ao contrário de Amie, bastante fraca, e assim foi junto na carroça em vez de voar, com Amie e o seu pai.
Amie disse levar o seu pote de ambrosia, a comida das fadas que nunca apodrece, para um comprador e que não poderia chegar atrasado, para não perder o grande negócio. Mas não se deixou de notar a sua pressa estranha, pois Amie, que sempre fora tão carinhoso com os jumentos não estava lhes permitindo repouso ou desacelerar o passo. Um fogo ardia frio em seu olhar e moedas nunca haviam tido antes tal poder sobre a sua pessoa.
Chegando, desceu da carroça e correu em direção a uma naga negra que estava amarrada e guardada por vários homens.
Tamanha foi a sua velocidade que ninguém viu como Amie estava entre a naga e os homens que guardavam-na, deu uma faca para ela e disse para se soltar das cordas. Quando primeiro guarda viu a reação estranha da multidão a sua frente e olhou para trás, Amie e Jaila já estavam a alguns metros de distância.
- Amie, você está vivo!
- Um pouco, é verdade, mas primeiro Almala, deixe-me corrigir esse engano. Nunca vi Jaila antes em toda a minha vida, ela não tem conexão com a minha doença. Podem verificar o meu corpo, não há mordidas ou arranhões de naga, mas creio que enquanto eu estava adormecido já verificaram isso.
- Ela disse que foi com um beijo Amie, ela confessou, por isso não tens feridas.
Amie virou-se para ver Jaila.
- Que coisas horríveis te fizeram.
- Ela confessou quando foi interrogada Amie.
- Interrogada é sinônimo de torturada. Mais um pouco de interrogatório e teria confessado que foi ela quem matou as nagas da campina leste, uma por uma. Almala, eu vivi esse fatos, sei o que aconteceu e ela não tem nada com a minha breve doença.
Um dos carcereiros fez que ia dar um passo para frente. Amie mostrou algumas pequenas faquinhas que segurava com a mão esquerda.
- Aquele que der um passo em nossa direção sem que tenhamos resolvido a situação da inocência de Jaila não dará o segundo.
Um homem levantou o pé mesmo assim, mas quando esse pé tocou o chão, o resto do corpo veio junto.
- Ai! Ai que dor!
Uma das faquinhas que Amie segurava agora estava enfiada na carne do homem, entre a coxa e a virilha.
- Não o matei porque podia ser que não acreditassem na palavra de uma criança, mas recomendo que não puxem essa faca ainda, ela está tapando a abertura e se a removerem tanto sangue jorrará que ele morrerá. Agora, todos deem um passo para atrás.
Dois homens carregaram aquele que estava sangrando para longe dali, para um médico. Os outros deram um passo para atrás.
Uma mulher mirou bem sua flecha e soltou o arco. A única coisa que se moveu foi a mão esquerda de Amie, pois nem seu rosto ou olhos mudaram de posição. Segurou a flecha no ar, quebrou-a com apenas uma mão e juntou sua ponta as facas que tinha. Depois voltou a permanecer imóvel.
- Obrigado pela lâmina de presente moça, agora tenho sete para as atirar.
Aquilo assustou a todos. O pai de Amie foi então para atrás deles dois, e pegou seu arco.
- Pai, se colocar a flecha no arco, foi avisado de que morreria.
A frase deixou todos atônitos. Como Amie via aquilo que estava atrás dele e como disse aquilo ao próprio pai?
- Onde está o arqueiro?
- Olhe para atrás Jaila.
Amie não demonstrava sinais de se mover, devia haver tempo. Colocou a flecha no arco. Amie virou-se para trás e depois voltou para a posição anterior. O seu pai possuía agora uma faca entre o ombro e o pescoço, e um dos homens que tentou se aproveitar de quando Amie olhava para o outro lado possuía uma entre o pescoço e o peito. Os dois estavam agonizando.
- Errei apenas porque houve pouco tempo para mirar, os próximos não terão essa sorte.
Ambos foram levados dali com pressa, pois apesar de ainda estarem vivos podiam morrer.
- Amie, o que está fazendo?
- Protegendo uma vida inocente Belamais, eu disse que ela confessou aquilo apenas por estar sobre tortura. Não fui envenenado por um beijo.
- Amie, por que está mentindo e protegendo alguém que te fez mal?
- Não estou mentindo Almala. Eu acertei uma faca no meu pai, acha que seria bom com quem tentasse me matar? Estou fazendo justiça! Em sua sua tristeza Almala, buscaste encontrar um culpado por seu sofrimento, mas o mundo não é assim, as coisas ruins não precisam da ajuda das pessoas para acontecerem, nem sempre existe a quem culpar, como é o caso agora. Quanto as outras nagas de bosque profundo: Entregaram uma de vocês por pensarem que se não fizessem seriam alvo da ira dos humanos. Se continuarem por esse caminho, não haverá futuro. Precisam unirem-se! Deveriam ter exigido que ela possuísse um julgamento justo! uma mera acusação não pode ser suficiente para iniciar uma tortura, onde estavam as provas?
Alguém na multidão gritou.
- Avancem juntos! São mais que cinco, e ele só pode atirar uma de cada vez.
- Mas se eu fosse um deles, açougueiro, pensaria “em quem ele vai mirar primeiro? Será em mim?”.
A mulher de quem Amie quebrou a flecha o Chamou de bruxo.
- Agradeço mais uma vez moça pelo seu empenho em me ajudar, és muito gentil.
- Que bobagens estás falando?
- Como eu sou uma pessoa comum, se encontrasse um bruxo não quereria brigar com ele. Minha opinião é incomum?
- Se não és bruxo, como pode ver atrás?
- E vocês não veem o que está na frente! Alguém que tem mostrado tanta piedade como tenho mostrado protegeria alguém que lhe fez mal? Eu sou uma pessoa de convicção, vou até o fim pelo que acho certo e não pergunto se outros concordam. Ela é inocente e não deixarei que morra por algo que não fez.
Havia um silêncio esmagador no ar.
- Digam, cada um de vocês, os seus nomes e em seguida declarem Jaila inocente da falsa acusação de ter me envenenado.
Poucas pessoas no começo, mas depois mais e mais, preimeiro entre as nagas e depois entre os humanos, iam dizendo seus nomes e declarando a naga negra inocente.
- Eu, Almala, declaro…
- Pense bem Almala, ele era meu pai e quase coloquei uma faca no pescoço dele. Vale a pena ir tão longe por orgulho?
Almala virava a cabeça de um lado para o outro, como para remover algo que estava grudado, até que finalmente se decidiu.
- Eu, Almala, nascida uma naga da grande campina das nagas do leste, hoje chamada apenas de a grande campina que antecede o mar da aurora, chamada a caçadora mais forte de bosque profundo, declaro Jaila, chamada rainha no bosque profundo, inocente da acusação.
Amie virou-se para a sua protegida.
- Levante-se Jaila, vá para a casa.
Jaila teve vontade de agradecer, mas sentia como se houvesse uma pedra na garganta impedindo de falar. Enquanto estava a vista dos outros, andava com toda calma que se podia fingir, mas saindo da vila começou a correr desesperadamente. Não podia ir para casa, os humanos poderiam muito bem desrespeitar o julgamento e as outras nagas já mostraram não protegê-la. Tudo ficou para trás, todos os seus pertences, tinha que recomeçar tudo em um outro lugar. Correu o dia todo, e já depois de ser noite procurou um lugar bem escondido para dormir.
Acordou com cão de caça e cão de guarda do seu lado, também dormiam. Havia cinzas de uma fogueira que ela não acendeu, Sua coruja e falcão repousavam em um galho de árvore. Todos os seu pertences estavam ali, ao seu redor.
Amie também estava lá, de costas para ela. Os humanos vivos possuíam calor corporal, mas os mortos não. Retirou uma luva e encostou em sua pele. Era quente.
- Convencida de que eu não sou um morto vivo agora?
- Bom dia Amie, obrigada por ontem.
- Tenho algo para dizer.
- O que é?
- Eu, Amie, que não possuo títulos, declaro Jaila, nascida uma naga da grande campina das nagas do leste, hoje apenas a grande campina que antecede o mar da aurora, chamada rainha no bosque profundo, inocente da acusação.
Aquilo divertiu Jaila, que nas últimas horas esteve muito tensa.
- Amie, posso fazer uma pergunta?
- Sim.
- Eu realmente preciso fazer as perguntas, digo, você pode ler mentes?
- Com quem eu teria aprendido isso? Não posso ler mentes.
- Como sabia que eu não estava indo te envenenar com a minha mão?
- Seria estranho você jogar fora um escudo que tem servido tão bem.
- Amie, você é um mago? Você fez coisas místicas ontem.
- O que a palavra mago significa para você?
- Alguém que domina o sobrenatural.
- Não existe algo que fira as leis da natureza, apenas partes da própria natureza que podemos não conhecer ainda, portanto um mago seria alguém que domina coisas que não existem.
- Deixe-se reformular a pergunta então: Você conhece partes da natureza que ninguém mais sabe?
- Eu não posso ver com os olhos de uma naga, nem ouvir com os ouvidos de uma fada, todos nós conhecemos verdades sobre o mundo com as quais ninguém mais teve contato, então não seríamos magos todos nós?
- Você é escorregadio com as palavras. Amie, eu posso voltar para casa?
- Ambas são seguras agora. A grande Campina que antecede o mar da aurora já não é mais governada por aquelas tristes fadas hostis, e todos os humanos da vila e as nagas no bosque estão com raiva de mim, não mais de ti. Creio que estão convencidos de seres inocente, e há três pessoas lamentando que eu não tenha morrido envenenado por um beijo.
Jaila fez as contas das pessoas que Amie machucou. Uma delas havia sido chamada de pai.
- Achas que seu pai desejaria a tua morte?
- Não, ele está confuso, mas os outros dois sim, e há uma pessoa que você não contou, a mulher que atirou a flecha em você, a flecha que eu quebrei.
- Amie, você não estava tentando matar de verdade ninguém não é?
- Os três não vivem graças a mim, mas ao médico que fechou o corte e limpou as feridas para assim não infeccionar. Não fosse por ele, estariam mortos mesmo.
- Por que fizeste tudo aquilo por mim?
- És tu que estás em dívida comigo, não o contrário, não te devo explicação por minhas ações.
Ela não encontrou nada para dizer, ou que possuísse a ousadia para dizer.
- Mas só dessa vez: Ninguém precisava morrer pelo que aconteceu, e me deixa feliz que assim tenha sido.
Amie pois as mão por sobre as delas e Jaila percebeu que apesar da pele ambos parecer serem da mesma cor negra, não eram. A pele de Amie era na verdade marrom escuro, e a sua própria pele era cinza escurecido. Amie beijou seus lábios e se afastou.
- Por que fez isso?
- É uma despedida. Não poderei me despedir de minha família, de Almala ou de Belamais, que são muito mais importantes para mim do que você é, mas você é a única de quem posso me despedir.
- Para onde tu vais?
- Talvez eu passe primeiro em Nurur, mas não pretendo ficar em nenhum lugar muito tempo. Depois o Reino das fadas, que não é uma monarquia, mas uma cidade fundada por elas e onde muitas colônias vivem juntas. Não chamam a si mesmas de colônias, mas famílias, e os nomes de suas famílias são usados como sobrenomes. Talvez eu vá para a Cidade Celestial ou a capital de Ur. Talvez atravesse o oceano e veja o continente dos dragões ou o país do inverno e a sua capital, a fortaleza de gelo. Há muitos lugares nesse mundo que quero conhecer.
- Quando voltará para cá? Para as suas amigas?
- Eu as amo muito, mas já conheço a história de Belamais e Almala. Há outras histórias que quero conhecer. Se nos reencontrarmos um dia, não sei se elas ainda serão minhas amigas. Não terão motivo para ser, pois eu fui muito mal com elas, então não terei escolha a não ser aceitar aquilo que pensarão de mim. Sempre serei amigo delas, apesar disso, e quando elas precisarem de mim vou ajudá-las.
- Como as ajudará estando longe?
- O mundo parece grande do seu ponto de vista, mas é um lugar pequeno, duas pessoas nunca estão muito longe uma da outra, estejam onde estiverem.
- O que isso significa Amie?
- Não precisas que eu explique para entenderes, é uma verdade simples. Essa nossa despedida já está muito longa não é?
Pois os polegares sobre os olhos dela, e quando Jaila os abriu Amie não estava mais lá. Só então ela se perguntou como Amie sabia que certa vez a grande Campina que antecede o mar da aurora já tinha sido a sua casa.
Muito evoluiu a técnica funerária. A fumaça vinda da queima do cadáver podia ela própria ser fonte de contaminação, então o túmulo onde o corpo era cremado agora era tampado. Para que entrasse o ar que as chamas respiram, ao redor do túmulo circular havia alguns buracos e estes davam o ar para a queima. Ao final do processo eles seriam selados, para não haver passagem de dentro do túmulo para o mundo exterior, assim como não havia passagem na colônia para as construtoras, as domésticas e as parideiras até o mundo exterior.
A comparação não fazia sentido, Laimei era da casta das guerreiras, ela viu muito bem o mundo exterior. As fadas não ligam para seus próprios funerais, pois o corpo sem vida não é mais elas. Se elas são seres vivos, por definição não podem ser um ser sem vida. Porém o funeral de Laimei fora muito mais solene do que o de Rauza. Era injusto comparar, Rauza fora a primeira tentativa, é normal as atividades se aperfeiçoarem com a prática.
No enterro de Rauza existiu apenas um coveiro, que era a própria Belamais. Houve a outra pessoa, a que concluiu o funeral, então na verdade foram dois coveiros. Não importa, no de Laimei havia mais coveiros, e nenhum era uma fada, com Belamais e uma irmã sendo apenas as testemunhas para vigiar a boa execução da tarefa, como deve ser.
Haviam outras pessoas testemunhando também, mas Belamais teria que perguntar para elas os seus motivos. Talvez não para Almala, que era sua amiga e a acompanhava em tudo que fazia fora da colônia. Era natural que estivesse aqui. Mas e o pai daquela pessoa? Belamais possuía uma boa relação com o homem, mas não eram tão próximos. Talvez fosse tédio. O braço desde a facada no ombro não era mais o mesmo, não conseguia segurar coisas com firmeza e nem conseguia controlar bem a força, caçar e pescar eram difíceis. De pescador e caçador se tornou agricultor e pastor. Belamais queria saber o que ele estava fazendo aqui, mas não perguntaria, nunca teria a coragem.
- Belamais, virias aqui por favor?
Fez como o homem disse.
- Eu queria tocar um assunto contigo, mas pode ser que não te sintas confortável. Se não quiseres falar sobre, tudo bem.
- Não há problema senhor.
- Tens notícias da minha criança?
Desde que aquela pessoa desapareceu da cela, que fora no mesmo dia em que havia sido colocada lá, a única coisa que sabia é que havia deixado o lucro de suas vendas juntos para o pai, para Almala e para a própria Belamais. Deve ter sido durante a noite, como um ladrão sorrateiro, mas em vez de levar coisas, as deixou. Se pensava que as contas estavam acertadas, se enganou muito.
- Não.
- Tudo bem, muito obrigado. Se isso mudar, tu me avisas?
Fora esfaqueado, mas Belamais não achava que ele quisesse tanto ir atrás daquela pessoa para puni-lo. O pai era um homem bom, mas fraco, todos foram enganados, mas depois que a verdade se revelou sobre a natureza daquele ser, ainda persistia em amá-lo.
- Sim, aviso.
O funeral terminou. Era a segunda vez que Belamais enterrava um professor seu. Será que haveria uma terceira? Talvez quisesse que sim, talvez quisesse que não, não sabia. Todas as coisas ela não sabia.
A irmã terminara seu papel de testemunha e foi para casa. Belamais permaneceu vagando com Almala por aí.
- Belamais, tu odeias Amie agora?
- Ameaçou-te diretamente e machucou o pai.
- Se quisesse ter matado alguém naquele dia, então pessoas teriam morrido mesmo, viste as habilidades que tinha.
- Eu vi naquele dia, mas nunca vira antes. Por que sempre guardou tantos segredos de nós?
- Tu odeias Amie por isso?
- Ameaçou-te…
- Não perguntei isso, perguntei se odeias.
- Eu não sei. Tudo eu não sei, nunca soube. Pensei que soubesse e estava enganada.
- Certa vez Amie dormiu segurando minha mão e nenhum de nós usava luva. Pensei que fosse um gesto de confiança. Eu não tenho veneno Belamais, eu nasci sem, não gostava de contar para as pessoas sobre isso, agora não ligo mais. Quando Amie segurou minha mão achei que fosse por confiar em mim, que apesar de pensar que eu tivesse veneno, teria cuidado. Mas havia tinha tantos segredos que se revelaram naquele dia que penso que talvez ele soubesse não haver veneno em minhas unhas, que foi apenas uma maneira de me manipular.
Belamais levantou um braço esquerdo e um direito, com as palmas das mãos viradas para Almala e os dedos abertos.
- Aperte minhas mãos com os teus dedos entre os meus, e eu apertarei as tuas duas mãos, é um gesto importante para nós duas, eu sei que é.
Almala fez.
- Eu sei que dói em ti uma dor que não dói em mim, sei que dói em mim uma dor que não dói em ti, embora a causa das duas dores sejam as dúvidas que temos sobre Amie. Certa vez eu disse-lhe para que não confiasse nas nagas, e te peço perdão por isso, porque eras tu que não devias ter confiado naquela pessoa. Eu não te peço confiança em mim, pois tu decides em quem confiar e em quem não, e deves o fazer com sabedoria. Eu confio em ti.
- Eu sei que dói em ti uma dor que não dói em mim, sei que dói em mim uma dor que não dói em ti, embora a causa das duas dores sejam as dúvidas que temos sobre Amie. Certa vez eu disse-lhe para que não confiasse nas fadas, e te peço perdão por isso, porque eras tu que não devias ter confiado naquela pessoa. Eu não te pedi confiança em mim, pois tu decides em quem confiar e em quem não, e deves o fazer com sabedoria. Eu confio em ti.
Soltaram as mãos. Belamais entregou metade do que tinha, com exceção das coisas que Amie deixou para ela no dia em que desapareceu, para colônia e as suas irmãs. Almala pegou suas coisas e as coisas que Amie deixou para si. Juntaram suas coisas e partiriam para a Grande Campina que antecede o Mar da Aurora, veriam os lugares que havia para serem vistos lá. Veriam o mar, e depois iriam para um outro lugar que ainda não sabiam, decidirão para onde ir na hora da partida, e seria sempre assim. Encontrariam um jeito ou outro de ir sobrevivendo na estrada, indo a todo lugar e sem pertencer a lugar nenhum. Conhecerão o mundo juntas, e quem não fosse atrapalhar, seria bem vindo.