Passa ou não passa...?

Tamanha era a reverência ao marido Alcebíades, que Dona Eulália a ele se referia sempre como O Doutor, e ainda acrescentaria Honoris Causa se a conversação se estendesse. Um brilho só, aquele hipocrático por excelência. Jamais errara um diagnóstico. Um brilho e uma precisão sem par.

Modestamente, Alcebíades agasalhava as referências invariavelmente lisonjeiras da devotada esposa de já trinta anos de feliz consórcio, embora o traquejo na construção da imagem coubesse inteiramente a Dona Eulália.

Num belo início de tarde de um sábado, rodeada de senhoras rotaryanas da high society em sua mansão, enquanto se serviam as finas iguarias que antecipavam mais um ágape hollywoodiano, Dona Eulália, quiçá, acelerada pelo borbulhar do champã, repetiu o refrão das virtudes profissionais do marido com uma ressonância acima da costumeira para o vivo embevecimento das convivas.

E com efeito, foi trepidante a chegada do garboso anfitrião tão-somente para breve saudação, pois estaria já de saída para uma partida de golf com amigos, percutiu fundo no coração de Eulália, e os cobiçosos entreolhares das elegantes circunstantes.

E só um pequeno incidente viria quebrar aquela euforia: ao chamar as convidadas para a mesa, Dona Eulália, para seu estarrecimento, ouviu justamente da mais jovem e graciosa copeira, que trouxera do interior, para educar e refinar, uma manifestação peremptória e irrevogável de demissão.

Lívida, mas imperiosa, Dona Eulália afirmou, de alto e bom som que não tolerava, não aceitava tamanha rebeldia e desfeita de uma "jovem inculta e insubordinada, com tanto futuro pela frente..." e que iria resolver o assunto, em particular, oportunamente...

A jovem, entretanto, redarguiu:

- Mas a Senhora confirma mesmo que disse sobre a precisão dos diagnósticos do Doutor Alcebíades, de que ele nunca errou...?

Dona Eulália não se fez de rogada, reafirmou suas convicções, e ainda ordenou a jovem e se colocar em seu devido lugar e aguardar o desfecho de sua insubordinação.

Mas a moça, cabisbaixa, antes de se afastar da constrangedora cena, tão somente balbuciou:

- Pois é, Dona Eulália, eu até que estava me sentindo no paraíso com a oportunidade de trabalhar aqui, de poder pensar num futuro, mas o Doutor Alcebíades, ele mesmo, ao passar por mim no corredor, ainda agorinha mesmo, só me olhou e falou:

- Você não passa da noite de hoje...!

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 05/12/2020
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