O segredo em seus olhos
Quando botei o pé no primeiro convés da lancha, vi logo que estava pisando em um degrau de outro mundo. A linha d’água acompanhando a linha do horizonte, ribanceiras e barrancos como limites, as águas escondendo sombras, misturavam luzes e disfarçavam canais mais rasos e mais fundos. Nem os mosquitos conseguiam perturbar a rotina de trabalho. Ora passavam como o vento, ora caíam como farinha sobre o rosto.
Nunca podia fazer sozinha as menores coisas. Perdi antigos tratos que sempre tive com a liberdade. Até as horas que passavam, deixavam de ser minhas. Mas não foi só a intimidade com as coisas que perdi. Perdi também a intimidade comigo mesmo. O mundo deixou de ser todo na mesmíssima linha; avultaram portos e cidades sempre trepadas em barrancos.
Foi nesse espaço de tempo que tive a maior intimidade com os peixes. Não só. Havia também a maior intimidade que eu tinha com os pensamentos. Um gozo sereno de liberdade. Quase um peixe dentro d’água, uma árvore crescendo da terra úmida, ou um pássaro voando.
E havia o embaixo e o em cima d’água. Os pássaros que voavam em bandos, indicavam o rumo e a qualidade dos peixes em cardume. Peixes-pássaros, pássaros-peixes, tanto mergulhavam como voavam. O miuá caía em flecha dentro d’água pra agarrar o peixe bem no fundo. Levava tempos mergulhado, depois boiava como se fosse um peixe e voava como se fosse um pássaro. No céu, voando, ninguém dizia que podia nadar e vencer as correntezas. Boiando n’água, feito ariranha, ninguém dizia que também podia voar e vencer qualquer vento. Nadava como pássaro e voava como peixe.
Eu fazia parte de uma equipe do INPA, num comboio de balsas e lanchas, mapeando vegetação e bacia hidrográfica. Uma natureza totalmente distinta da que existia onde cresci, mas no fim das contas árvore é árvore, flor é flor, pássaro é pássaro, vento é vento.
Depois que parte do grupo recebeu chamado para socorrer umas máquinas que estavam ameaçadas pela enchente grande, ficamos eu, mais três companheiros e um guia no meio do rio, entre o céu e a água, chegando nas fazendas e cidades por pontes e trapiches.
E, tudo passou a ser marcado por chegadas e saídas, sem paradeiro certo, dependente da maré das águas, das pessoas e até dos objetos. Tentei encontrar os tucanos e papagaios coloridos (muita sorte), as preguiças de três dedos e os porcos selvagens (um pouco de sorte), o lendário boto-cor-de-rosa (sem sorte, talvez) e conheci alguns ribeirinhos.
Quando eu já tinha perdido os caminhos das muitas voltas, que já estava me acostumando com a vida assim mais agreste, foi que eu me compreendi. Estava me aproximando sem saber, do meu caminho.
O momento se deu numa ferra de gado, que era também uma festa de bebidas e comilanças, tudo à vontade. Vinha gente de fazendas de muito longe para comer de graça e beber até cair no chão. E quem ficasse porre, podia escolher um lugar para curtir a ressaca…
Seu Délio abria todas as comportas. Além da ferra de gado, fazia matança e convidava patrícios de longe e fazendeiros para conhecerem seus cavalos. Nessas ocasiões, ele gostava de se gabar das machices dos filhos nas artes da fazenda. Apesar de entrado em anos, ainda arrotava uma valentia fora de qualquer propósito. Falava por ele e pelos quatro filhos: todos eles de boa estatura e se gabavam de fazer qualquer serviço de homem, homem macho. O fazendeiro fazia dos filhos a maior propaganda da raça.
A fazenda do velho ficava na beira do rio e o barco do projeto passava por ali justo nesses dias. A ferra ainda não tinha terminado quando entrei no curral e vi o homem, mais lindo que já conheci, pulando sem corda bem no meio da garrotada. Fiquei pensando que ele estava por demais doido e que ia ser pisado por aqueles garrotes acuados. Eram os mais taludos e os mais brabos que ficavam sempre pelo fim da ferra.
O rapagão foi bem para frente da porteira e deu um grito:
— Bota pra fora um garrote bem brabo e bem porrudo que eu quero mostrá quem sou.
Os dois vaqueiros que estavam na porteira, olharam para o patrão trepado na trincheira, que gritou:
— Solte, solte logo o bicho.
No primeiro salto, ele se agarrou, atracou as orelhas do bicho e foi carregado no cangote. E rente às tranqueiras e aos moirões do curral, os vaqueiros saltavam de lado para deixar o bicho enfurecido arrastar o peão na lama.
— Dá nele, bezerro macho! Dá nele: arrasta no chão esse macho de merda! — gritavam das trincheiras, enquanto o garrote saltava com o moço atracado no pescoço. Deu algumas voltas para cansar a fera e, quando encontrou o primeiro chão firme para se aprumar, aplicou o golpe de corpo no bicho, que caiu com ele na lama, em meio da maior algazarra de toda a rapaziada. Caiu por cima, já com o animal todo sojigado pelas orelhas. Aí, trepou no bicho que arfava de raiva. Com a mão esquerda abaixou o pescoço agarrando nas orelhas, e com a direita quebrou o rabo no toco para acabar com a força do bicho. Então gritou:
— Olha o ferro, seus merdas! Cadê o ferro em brasa? — Limpou a anca com palmadas e quando o bicho levantou, já queimado com a marca de fogo, ainda correu com ele agarrado pelo rabo. Limpando as mãos em desafio, gritou de novo:
— Joga outro pra fora — nem quis olhar para a turma da porteira nem para o pessoal que o tinha vaiado. Sabia que todos, então, aplaudiam. Tirou a camisa e agitou-a. A tatuagem no peito era chamativa.
— Quem é ele? — perguntei a alguém do meu lado, que com sorriso cheio de sarcasmo, respondeu:
— É Matia, filho do patrão. Muita areia pro seu caminhãozinho! Eh, eh, eh… Vive na fazenda, só é visto em tempo de ferra e de festa.
— Moto-serristas! — comentou outro, de lado. — A moça sabe o que é moto-serrista? São esses que derrubam as matas com uma máquina na mão feito tinhosos. Esse aí há de sê moto-serrista afamado. Isso aqui é fazenda de gringos.
— Deus me livre! — exclamei. Sem me ouvir o homem continuou como se falasse para si mesmo:
— Pois só ouço as notícias de tamanhas proezas. Derrubam com a máquina na mão mais de mil árvores: castanheiro, andirobeira, cedro, pequizeiro, mogno, os gigantes da mata. Árvore que leva anos pra grelar e que se gasta dias pra se derrubar com machado. Sozinho, um corta tudo com a máquina. Tudo numa hora, num minuto, olhe que isto é um estrago e uma desnatureza. Acho. Crime contra a vida. Muito pior, mas muito pior mesmo que roubar, que matar, que ser subversivo.
— Essa família talvez seja inocente em toda essa malvadeza — interveio meu guia. — O senhor tem prova? Essa moça é do INPA e pode levar essa prosa adiante…
Não estava ali em serviço, mesmo assim aquela lenga-lenga me incomodou e me fez, naquela hora, perder de vista o tal Matia.
Quando o anfitrião, já meio chumbado, lançou o desafio para montar potros brabos, eu me senti à vontade, acostumada que era à doma e esquecida. Queria chamar atenção. Mas, ouvi pelos cantos:
— Essa donzela…
— Mulher-paraíba?
Agora era enfrentar. Eu precisava demais da consciência alerta e da coragem reforçada. Cavalo é animal cioso, que conhece covardia pelo pisar do estribo e até pelo simples pegar do laço.
O cavalo já estava laçado, encabrestado, cavando o chão com as patas e soprando o vento pela venta, meio desconfiado. Castanho liso, de crina preta e rabo longo. Tremia todo suado e arrepiado de tanta raiva. Dois vaqueiros na cabeça e dois no rabo sojigando o bicho, foi o único sinal que me deram para montar, sem arreio.
Agarrei a crina, colei a bunda e atraquei as pernas na barriga, tudo na mesma hora do primeiro salto. O resto era como se o mundo passasse, pelos meus olhos ou pela minha mente em pedaços. Pedaços de céu, de cores, de chão, de matos, de cercas, de gentes, de mim mesma saídos em gritos e lascas. Lascas que voavam das patas, do chão, das cercas, do céu, das gentes, por cima da minha cabeça. E de cores que viravam riscos e listas na minha vista. Só me lembro mesmo do princípio e do fim da carreira em saltos, quando os vaqueiros sojigaram o cavalo de novo para facilitar a minha descida.
Mas, que enxerguei bem mesmo foi o xadrez-rosa-vermelho-preto da camisa. De todos os homens ali presentes, eu vi naqueles olhos, que ele tinha ficado satisfeito comigo. Eu não queria perder era aquela oportunidade de falar com o moço, mas precisava me lavar e ajeitar.
Quando voltei na varanda, carregada no balanceado do corpo e nos trejeitos da fala, descobri o meu desafio a minha frente, ali bem presente. Eu, toda vestida de vermelho, senti que estava fora do meu juízo perfeito. Já tinha montado a cavalo, só pra facilitar a nossa pura conversa, apertar aquelas mãos e chegar mais perto daqueles olhos.
Nem dançar foi preciso. Somente o encostar do seu braço no meu, já sem aquele arrogo de macho, transmitia uma tremura que nunca havia sentido antes. Tive vontade de ficar apertando aquelas mãos e me esfregando naquele braço. Olhando para ele, senti que aquela luta que começava na varanda da fazenda, ia acabar ali pelos matos ou até quem sabe na rede que eu tinha sempre atada no barco.
Fomos para o quartel dele, como me pediu. Ao atravessar a entrada da caverna, logo no início da mata, ouvia ainda distintamente o carimbó mudar de ânimo e ritmo, irrompendo na cadência saltitante de uma dança. A formação se dividia em várias galerias que, encobertas pela escuridão, lembravam o interior de um palacete. O verde de fora emoldurado pelas rochas era a porta de entrada para um mundo perdido.
A cama parecia flutuar sobre o capim; um capim diferente, de folhas mais largas que o comum. Um capim molhado, mas com possibilidade grande para o incêndio. E foi pegando fogo. Nós, nesse fogo grande, a cama flutuava, fugindo às chamas. Mãos, braços e pernas se amoleceram que eu pensei até que era outra; pois aquele rompante se transformou num abandono de maior desejo e de maior ânsia.
E não era incêndio mais. Interessante: não havia crepitações, nenhum ruído, o fogo era tão mais que silencioso. E era verde a erva queimada.
Nem bichos em fuga:
— Que é isso, Matia?!! — No chão uma enorme sucuri se esticava ao lado de um labrador sonolento.
— Pô! meus bichos… a bicha é só um filhote. — parecia querer me acalmar — E, chamo Mateu.
— Eles ficam aqui? — não tinha como não me assustar. Mais tensa.
— Lascou! A cobra via se tinha tamanho para engolir o cão! — Enxotava a cobra e levou o cachorro para o fundo da caverna.
A sós. Se a gente podia fazer um trato só com as mãos e só com os olhos, esse trato foi feito. Mais do que isso, juramento. Os corpos se misturavam com os pensamentos. Um rio inteiro dentro de mim transbordava. Eu sentia então, o gosto da correnteza, ouvia o barulho do remanso, sentia o travo de mato, ardume de cipó-ferro, e um vento solto entrando pelos meus olhos. Por isso que eu lhe digo: esse trato foi feito justamente naquela hora exata:
— Você ficará pra sempre no mato… pra sempre…
E eu fiquei três dias na gruta (com a condição que a sucuri estivesse sempre bem afastada). Presa em seus braços, ao seu porte; as cores verdes borbulhando pelos olhos e o cheiro do agreste exalando do corpo. Talvez eu tenha me deixado dominar pela paixão, encarcerada em cinco milhões quadrados de mitos e mistérios. Às vezes, aproveitando a beleza e a força que vem da água, da terra, do fogo e do vento ou brigando com a parte ruim:
— Como têm essas terras todas? — perguntei.
— Meu povo está aqui desde o Marañón. Para ter escritura, provaram que a terra estava ocupada, com moradia e produção. Eram pastos naturais — Mateu explicou, entre ofendido e intrigado. Eu, sem tato:
— Ah! Não desmataram? Não são grileiros? — Enquanto aguardava a resposta, a selva me pareceu, escura, densa, até primitiva, muito diferente da versão diurna a que vinha me acostumando.
— É isso que você acha? Eu sou é mateiro — saiu balançando a cabeça.
Eu me desculpei mais tarde, com um jeitinho que o obrigou a me perdoar. Já o conhecia um pouco. Sabia que guardava a feição de cada árvore por onde passava. Até o cheiro da mata ele conhecia. Sabia, pelo cheiro, quando a mata era alta ou baixa; quando a terra era firme ou lama. Descobria os caminhos menos adversos; sentia desde muito longe, onde ficava a água. Se o sol entrava nos galhos, ele sentia o cheiro antes da luz bater nos olhos. Se faltasse luz na mata, era capaz de despertar só mesmo pelo cheiro da manhã.
E, também, descobria e reconhecia as coisas e os viventes pelo som. Qualquer som ele ouvia nas distâncias. No silêncio da mata, era capaz de ouvir até o voo de uma borboleta ou a queda no chão de uma folha morta.
Por isso acreditei.
As cores verdes me tinha invadido toda a vista. Depois que eu entrei mais na mata, os verdes apagaram até as marcas dos meus passos. Sons, cheiros e cores arretavam os sentimentos, eu sabia que estava sendo conduzida por algum mistério. Mistério não, encanto: gostos e desejos. Por esses cheiros, por esses sons e por essas cores, eu ia me embrenhando para dentro da mata e para dentro de mim mesma. Mais para dentro, muito mais para dentro… Queria derramar a água no rio, o cheiro no vento, a terra na terra. Fazer como a chuva que sempre voltava a dormir com o rio no leito.
Mas tive que partir. O barco me esperava. Tinha um contrato. Voltaria assim que pudesse.
Poucos meses se passaram, o mundo rodou, e eu tinha como certo que minha vida estava à beira do Amazonas, onde encontrei meu homem para cumprir a nossa sina, para viver sonhos por alguns pedaços, na segurança do meu casulo de algodão:
— Seu Délio, preciso falar com Mateu.
— Num dá! — pausa — Quem? — o fazendeiro balançou o queixo, indicando meu ventre crescido.
— Mateu.
— Au vaiêê! Vou chama eles aqui e a senhora escolhe outro. Mateu está morto, desde bebê. Num descuido da mãe foi levado por sucuri.
Sentiu um calafrio, tinha as pernas bambas, o coração disparado, nenhum dos irmãos trazia a tatuagem no peito, os anéis pretos que o atravessavam de um lado ao outro, em forma de sela.
A família escutou minha história e me acolheu. Durante poucos meses tentei encontrar respostas para certas questões cruciais. Eu poderia dizer que, o que aquele homem exerceu sobre mim, foi uma obscura fascinação, como se me desse uma oportunidade para despertar para uma nova vida.
Encontrei um lugar para me sentir segura. Talvez tenha me perdido um pouco na paixão. Porém já me sentia desperta e viva como havia tempos não ocorria. Sabia aonde estava indo.