ACERTO DE CONTAS

Era uma noite medonha, daquelas que prenunciam tempestade ou desgraça. Como era afinal primavera, o mais provável é que fosse tempestade. Mas não era...

***

– Arrependa-te, pecador! – disse-me o mendigo com cara de louco, segurando-me pelo braço. – Tuas mãos têm a marca do sangue de milhões. Olha para trás, conta teus pecados e procura o arrependimento. É chegada a hora em que o sangue será redimido com sangue e a dor será paga com dor! Tua casa há de ruir sobre ti e os espíritos deitarão em tua cama. Arrependa-te pecador!

Não sei como, mas quando me dei conta estava deitado sobre o sofá da sala. Aquele rosto maligno, de olhos foscos, continuava a me amaldiçoar, as palavras ecoando na mente. Aquela voz diabólica repetia incansavelmente as injúrias mesmas, com ódio, com pressa. Meus pés suados dentro dos sapatos queimavam como que postos ao fogo. As mãos escorregadias pareciam recobertas de óleo quente, viscoso. O corpo custou a responder, escorregando pesado até o canto para ligar o abajur.

A luz denunciou um palco de horror. Manchada de sangue, revolvida no todo, o espelho quebrado, a sala parecia cenário de pesadelo. Os corpos deformados espalhavam-se sobre os tapetes e sofás, mutilados e ensangüentados. Pessoas estranhas circulavam pela casa, rindo e dançando sobre os corpos ao som de uma música sinistra. Um operário investia contra as paredes com uma marreta, abrindo enormes buracos por onde se podia ver todos os cômodos. Sobre a minha cama vi enrodilhada uma enorme cobra a devorar lentamente o gato, lambendo-o e regurgitando um líquido branco e viscoso. O mendigo, sentado na cama, acariciava o dorso do réptil e repetia as palavras que me dissera, dando cada vez mais ênfase a elas, apontando dois abutres que arrancavam a bicadas os olhos de minha mulher que, completamente nua, agonizava a se debater no chão.

****

às vezes ganho coragem e caminho até perto do portão para ver se ainda estão lá, esperando que eu saia. Sempre estão! Convidam-me para sair e sorriem animados, oferecendo-me sorvetes e doces. Sinto muita falta de sorvetes e doces, mas percebi que aqui não preciso fugir e o mendigo não pode me amaldiçoar mais.

Outro dia me forçaram a sair. Foi terrível! O mendigo estava lá e falou coisas horríveis de mim. Era uma sala apertada e quente, com ventiladores de teto, cheia de abutres que tentavam bicar meus olhos. Fui salvo por um anjo de asas douradas com olhos piedosos e palavras bonitas. Quando pensei estar perdido sem salvação ele esticou as grandes asas e os abutres se afastaram, os piratas cessaram de gritar e o mendigo arregalou os olhos sem brilho nem expressão. Então vi o anjo erguer sua trombeta de ouro e executar uma peça divina. O corpo foi-me ficando mole, sonolento, pesado...

***

– Papai, não fui eu!...

– Sabe, Paco, eu sempre achei que você nunca daria nada na vida. Estava enganado! É muito pior...

– Mas foram eles, papai! Foram os abutres, foi o mendigo... papai, eles me perseguem...

– Todos pensam que você é louco, sabe? Todos, menos eu! Aquele advogado convenceu a todos, por isso você está nesse hospício e não na cadeia, que é o seu lugar. Mas a mim não! Eu sei que você não é louco, está fingindo, como sempre... é muito pior!

– Papai, o padre me falou dos espíritos...

– Cale a boca! Cale essa maldita boca, seu miserável! Você não sabe o ódio que senti no momento em que enterrei meus netos. Dois anjos, tão lindos os seus filhos e você os matou. Cortou a garganta. Esquartejou sua mulher. Arrancou os olhos deles... seu monstro!

– Foram os abutres!

- O único abutre aqui é você! E não pense que tudo vai ficar assim. Todos os dias visito o túmulo dos meus netos, sabe? Aquele julgamento vai ser anulado, Deus é grande! Vai ser anulado e você vai apodrecer na cadeia! Loucos estão os médicos que te puseram aqui!

– Foi a cobra que matou o gato, eu vi, papai! Eu vi pelo buraco da parede...

– Não há cobra, não há abutres, não há mendigo! Você fez aquilo, seja homem, ao menos uma vez seja...

– Senhor, seu tempo acabou; precisa ir, o paciente tem que descansar agora.

Papai parecia não querer ir, mas a anjinha pegou-o pelo braço e levou-o embora. Ele saiu me olhando com aqueles olhos de censura, com aquela expressão superior que sempre teve, esmagando todos. Segui seus passos com os olhos e pude perceber que depois de transpor o portão ele conversava com os abutres e com o mendigo que me vigiavam lá de fora. Papai estava do lado deles, percebi logo.

***

– Quer dizer que basta saltar, cair, mergulhar, só isso?...

– Vá ao ponto mais alto que puder – disse-me o anjo com voz de veludo. – Uma vez lá, salte, deixe o corpo cair sem medo, não pense em nada...

– E?...

– E teus pecados passarão diante de teus olhos, teus crimes de outras vidas te serão revelados. Peça perdão, acerta tuas contas com o tempo, corrija aquilo que puder... zera tuas dívidas de todas as vidas e ao cair tudo será diferente.

– Mas que peso é esse que carrego?

– Todos carregam. Como cada gene é produto de muitas gerações, a memória de muitas vidas, assim também se forma o espírito, pelo acúmulo de muitas vivências. Passado e presente são muito mais íntimos do que se possa pensar. Pula, salta, e verás o que te estou a dizer.

– E eles? – perguntei-lhe, apontando o mendigo e os abutres que espreitavam-nos lá de fora.

– São dívidas tuas. Pague-as e não estarão aqui quando voltares; nunca terão estado... até mesmo eu não estarei, asseguro-te.

***

– Querido, graças a Deus! Doutor! Enfermeira!

Era minha mulher, linda como sempre, o amor da minha vida. Ria e chorava, beijando-me e chamando o médico, a enfermeira, alguém! Percebi logo que estava em um hospital. Mas por quê? Não conseguia lembrar. Devagar fui sentindo a bandagem na cabeça, o gesso na perna, as ataduras envolvendo grande parte do corpo.

– O que houve? – indaguei atordoado.

– O avião caiu, não lembra?

Lembrava sim, agora me lembrava. Era uma noite medonha, daquelas que prenunciam tempestade ou desastre. Meu pai insistia em ir, arrogante como sempre, acusando-me de maricas, covarde. Fomos...

– E o meu pai?

– Morto – respondeu ela, após breve pausa. – Você se salvou por milagre!

Quando minha mulher se foi, tive tempo para refletir, lembrar. Tudo parecia diferente. A luz que vazava a janela parecia mais leve e eu tinha vontade de levantar e passear lá fora, ver o mundo. O dia parecia muito apropriado para uma caminhada. Andar, andar, andar, sem rumo. Começar tudo. Pegar as flores do criado, desfolhar pétala por pétala. Jogar as pétalas no chão do quarto. Não ler o cartão que acompanhava as flores. Sim, o cartão! A mão apanha lentamente o cartão e os olhos lêem:

“ Vida nova! Tuas dívidas estão zeradas! Faça teus dias

diferentes. E não deixe contas a acertar como herança”

O cartão não vinha assinado. Nem precisava...

Valmere Klippel Santana
Enviado por Valmere Klippel Santana em 08/01/2021
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