ASTELO

Tem um avião que rondava à meia noite sobre o Terreiro de Umbanda onde os médiuns estavam trabalhando. Digo “tem” por que ele ainda existe e circula acima dos terreiros onde a umbanda permite que certos Cavaleiros possam tocar o chão de terra novamente. Havia gente que não acreditava nesse mistério na década de 1950 e muito possivelmente que haja pessoas que não acreditam hoje. Mas eu vivi esse segredo e continuo a vivê-lo todas as vezes que me entoo na Linha dos Astros.

Foi no terreiro do Mestre Antônio de Mel que aconteceu pela primeira vez. Eu principiava nas infâncias da umbanda, pois ainda estava começando o meu caminho pelo meio do mundo. Mas aquele lugar preservava segredos que encantava a todos que lhe procuravam. Foi naquele lugar banhando pela sabedoria do mar onde primeiro vi o mistério se realizar nos Astros assim que um Cavaleiro baixou na coroa do velho Pai de Santo. O zunido de um avião rondou o salão desde às alturas e só terminou quando o Encantado se despediu e foi embora. E todas as noites de gíria, o Cavaleiro trazia seu avião e o mistério se renovava.

O povo que desacreditava fazia mangofa dessa experiência, mas o Mestre Antônio de Mel reagia com paciência e dizia:

— Negada não desacreditem nos mistérios dos Encantados. Eu sei que parece difícil, mas basta vir ver o trabalho e tudo será provado por eles. Vocês ainda vão ver tantas coisas acontecerem neste terreiro.

Ele não tinha nada a temer, pois sempre foi um homem que encarou com honestidade seu destino e cumpriu a promessa de ser fiel ao nosso passado ancestral. Ele havia sido escolhido pelo mistério para anunciar o chamado a muitos outros médiuns como eu e nos preparar para nosso destino na umbanda. Ele nunca mentiu sobre a magia que rondava seu terreiro, nunca faltou com a verdade em um trabalho e jamais se acovardou diante da necessidade de esclarecer aquilo que os Encantados ordenavam. Aquele homem tinha muita seriedade com seu trabalho e com a gente, por isso eu confiava em suas palavras, em seus ensinamentos, em seu olhar, em seu riso antigo.

Ele me contou que aquele Cavaleiro que baixava no terreiro à meia noite se chamava Astelo antes de se encantar e encontrou um aviador vagando pelo deserto. Foi ali que sua jornada em direções desconhecidas começou. O encontro fez nascer uma amizade entre os dois e eles decidiram sair juntos naquele avião. A estória de seu transportamento desse mundo é quase toda contada por sua doutrina. Foi o avião que se perdeu assim que levantaram viagem. Astelo se encantou junto com o aviador nos Astros e continua a voar pelos céus de muitos mundos. Aquele veículo só voltaria para a terra nos poucos minutos em que Astelo baixasse na coroa de um médium. Sua doutrina diz assim:

Astelo saiu do porto junto com aviador

São trinta bandeiras verdes,

As outras trinta são azuis.

Astelo vinha viajando junto com aviador

Implorei bandeira branca,

Implorei bandeira azul.

Astelo trabalha com as forças dos Astros, pois foi nessa linha que se encantou. Gostava de ver aquele Encantado baixando na coroa do Mestre Antônio de Mel. A força de sua pisada nos tocava o coração. Ele passava por nós e eu me arrepiava com sua energia.

Certo dia, Astelo baixou na coroa do Mestre Antônio e me disse:

— Quero baixar em sua coroa, minha filha.

Fiquei feliz que ele me escolhesse e lhe respondi:

— Assim seja, meu Pai.

A noite já tinha avançado no horário e o Astelo foi embora, mas naquela vez o avião continuava a zoar acima de nós. Quando ele saiu do corpo do Mestre senti um choque e entendi que havia chegado minha hora. O Alcídes que também era Pai de Santo e filho do Mestre Antônio de Mel havia se entoado com uma Princesa. Ela olhou para mim e me disse:

— Prepara!

O salão estava cheio de gente. O avião continua a zunir no céu. Olhei para fora do terreiro pela porta que estava aberta. O mar tocava o cascudo com maciez. A lua dispersava sua luz pelas águas presas nas rochas. Peguei minha capa e a pus sobre minhas costas. Senti o vento que entrava pela porta de meu nariz, uma brisa fresca e azulada. Fui me perdendo das pessoas que estavam ali me olhando. O avião zunia mais alto em meus ouvidos. Ainda tive tempo de pensar que não achava que aquele mistério se cumpriria tão logo em minhas carnes, mas cabia a mim me entregar com leveza. Fui saindo do corpo, escorrendo por entre os poros de minha pele negra. Já estava na fronteira dos planos quando vi aquele homem descer voando do meu lado enquanto eu era suspensa em direção às alturas estreladas. Ele tinha uma pele anoitecida, como se o sol do deserto tivesse se demorado nele e era tão jovem quanto um menino. Não havia em sua extensão a brancura que me contaram as estórias vindas do outro lado do mundo. Ele passou por mim e me sorriu. Continuei a subir até me achar em seu avião. O aviador estava ali e me olhou com doçura, mas não me deu abertura para que lhe falasse. E entendi que existem coisas que não devem ser esclarecidas tão logo. Mesmo assim não tive dúvidas que poderia entrar em seu avião e esperar até a hora de retornar à terra.

Me disseram que Astelo baixou em minha coroa no momento em que sai do meu corpo. Contaram que se ouviu o avião zunir em cima do terreiro até que ele foi embora. O povo ficou admirado com aquela experiência. Essa estória ficou gravada em meu corpo de modo que nunca poderei lhe esquecer. Sigo com Astelo em minha coroa. Ele me visita sempre que meu velho corpo permite suportar sua mística. O aviador até hoje não me disse palavra alguma e já faz setenta anos que nos encontramos dentro de seu avião. Nunca a doçura se desmanchou de seu rosto.