A Mãe da Escuridão
Cada médium possui sua revelação e a forma como enfrenta seu caminho de descobrimento é muito diferente. Existem aqueles que como eu são perturbados até que chegue o momento em que o Pai de Santo desenvolve as correntes e no terreiro de macumba encontra aquilo que lhe traz paz. Acredito que assim o mistério desabrocha com provas mais brandas. Mas existem aqueles médiuns que para desenvolver suas correntes precisa suportar duras provas e chegar até a beira do buraco da morte para poder ter paz nos mundos pelos quais viaja. O mistério não é igual para ninguém. Ele apenas desabrocha.
Certa vez, pude comprovar esses segredos por minha própria visão. Fui levada a um mundo muito distante, muito além de tudo o que existe na terra. Fui mandada por força do encantamento. Nãos sei como aconteceu, mas recordo que na última vez em que tomei cor de mim ainda respirava na minha rede. Me acordei debaixo de uma grande árvore. A poeira corria naquela paragem, as coisas estavam calmas. Me pus a caminhar sem direção determinada. Senti que qualquer caminho me levaria para ver aquilo que pulsava naquele mundo.
Depois de muito caminhar cheguei a uma parte completamente desconhecida. Ali estavam reunidas muitas pessoas caminhando em volta de algo que não consegui ver. O sol estava pálido, muito próximo de fechar os olhos. Em breve a escuridão tomaria conta daquele lugar encobrindo o rosto daquela gente. Caminhei pelo meio deles procurando reconhecê-los. Cada pessoa que encontrava vestia uma roupa diferente colorida pela poeira vermelha que subia do chão. Me despedi dos rostos que não reconheci e avancei mais para o meio deles. Procurei não tocar em ninguém, mesmo assim senti uma mão tocar a minha e impedir que eu seguisse adiante. Através do vento uma voz disse:
– Não passe além deste limite. Algo que não é para a gente acontece nesse círculo.
Me virei para reconhecer aquele que me tocava. Certamente ele procurava me esclarecer sobre os mistérios que faziam aquelas distâncias. Um homem me olhava com doçura enquanto segurava minha mão. Era meu antigo irmão no encanto. Ele havia partido da terra não fazia muito tempo e deixou uma grande falta em mim. Ele foi logo dizendo:
– Minha peregrinação continua aqui até que chegue o tempo. Olha ali – disse apontando o centro a partir do qual aquelas pessoas se reuniam – foi aquele mistério que nos trouxe para cá.
Havia pessoas ao redor de umas coisas que demorei a enxergar, mas que logo se revelaram muito escuras. A noite escapava de dentro de grandes buracos no chão e começava a cobrir o mundo. Contei sete buracos de boca muito larga, todos abertos em sequência com um pequeno espaço entre si. Não se poderia apoiar mais do que um pé nestes espaços entre os buracos. A escuridão respingava em quem estava muito próximo, por isso procurei me afastar com meu amigo. Senti medo que aquela escuridão acabasse inundando meu coração.
Enquanto me afastava, notei que um grande monte deformado gritava para que todos os que estavam ali se calassem. Não se via muito do seu corpo nem podia se distinguir se havia separações nele. Ele tinha uma língua de fogo que escorria por entre uma abertura naquilo que podia se julgar como cabeça. Era por aquela abertura que saía o som rouco e terrível. Uma moça estava ao seu lado, porém não a reconheci. Ela chorava copiosamente. Parecia muito infeliz. Seus grandes cabelos pareciam molhados pelas lágrimas que desciam de seus olhos. Logo entendi que não poderia escapar daquele ente. Por alguma razão ela lhe pertencia.
Quando todos os espíritos se calaram, o ente falou novamente:
– Agora vocês vão ver como vou ganhar essa alma.
A moça deu um grito de desespero e pediu forças a Deus. O bicho mandou que ela se calasse, afirmando que ele mandava ali. E completou com sua ordem impossível:
– Você vai pular sobre esses sete buracos indo e voltando. Se você cair em qualquer um deles, então sua alma será minha para sempre. Mas se você conseguir pular sobre todos eles sem cair tanto na ida quanto na volta, estará liberta e poderá ir para sempre cumprir seu encantamento no mundo dos vivos. Vamos ver se você consegue. Acho melhor se entregar logo, pois nunca ninguém conseguirá vencer meu desafio.
Ao ouvir essas palavras fiquei mais apavorada que a moça. Ao terminar de falar, o ente deu uma grande gargalhada que ensurdeceu a todos nós. Olhei para meu amigo, como se perguntasse com os olhos se ele sabia como a moça poderia sair daquela armadilha. Ele entendeu minha ansiedade e apenas me disse:
– Vamos ter fé em Deus. Ele é o único que pode mandar socorro para aquela moça.
Não havia como a moça recusar a tarefa que lhe foi imposta. Seu vigia era terrível e com certeza jamais lhe deixaria escapar. Ele mandou que ela começasse a pular. A moça chorando se preparou e novamente pediu forças a Deus. Deu o primeiro salto caindo sobre a pequena ribanceira que existia entre os primeiros buracos. O ente fez cara feia. Brasas se esbugalharam nos buracos de seus olhos. A moça se preparou no pequeno espaço e deu outro pulo, novamente conseguindo acertar o pé no chão. E assim fez com todos os outros buracos. Ela atravessou a primeira parte da prova sem tombar nem cair. Lágrimas escorriam de seu rosto enquanto pulava pelos buracos e a escuridão lhes tragava. O bicho não gostou, mas quando a moça estava do outro lado arrodeada de gente, ele disse:
– Você ainda não está livre. Agora tem que voltar e tenho certeza de que vai ser minha escrava para sempre.
Temi pelo destino da moça. Imaginei que seria impossível que ela concluísse a outra etapa com sucesso. Um vento começou a soprar. A multidão reunida naquele círculo ficou mais atenta ainda. Pensei em mandar a moça correr e se esconder. Mas sabia que ela estava obrigada e que nunca encontraria paz nos mundos se fugisse daquele que lhe ameaçava. Teria de enfrentar.
Vi ela dá o primeiro pulo. Do outro lado, o ente abriu dois braços em meio sua ansiedade, certamente que ele esperava tomá-la para si. Tive pavor em ver aquilo. Os buracos parecem que cuspiam escuridão para cima das ribanceiras sobre as quais a moça deveria alojar os pés. Ela escorregou nesta escuridão trapaceira e já afundava no último buraco profundo. O Ente botava a língua de fogo para fora num gesto de felicidade.
Foi então que uma velha que assistia a cena quase do meu lado jogou um cipó e com ele laçou a moça, puxando-a para fora do buraco. O bicho ao entender o que estava acontecendo avançou com violência pelo meio dos outros espíritos. Chegou perto da velha bufando de raiva, enquanto ela cuidava da moça em seu colo. Ele disse:
– Agora vou te levar pro inferno, velha maldita. Não podia ter arruinado meu negócio. Essa alma era minha.
Porém, a velha sequer mudou seu semblante e tirando um cacete debaixo de sua capulana bateu fortemente no ente, dizendo:
– Acaso esqueceu quem eu sou? Nenhum ente ruim tem mais força do que a Mamãe Exu. Fui eu quem anoiteceu as suas auras e fui eu quem esfarelou as estrelas no céu. Eu sou a mãe da escuridão e a senhora das curas. Eu curo com o claro da meia noite. E te afasta daqui, segue o teu caminho para bem longe da minha filha.
O bicho ficou pequeno e sequer pôde falar. A pancada lhe amiudou. O peso da Mamãe Exu lhe amedrontou. A velha era uma senhora do antigamente. Ela disse a moça:
– Minha filha, a tua tarefa está concluída. Não se preocupe mais com as trapaças daqueles que vivem na escuridão. Vai embora e vai trabalhar no mundo dos vivos.
Neste momento, a moça virou luz e sumiu dos braços da velha anciã. Essa olhou para mim e disse:
– O que você faz por aqui minha filha?
Só pude lhe responder:
– Só Deus e a senhora podem saber, minha mãe.
Ela sorriu, levantou-se, ajeitou a capulana sobre o ombro e falou:
– Eu sei que a força que te gerou continua parindo borboletas. Não se pode pedir que uma borboleta volte ao casulo. Seu destino é voar pelos mundos desconhecidos e beber dos mistérios. Mas se lembre de fazer suas obrigações quando chegar no mundo dos vivos, pois um médium jamais se despede de suas obrigações. Oxalá que te acompanhe.
Ao ouvir o nome sagrado de Oxalá fui puxada com força. Voltei a carne. Me despedi daquele mundo. Ainda tive tempo de ver meu amigo sentar-se na frente da Mamãe Exu. Ela lhe falava alguma coisa que não tive a permissão de escutar.