Um Conto de Biscoitos e Espinhos

Biscoitos e Espinhos

Era mais um dia comum e sem muita expectativa (como se eu já soubesse o que iria acontecer a cada instante). Faltava pouco para o sinal da escola tocar e eu me escafeder dali. Era um dia chato entediante... GRRF... Eu só queria que ele terminasse logo.

Pedi a professora para ir ao banheiro, mas ela negou alegando que logo já iríamos embora. Então dei de ombros e me debrucei sobre os meus braços com a cabeça voltada para fora, olhando a janela...

Aspirando o ar da liberdade longe de toda aquela gente que ficava me zoando, longe de seus tão pequenos pensamentos.

O céu estava tão lindo, as nuvens pareciam algodão doce, eu até podia sentir a textura delas na boca “yame!”. Tinha uma que parecia um bichano brincando com um novelo esparramado. Estava tão concentrada que só ouvia os pássaros piando um pio de Liberdade, Liberdade!!!

Dei um rápido sorriso, mas logo meus braços começaram a doer, reflexos de uma noite mal dormida que não quero me lembrar, não hoje, não agora. Rapidamente abri uma das ante braceiras e chequei os curativos. Um deles havia soltado e causava o incomodo. Então logo que eu o consertava o sinal tocou, eu ignorei a dor (sempre fiz isso afinal) peguei minhas coisas e literalmente saí correndo rumo a LIBERDADE huurruh!

Desci as escadarias como um relâmpago de alegria.

Era sexta feira... Tipo SEXTA FEIRA!!! Tudo o que uma fedelha na altura dos seus 14 anos almejava de uma semana. E eu já até sabia aonde ir, queria aproveitar à tarde para relaxar e esquecer um pouco os problemas, isso me aliviava e me impedia de não voar na garganta de um ou outro.

Fazia isso no parque Ipiranga, gostava de lá. De deitar no gramado ou percorrer as arvores mais adentradas do parque porque era isolado e livre de barulhos, incômodos da cidade, era um refúgio graças a sua geografia que quebrava bastante o som e somente eu ia até tais redondezas, pois sabia todos os caminhos dele e também porque crescia violetas (Ahh VIOLETAS!) em uma parte especifica do parque. Mas, de uns tempos pra cá a prefeitura tinha começado uma reforma, podando as arvores velhas pra não caírem na cabeça do povo e estavam escavando alguns lugares, e criando barulho vindo das máquinas e conversas furadas dos operários, mas ainda assim não me impedia de ficar em paz. Tanto eu quanto senhorita Border.

Meu dia estava chato porque Lili (a gaga mais legal do mundo) única amiga de minha daquele lugar não tinha ido à aula, estranhamente porque ela não era de faltar. E agora era esquisito andar sozinha (se bem que eu sempre andei assim, mas...) mas, agora parecia diferente. Eu tinha alguém com quem compartilhar minhas incríveis ideias e loucuras e que me olhava com olhos de “normalidade” ao menos era o que parecia. Como Denver também o fazia.

Era diferente... Ficou tudo preto e branco. Não se separa o Tom do Jerry ou o Para do Quedas, ou até mesmo um átomo (Einstein ficaria orgulhoso de mim! Pose para foto de inteligente... TQUI!) do mesmo modo que o dia ficava sem graça quando Lili ou Avelã faltavam, eu simplesmente não tinha quem perturbar ou... Perseguir...Ham... Enfim... Detalhes demais COF COF! Poeira do caramba aqui hein.

Antes de me dirigir ao parque eu fui até a casa que eu julgava a mais maneira da Rua Leopoldo. Era muito bonita a meu ver. Tinha uma única entrada que era uma soleira com escadas de rochas irregulares todas minuciosamente detalhadas como se fossem à mão. Tinha lindas janelas abobadadas grandes e suas paredes eram cobertas por flores de plantas trepadeiras que floresciam enfeitando a estrutura. Ela era rústica e lembrava aqueles casarões dos anos 20, era demais, mas o que mais me encantava era o jardim daquela casa. Ele era muito lindo, era bem grande e tinha vários pneus que serviam de vasos para algumas flores e santuário para os pássaros, era surreal...

Tinha um balanço bem no centro dele e era um carvalhal imenso que o sustentava em troncos espessos e recheados de luzinhas neons. Tinha sinos de vento pendurados entre os galhos do carvalho e a grama era sempre impecável como um carpete. Eu me fascinava com tudo e me revoltava profundamente quando via certo bando de desocupados vagais apedrejarem e zoarem a casa.

Eu não entendia o porquê faziam isso até ver a dona que eles julgavam ser uma bruxa. Ela era uma senhora comum de meia idade com roupas diferentes apenas e até muito elegantes. E de hábitos diferentes só isso.

Sempre ao ir pra escola eu a via saindo pra rua com seu vestido azul Blue Marinho e seu Cardigã vinho com pontas bordadas. Ela colocava uns potes de geleia em cima do seu muro e os deixava lá com a tampa aberta, um prato cheio para as formigas.

De manhã ao ir pra escola eu gostava de passar por lá. Via que ela abria todas as janelas da casa sempre num mesmo horário específico às 07h45min. Eram um tanto quanto curiosos alguns hábitos daquele ser, mas afinal, quem não possui suas doidices ou manias? Disso eu entendia muito bem.

Eu gostava demais daquela casa e sempre dizia que se tivesse uma ela seria naquele estilo, bem diferente das outras mesmo que ela fosse fora dos padrões atuais de arquitetura, ela seria única, rara, fora de série, não precisava ser gigantesca e de muitos cômodos, mas fazia questão que fosse sem igual.

Eu me agarrava ao muro e o escalava para ter uma vista mais panorâmica do jardim e em algumas vezes eu o pulava quando a senhora aparentava não estar perto só para me sentar ao lado das flores (numa inconsciente e vã esperança de que eu poderia algum dia, me tornar tão linda quanto às flores companheiras... um sonho muito alto pra um rascunho do capeta... ao menos almejava ter tais flores no meu tumulo) brincava com algumas borboletas que, incrivelmente, eram numerosas por lá (talvez lá fosse o point delas aonde jogavam pôker e abasteciam o tanque) e às vezes era possível ouvir certo som melódico tão maravilhoso que só deixava tudo mais perfeito.

Era um som de piano tocado suave e magicamente, tão suave que você precisava parar de respirar para ouvi-lo claramente algumas vezes. As melodias variavam. Em certos dias eram mais frenéticas e rápidas como uma locomotiva saindo passando a mil num túnel, outrora mais melancólicas como as chuvas de novembro, e em outras mais como o som de gargalhadas de criancinhas pulando em poças das mesmas chuvas de antes, mas não deixavam de me encantar, nem na loja de instrumentos do Gary eu podia me sentir tão bem ou ouvir algo tão magistral.

Hoje não foi diferente.

Fiz a mesma coisa e fiquei embaixo de uma das janelas para não ser vista (mama diria “Não invada a propriedade dos outros Kiara, isso vai te meter em problemas bambina”), mas sempre valia o risco ah... sim, risco nunca foi problema para alguém que andava se equilibrando nos beirais da ponte Loreira em seus enleios com a morte.

Eu parecia uma ninja, sempre curti a adrenalina e lances de espionagem (Avelã que o diga neh!). Vi um bom lugar perto do jardim, me sentei próximo a uma janela de onde conseguia ouvir o piano e me acomodei ali mesmo. A brisa batia leve no rosto e de lá eu podia ficar de olho na entrada da soleira aonde com certeza era mais provável surgir alguém para eu conseguir fugir se preciso fosse.

Passado algum tempo escutei alguns barulhos atrás nos fundos da casa fui averiguar e vi uns moleques babacas tacando pedra nas vidraças e pichando o muro. Eles não tinham me visto... Logo meu sorriso de retaliação se arqueou em meu semblante e eu tive uma ideia.

Tinha algumas bombas caseiras dessas de festas no fichário ( eu acho que era a única garota que carregava uns trecos desses consigo) , tinham sobrado de minhas experiências com pólvora então fui me aproximando na miúda até perto do muro, peguei uma pedra grande e a caixa de fósforos que peguei de casa...

Flashback

*casa de Kiara, dois dias antes...

-Mai cadê... Aonde Yo deixei os bendito fósforo...???KIARAAA...

Taquei a pedra para a rua e eles se distraíram com o barulho, logo em seguida acendi o pavio, cozinhei um pouco na mão e lancei a bomba bem no meio deles que quando perceberam... KABUMM tarde demais hihihahaha a bomba explodiu e fez um estrondo que o bairro todo ouviu, dois deles caíram no chão de susto e o que estava pichando caiu do muro. Um dos vizinhos da casa saiu e pensou que foram eles que a detonaram e os ameaçou com uma inchada e chamar a polícia “Arruaceiros de uma figa!!!” Eu só escutava o barulho de correria deles e ria atônita quase me mijava do outro lado do muro foi muito engraçado e logo a paz voltou ao bairro e eu voltei ao meu canto com a sensação de dever cumprido.

Mas... De repente ao voltar para a janela lá estava ela em pé bem na soleira olhando pra “eu” dentro de sua propriedade. Nossa! Sussurrei a mim mesma e a minha cor desapareceu (com coisa que eu tinha alguma guf!). Olhos tão verdes quanto às folhas daquele carvalhal me encaravam e eu fiquei sem reação.

-Eu vi tudo, alias... Eu sempre vejo! (calma tia... Essas paradas aí são maçônicas hein!)

Disse ela com uma voz aveludada e com os braços cruzados e o elegante Cardigãs vinho nos ombros apoiado pelos dedos. Deparava-me com uma senhora de uns 42 anos com um olhar profundo e fixado, pele de amarula como a do Avelã. Era ela, a dona da casa, pela primeira vez a podia ver claramente transpassando o pomposo vestido rendado azul.

-Oi... É... Ham... É... Eles estavam quebrando sua casa aí... Tive que fazer alguma coisa... Desculpe-me, por favor... Clemência! (eu merecia o Oscar de melhor drama)

Ela se achegou mais perto de mim, desceu as escadas apoiando o vestido para não tropeçar e ficou na minha frente. Eu podia sentir seu perfume suave de cidreira ou brisa marinha. Ela me encarou um pouco mais, parecia brava. Agora mais de perto eu podia fitá-la melhor. Tinha cabelos à altura dos ombros, ondulados como os meus porem castanhos escuros puxando levemente ao vermelho com alguns fios brancos bem definidos saindo da raiz, tinha uma aparência meio espanhola ou porto-riquenha , esguia, era muito bonita e usava alguns colares de pedras entrelaçadas em cordames no pescoço e um anel numa das mãos, era lindo e parecia caro, muito caro.

Dei alguns passos para traz esperando a oportunidade de sair correndo, mas de repente ela deu um sorriso largo e passou a mão na minha cuca dizendo “obrigada mocinha!”

Eu fiquei meio sem entender nada mais sorri de volta (na dúvida siga o script...)

-Érrr... Eu não estava com eles. Que isso fique claro tah! Eu não gosto que fiquem quebrando coisas bonitas assim como sua casa!

...Disse eu sem jeito

-Oh sim eu sei disso! E também sei que você não poderia estar com aqueles moleques e que também não quebraria nada por aqui, afinal você sempre vem aqui e nunca quebrou.

Respondeu ela com tamanha certeza de me conhecer tão bem... Oh não, fui descoberta!... Lá se vão meus momentinhos a sós com o jardim e as borboletas ah...

Eu já estava me despedindo e iria sair correndo mais daí senti um cheirinho tão gostoso de biscoitos de coco fresquinhos que vinham com o vento impregnar meu nariz e convidar meu estomago a rosnar. A porta dela estava aberta e o cheiro vinha de lá...

-HUMM! Mais que cheirinho bão!

Ela rapidamente me disse... ”Oh sim! São biscoitos açucarados de coco você gosta?! (pergunta pra formiga se ela gosta de açúcar...) Não se vá por agora, venha, eu os reparto com você é o mínimo que lhe posso fazer pra recompensa-la.”

Eu estava com fome e ela parecia uma pessoa gentil do tipo que deixaria eu ver a casa por dentro antes de me assassinar, tirar meus órgãos no banheiro e me enterrar naquele jardim e minha curiosidade de saber se aquela casa era tão igualmente fascinante por dentro me corroía. E eu estava com fome! Então aceitei o convite alegando que só iria experimentar um pedacinho apenas para matar as lombrigas e ela riu e logo entramos.

Lá dentro...

Uau!

Sem igual!

Sensacional!

Nunca poderia imaginar que era tão legal assim (ao menos em meu ver porque na real... era uma casa simples. Rústica até, mas...) eu adorava aquilo. As paredes eram pintadas de um azul choque chocante com rodapés prateados e com muitos quadros pendurados, existia um lustre imponente na sala com 12 candelárias divinamente esculpidas, o chão de tacos cor mogno, portas decoradas com cisnes e as portas da entrada eram duplex e possuía dois pés de pano voadores (pégasos) aonde suas asas formavam juntos um arco que servia para bater na porta (ou se pendurar ali...vai da criatividade e criancice de cada um haha).

Com moveis estilo coloniais todos detalhados, duas poltronas uma azul e outra vinho ficavam entre uma mesa de centro espelhada como um cristal preenchia a sala. Havia uma TV antiga e duas estantes recheadas de livros e entre elas perto de uma das janelas estava ele... O precioso... Era magnífico, um piano vertical negro com contornos dourados, era um Steinway Halley lindo, já havia lido algo a respeito dele numas revistas do Gary, ele era mítico e também muito caro, foi muito usado em muitos concertos e musicais de prestigio e era o principal instrumento em orquestras tops por causa de sua fabricação. Todos eram artesanais e feitos à mão na Alemanha em Hamburgo e por isso eram caros e únicos em si. Seu som era mágico, uma obra prima em mecanismos e um avanço para sua época, sec. 19. Dizem que poucos deles são fabricados por demorar cortar a madeira certa e moldá-la na mão e em um leilão um deles já foi arrematado por mais de 500 mil dólares. Era fantástico, fiquei extasiada em olhá-lo e ali perto de mim, mas mantive a compostura apesar dos dedos tinirem para dançarem sobre ele, contive a boca para não perguntar nada a dona (que provavelmente era ela e poderia nem ao menos mencioná-lo só para não ter que mostrá-lo a mim... precioso... Dela, né)

Ela chispou um gatuno persa amarronzado com zoíos azuis de uma das poltronas...

“Com sua licença Xerife, temos visitas e o Sr sabe que isso é raro...” Ela o pegou com as mãos e o colocou no chão. O gato deu de ombros e deu um miado como quem não se importasse e foi até uma tigela de leite ao lado do piano... (como um bichano desses fica perto do Halley assim?? grrr)... E ela me deu permissão pra me sentar por lá.

Tinha uns livros por cima da mesa, coisas em inglês ou francês eu não entendia muito bem e um som baixo mais audível ecoava no ambiente, algo como Billy Idow- Dancing with myself deixava o ar de paz mais dançante e rock on roll. Ela tinha ido até a cozinha e eu consegui vê-la, pois os cômodos da casa lembravam aquelas casas americanas aonde não existe uma parede dividindo a cozinha da sala. Ela tinha ido ao forno checar os biscoitos e logo voltou.

Ao abrir o forno o cheirinho perfumou a casa toda humm! e se sentou do outro lado na outra poltrona aonde eu a podia ver claramente.

Eu estava tão aconchegante naquele lugar, me sentia acolhida tanto por ela quanto por sua casa, era um conforto tão agradável que eu suspirava em baixo tom (se eu pudesse me sentir assim em casa... seria um milagre) ela colocou seu Cardigãs no braço da poltrona onde estava dobrando-o cuidadosamente e ficou olhando pra mim com olhos esbugalhados como se eu fosse alguma atração de circo ou coisa parecida (... é... E eu parecia mermo) aí eu olhava pra ela da mesma forma (qualé tia t? Também num parece nada normal rah). Então eu elogiei sua casa e começamos a conversar:

-Puxa...! Essa casa da senhora é bem manera! Chique chiqueza hein

-Oh obrigada, percebi que você gostou bastante! Estava vislumbrando tudo por aqui.

-Wou... Olha é... Só tava admirada sabe... Não vou roubar nada eu juro!

-Sei que não vai, eu só estou ressaltando.

-Faz tempo que mora aqui?

-Sim... 15 anos...

-Uau... Tempão hein!

-É... Já não sou uma garotinha como você hehe

-Oh não, não... É... Perdoe-me... Não quis dizer que a senhora é velha não... A senhora é até que jovem heh

-Não dizendo que sou velha, mas me chamando de senhora... ok

-Agrf... É éééé... Respeito! Só isso – acresci rapidamente envergonhada.

-Não se preocupe, eu bem sei que sigo para isso não fique constrangida!

-Mas, é vero que senhô... rita não parece velha, tem uma fisionomia de uma pessoa de uns... 34 anos.

-Oh! Conseguiu me tirar um sorriso mocinha, obrigada por isso, mas tenho 54 anos.

-Wou... Seria super manero ter 54 assim como senhorita hihihi!

-Você terá, pois também és mui bonita!

-Quem, eu?! Comparada a quem? Aquela mina do exorcista?

-Não! Não! Cruzes, ela não. Vejamos... Ham... A uma miss SUNSHINE!

-Miss o que???

-Miss SunShine. Todos os anos nos EUA é eleita no estado do Texas uma miss Sunshine ou rainha da colheita.

-Como Sta. sabe disso? E rainha da colheita?! Isso soa muito campo, caipira. Sta. tá me chamando de caipira é??!

-De certo modo sim. Você, seu jeito me lembra uma miss Sunshine e ainda mais com esses cabelos negros avoados hehe! Eu sei por que já viajei por lá.

- É porque eu vivo correndo sabe pra cá e pra lá hahaha... Uau que maneiríssimo que Sta. já foi pra aquelas redondezas.

-Sim... Muitas vezes inclusive. Voltando as misses Sunshine...

-Elas são garotas de carisma vívido, e tão belas como os campos floridos que resistem tempestades e chuvas fortes, mas não deixam de mostrar suas admiráveis flores em toda primavera. As tempestades só servem para alimentá-las para que a cada estação suas flores venham mais e mais formosas como os lírios ou as violetas.

-Puxa... São poucas as pessoas que me dizem coisas legais assim, obrigada! É... Eu amo Violetas! (até to montando minha própria coroa de flores para meu tumulo com as que ando roubando do Ipiranga)

-Por nada! Um elogio sincero não engana ninguém, só ajuda! Ahh que maravilhoso que goste de violetas. Eu tenho uma parte do jardim reservada só para elas, tem de várias espécies, depois posso te mostrá-las se quiser acrescer algumas a sua coroa de cabeça. Aposto que irá gostar

-Adoraria... Bom... É claro se não for atrapalhar a senhorita...

-Será um enorme prazer! Os biscoitos vão demorar um pouquinho.

De repente o gato perdigueiro veio e se lançou no colo da dona querendo tomar a atenção (gostaria de poder fazer o mesmo com mama, só as vezes)

-Xerife já tomou seu leite? Veja, conheça nossa ilustre visitante!

“Miau”

-Ha. Ha. Ha. Oi gatinho. (perdigueiro comedor de pianos grrr)

Eu podia reparar que o gato só abria um olho e aquilo me incomodava. Então perguntei de pronto:

-Por que ele só abre um olho? Tá economizando as piscadas??

-Ele é cego de um dos olhos. Um pitbull o arrancou fora.

-Puxa... Que trágico!(é eu passei a respeitar o bichano depois de saber melhor sua história de que perdera seu olho defendendo sua dona de um Pitbull anos atrás e ele passou a gostar de mim e ficava passeando por entre minhas pernas e brincando com minha meia por causa dos chamegos que lhe fazia com os pés... mas ainda era um perdigueiro comedor de pianos)

-A propósito... Qual o seu nome mocinha? Tenho que saber.

-Me chamo sinônimo de luz em italiano... E...

- Hum... Kiara certo?!

-... É isso aí! Kiara Constância... Puxa... Tão rápido... Nossa... Isso mermo, como soube??

- Eu leio. Livros nos ajudam muito a conhecer novas línguas e conhecer pessoas também, aliás você disse “vero” em algum momento de forma bem natural. Logo imaginei que tivesse alguma ligação bem direta com italianos. É um nome muito lindo... Clara Constância... Como a alvorada da manhã!

-Err... (Clara Constância é nome de vovó! A única coisa elegante que eu tenho é o primeiro nome e essa tia me estraga ele dizendo no português)

E o da Sta.?

-Este é Xerife... Ele é meio relaxado, mas um bom gato! Eu me chamo Elvira Ramirez ao seu dispor...

-Puxa seu nome também é bonito demais!

-Oh, grata por seu entusiasmo.

-Elvira... Lembra-me... Ervilha (você quem começou)

-Com certeza lembra deve lembrar

-Dizia que viajou lá pro lado dos Yankes. Me conta sua história – disse eu me acomodando mais na poltrona

-Sim, na verdade até cheguei a morar. Fui quando menina com meu pai e mãe e lá estudei e cresci. Formei-me em música no conservatório Eastman da universidade de Rochester que fica em Nova Iorque.

-Puxa! Não acredito! Música, mais que extraordinário!!!

-Sim de fato incrível e na verdade eu comecei a trabalhar com música. No começo participei da filarmônica de Nova Ioque e Memphys como lirista e violinista, mas então fui para Broadway e lá trabalhei como pianista e instrumentista chefe de diversos concertos num teatro chamado Gran Palace e comecei a viajar o mundo. Europa. Ásia. África. Eu vou pegar as fotos...

E de uma das estantes ela retirou um álbum um pouco empoeirado, mas em perfeito estado e me mostrava às fascinantes fotos de suas viagens com a orquestra. Eu estava paralisada ante a tudo aquilo. Mal podia crer que estava conversando com uma musicista de verdade. Ela falava com tanta paixão e carinho de sua carreira. Por um momento sonhei um pouco, me imaginando assim como ela levando a magia da música ao redor do planeta como uma Maestra Mor da Melodies... Isso era utópico demais para uma garota do país e da família a qual pertencia. Conseguir ter materiais para estudar no fundamental já era um sufoco só, mas eu não deixava de acreditar (se existia algo que eu pudesse desejar era fazer o que eu tanto gostava e amava, não somente eu, mas meu transtorno também... só assim ele sossegava) e falando nele logo dona Border revirou-se em sua caminha dentro de mim e dona Ervilha fitava minhas mãos e dedos saltitando volta e meia tentando segurar o álbum ou quando eu me revirava na poltrona abruptamente como um peixe fora da água.

Eu tentei explicar meu caso a ela que passou, em certo tempo, a compreender nas vezes subsequentes em eu que a visitara, mas ainda tomava alguns pequenos sustos com os espasmos dos meus nervos. Ela gentilmente me deu uma bolinha de massagear as mãos e isso me distraía um pouco (mas ainda sentia a dor do gato caolho)

Dona Ervilha me contou muitas coisas a seu respeito e eu a admirava cada vez mais. Ela estava feliz e isso era notável porque eu estava ali lhe ouvindo e me interessando por sua vida.

Sempre gostei de ouvir já que falava pouco com outras pessoas. Eu aprendia muito ouvindo e vivia numa sintonia dessintonizada do mundo (tipo outra dimensão na qual só eu pudesse estar lá. E era tudo cinzento) eu viajava nas aventuras dela e ambas curtíamos a companhia uma da outra. Foram bons tempos.

Os biscoitos ficaram prontos e ela os trouxe para a mesa. Eles tinham carinhas deformadas e engraçadas às quais sempre nos divertíamos imaginando o que cada expressão significava. Nos deliciamos com eles, estavam ótimos, mui bono e aquilo eu sei que seria meu almoço, pois ao chegar em casa já sabia que não encontraria tais comidas, se muito, a marmita que minha mama sempre deixava dela para mim, e dentro da geladeira... Gelo e água (pelo menos não passávamos sede veja só).

Eu comi... Comi e comi mesmo os biscoitos, já que ela me convidou para tal eu chutei a barraca com pau e tudo e estavam deliciosos. Depois ela me levou ao jardim para me mostrar suas dezenas de flores e as fantabulosas Violetas, Orientais, Ocidentais, do Líbano, da Mongólia, de Marte e da Lua nunca tinha visto tantos tipos de violetas reunidas num mesmo lugar (fome zero... deve ter saqueado todos os campos que pôde e os cemitérios também, inclusive tinha umas que nasciam no cemitério Cerrado. Eu pulava lá também pra vê-las e escolher o lote de minha próxima morada logo mais) eram belíssimas.

Dona Ervilha disse que eu poderia ter uns vasos de lá para poder cuidar e é claro que eu de pronto aceitei. A cerca que as mantinham protegidas de animais estava quebrada por causa dos vândalos e havia manchas de piche nas paredes do muro, rapidamente me ofereci para arrumar tudo. Dona Ervilha não queria permitir que eu fizesse tudo sozinha e disse que eu poderia ajudá-la. Então começamos a arrumar o cercadinho (Kiara’s Empreiteiras... consertamos muros, cercadinhos, vidraças em geral contatos imediatos a pronta entrega).

O dia foi passando e tínhamos terminado um pedaço do cercado (pra uma mulher chique dona Ervilha manjava bem das obras) E ela me convidou para almoçar.

“Uau! Afinal biscoitinho é bam mai não da sustância né”.

Eu fiquei meio sem jeito, mas ela insistiu e disse que iria me bater ai não pude negar. Humm um arroz a grega saboroso com um feijãozinho pronto na hora e um bife a role com salada de alface e tomate, couve e farofa tudo com um molho especial “Chiu Pode” (*Cipotle) e um suco de goiaba fresquinho com sobremesa de mousse de maracujá. Eu não podia merecer tanto, nunca tinha visto tanta comida boa reunida há tempos, só encarava o zoião com arroz em casa (sem desmerecê-lo), mas comi a vontade que minha barriguinha até ficou estufada. Lembrava um melão branco, se é que ele exista. E depois do almoço, do qual eu pensei que já tinha sido o melhor. Dona Ervilha me indagou:

-Eu bem sei que você dia a dia vem até aqui e pula o meu muro ficando debaixo da janela norte perto do carvalhal ouvindo o som e timbre do piano certo?!

-S-sim certo, me desculpe eu sabia que era errado, mas... É que o som era muito agradável e eu... Gosto bastante de ouvi-lo!

(sempre me surpreendia com sua perspicácia tão afiada sobre seu ambiente e o que nele ocorria ao mesmo tempo em que sua expressão era sempre tão... serena e amigável. Típico de uma sociopata, pois eu era assim de certa forma)

-Quer conhecê-lo?

-O-o que? Sta. Tá fa falando...(momento Lili)

“- Si - sinto um distúrbio no – no universo da ga-gagueira. Alguém fala de mim...”

-Sim... Do Halley! Quer tocá-lo? Venha vamos lá.

O que para muitos podia soar como um mero capricho ou sonho desnecessário, para mim era a realização de uma vida. Tocar um Halley era algo único e eu nem sabia tocar, mas só de apertar as teclas dele eu já me sentia a mais habilidosa pianista...

*Tais palavras saíram dos lábios de uma gênio musical já avançada em sua pouca idade que desbancava músicos profissionais frequentadores da badalada loja do Gary e tinha o poder de mover a realidade com sua criatividade esplendida e excepcional e encantar pessoas com sua simplicidade, intensidade e humildade, dons que lhe renderiam honra entre os Guardiões, e, com sua música levava a ruina até as mais altas patentes demoníacas nos campos de batalha. Isso tudo orquestrado por uma mortal. A sábia Elvira já havia notado isso a partir do momento em que observava e via a garota cantarolando todas as notas até as mais sutis variações das músicas que tocava na casa mesmo num tom baixo e pela forma como massageava as mãos com extrema habilidade brincando com a bola como um habilidoso ilusionista ludibria sua plateia.

Logo dona Ervilha me acomodou na banqueta e abriu o piano que era ainda mais incrível.

Suas teclas eram brancas polidas como perolas e em suas oitavas havia escrito algo dourado em latim. Perguntei a Ervilha do que se tratava e me respondeu que estava escrito “Sem Amor Eu Nada Seria”. E isso me lembrava de um dos versos que eu lia em meu livrinho “Ainda que eu falasse a língua dos homens ou dos anjos. Se eu não tiver amor de nada valerá tudo isso. Três coisas existem, o Amor, a Fé e a Esperança. Das três só uma restaria, o Amor.”

Então ela disse que eu podia tocar o que quisesse desde que tocasse com alma e amor. Eu não fazia ideia de por onde começar então ela se sentou ao meu lado e deu algumas notas no instrumento e começou a dizer quais estilos de músicas ela gostava. Dizia que variava de acordo como ela se sentia.

Explicou que ao tocar qualquer instrumento que seja colocando emoção e sentimento o som se tornaria uma melodia única e especial para cada momento e para cada situação.

Então começou a tocar um blues bem animado. Impossível ficar parada, o ritmo era dançante e alegre, lembrava Rey Charles e dona Ervilha era fantástica! Suas mãos simplesmente bailavam junto com o compasso e sua agilidade era tremenda. Ali ao seu lado, eu estava espantada e observava atentamente cada tecla que sua música tocava.

Funcionavam como um vento soprando folhas secas aleatoriamente pelo chão, mas todas seguiam um único rumo, o rumo para aonde o vento soprava, todas em contrastes umas das outras, mas seguiam o conduzir do vento. Ervilha sorria e olhava para mim como quem me convidava a acompanhá-la e logo eu aceitei e entendi a lógica das sequências e comecei a tocar o refrão da canção.

Sol Ré Mi LA SOL Ré MI SOL Do e assim se seguia o refrão, mas eu estava concentrada demais para não errar e acabar com tudo e logo Ervilha gritou...

” Ouça a música e curta o momento Miss Sunshine!”

Então pude perceber o que ela queria dizer com aquilo e me deixei levar, libertei-me de minha prisão e receio dando espaço para a real melodia que estava engalfinhada em meu cerne. E quando menos pude perceber eu já estava tocando tudo sozinha e dona Ervilha só observava estupefata.

Encabulada eu parei e disse para ela continuar e rindo para mim ela se virou e me elogiou...” Você toca muito bem miss Sunshine! Isso porque acabou de ver só um pedaço da música, fantástico! Nunca tinha visto nada parecido e olha que eu convivia em classes de grandes prodígios notáveis. Mas, isso é inédito para mim” (isso porque ela ainda não tinha me visto tocar Mozart com alguns elásticos em um copo. Outro dia eu toquei Senbonzakura usando as teclas de um telefone).

Agradeci o elogio e o retribui dizendo que ela era incrivelmente talentosa e também muito gentil em ter escolhido dividir o dia com alguém como eu e além de ter me deixado tocar o Haley:

-Eu que lhe agradeço por ter aceitado tal convite mocinha! Com certeza eu e Alfonso ficaríamos vislumbrados em ter conhecido uma menina tão encantadora quanto você!

-Err... Obrigada... Mas... Quem é Alfonso? Outro perdiguei... digo, gato?

-Não – respondeu a mulher com um olhar distante como se algo buscasse - Alfonso era meu amado esposo. Foi ele quem me deu o Haley, e pensar que gastou tanto naquele leilão só para me ouvir tocá-lo nas tardes de segunda. Ele também amava crianças.

-Pera... Sta. disse leilão...q-quer dizer que esse é... aquele...Nããão?!

-Sim esse é o que foi arrematado por 500 mil dólares. Foi ele quem o comprou na época. Nos conhecemos numa livraria e nos tornarmos muito bons amigos então depois de formados nos casamos. Alfo era arquiteto e chegou a projetar muitos edifícios famosos, ele era um brilhante artista e criava cada prédio ou casa um mais sinuoso que o outro. Ele também gostava de ajudar as pessoas com problemas de moradia, reformava as casas em estado de risco. Ele tinha um coração nobre. Me via lendo as revistas de instrumentos e percebia que eu sempre me demorava mais na página dos pianos principalmente quando surgia um Steinway Haley, mas como você bem o sabe são muito caros por serem feitos artesanalmente e eu até ganhava bem nos meus trabalhos, mas não era viável comprar algo tão caro que só eu pudesse usufruir, afinal éramos um casal e eu também sempre ajudei minha família. Um sonho bobo de consumo, mas eu nunca disse nada a ele. Até que numa certa quarta feira um caminhão parou na nossa casa nos EUA e era a entrega dele e Alfo não pode estar no momento devido seu trabalho, mas tinha me escrito uma carta dizendo que Não existiam sonhos grandes ou pequenos ou de valores diferentes porque cada sonho era importante independente das coisas mais simples que fossem. E que me amava também. Eu fiquei muito emocionada e tenho a carta até hoje. (pegando uma carta enquadrada na parede)

-Nossa mais que manero hein dona Ervilha! Esse tal de Alfonso parecia ser um cara diferente... Legal pra variar... Conte-me mais.

-Alfonso gostava de me ouvir tocar, dizia que quando eu fazia isso, cinco minutos ou dez, era quando tudo virava o paraíso por um momento. E sempre admirava meus trabalhos e composições e até me ajudava com ideias. Sempre me ensinou a admirar e acreditar nos sonhos das pessoas, pois eles eram uma das coisas que ainda davam um colorido a este mundo tão sombrio.

-Isso é de fato algo bonito no que se pensar... Gostaria de conhecer esse tal de Alfonso, ele está trabalhando?

Com os olhos marejados ela respondeu de pronto - Sim! Ele agora está fazendo casas para todos nós no paraíso.

-Ah... Oh... Sim ele ta lá dando umas ideias pra Deus de como fazer nosso cafofo no céu né hehe. Inclusive eu até tenho um livreto que fala de como será lá e as construções dentro da gente.

*Kiara havia entendido que não o poderia vê-lo, pois o mesmo já havia morrido e foi compreensiva e sensível com o sentimento de dona Elvira que logo depois disse sem problemas que viveram 21 anos felizes casada com Alfonso que morrera vítima de um acidente de carro onde o motorista estava bêbado e não parou para prestar-lhe o socorro. Mas, simples atitudes de Kiara contribuiriam para tornar seu coração mais apegado com as pessoas mais à frente. Ela entendia muito sobre a morte e seu sentimento embora também a temesse de certa forma. E o fato de dividir o que ela julgava bom como sua bíblia sagrada provava que o caráter da menina era atencioso e rico em sensibilidade ante as dores de outrem, menos as suas próprias.

A tarde estava se esvaindo e ficamos por um bom tempo só ali, tocando, curtindo a companhia uma da outra. Eu não queria ter que ir, mas era preciso voltar à realidade e logo já nos encontrávamos na soleira das escadas nos despedindo.

Tínhamos nos conhecido naquele dia, mas parecia que já éramos amigas há tempos e com o mesmo sorriso gentil com que fui acolhida por dona Ervilha ela se despedia de mim me convidando para passar mais tempos assim outros dias e que faria questão de deixar a tranca do portão de fora aberta para mim e biscoitos de coco no forno e até me mostrou o esconderijo da chave. Ela via em mim confiança para tal.

Montou uma marmita cheia de biscoitos e outras guloseimas envoltas em um paninho de renda quadriculado azul claro e escuro e assim me despedia também com um sorriso no rosto porque estava feliz (caramba... isso era raro) em ter achado mais uma das pouquíssimas pessoas que me faziam se sentir feliz com seus jeitos simples e sem preconceitos para comigo e minhas esquisitices. Ainda que ela fosse uma senhorita de meia idade e eu só uma moleca do colegial, nós duas nos dávamos muito bem (seria legal termos estudado juntas ou no Corina ou em Eastman) e ao ir virando a esquina eu tinha a plena certeza de que se me virasse ainda me depararia com a mulher de corpo esguio e olhos marcantes me fitando como um Anjo de Cardigãs Vinho que zelava por meus caminhos tão titubeantes... e a sensação disso... era ótima.

Ter a certeza de que existem pessoas que olham para te zelar e te ajudar me ajudava a superar muitas dificuldades e dias difíceis com coragem e chegavam a apresentar algum risco em meu plano magistral de dar cabo de meu próprio sofrimento a meu modo. Mas, parecia que Deus sempre buscava fazer com que pessoas raras assim cruzassem meu caminho me fazendo balbuciar em minhas convicções... É... pedrinhas em meus tênis surrados.

A tarde estava chegando ao fim, era já em torno de umas 18h de um horário de verão e o céu estava ficando enegrecido por nuvem densa que derramaria a maior torrente de água. Eu ainda estava com vontade de ir ao parque para dar uma andada por ele antes de seguir rumo a casa. (não gostava muito de ficar em casa. Qualquer canto costumava ser melhor que lá).

Mas, como parece que o inusitado me ama algo ainda mais doido e incrível aguardava para me golpear naquele dia, se já não bastasse tudo o que tinha vivido. Um pedido de socorro em plena tarde de sexta, poxa eu já tava pronta pra ver meus desenhos de tarde... Grrf

Chuva de Espinhos

Como de rotina minha eu fui até as regiões mais remotas do parque adentrando o mesmo. Ainda havia maquinários de construção devido à obra que estava sendo feita nele, fui até uma trilha que existia no meio do parque. O céu negro já estava ganhando espaço entre as nuvenzinhas brancas resolutas (a escuridão era demasiada muahahaha ambientado em favor das criaturas obscuras como eu) e alguns pingos isolados se antecipavam em cair, mas segui em frente tão determinada quanto aquela chuva até que de repente eu vi algo no chão.

” Hey, esse é um dos lenços que a gaga usa!”

Disse a mim mesma achando aquilo estranho e segui em frente. Existia um buraco grande no caminho que se estendia em cerca de 1 metro e meio à frente em sua largura, logo comecei a contorná-lo.

Aquele buraco era menor, mas devido às obras e as chuvas fortes dos finais de tarde ele tinha se alargado e se tornado profundo e de difícil acesso até seu fundo. Também existia em volta dele ervas daninhas espinhosas que cresciam na região oriundas de uma arvore com raízes extensas próxima dali.

De repente comecei a ouvir certos sussurros ou lamurio de alguém que estava perto de lá, parecia à voz de uma criança. Então me aproximei mais perto da borda do buraco e pude ver lá embaixo num canto estreito do mesmo uma menina caída nele e me surpreendi! - Lilian?! Como você foi parar aí?? – exclamei. Era a loirinha gaga que estava no buraco!

Rapidamente lancei meu fichário num canto e me debrucei na borda pra tentar agarrá-la com a mão, mas era muito fundo:

-Kiara é vo... Vo... Você?! Por fa... Fa favor me ajude. To caída a-aqui a um tempo. Vim ver s-se você estava aqui antes d-da aula, mas alguém m-me empurrou aqui e não consegui sair nem m-m-me mexer, acho que torci o pé pois ele dói muito. Ahhh...To com medo me aju ju da!

-Puxa vida! Que dureza. Não esquenta, eu te tiro daí rapidin!

Comecei a caçar algo que pudesse servir de corda, mas as únicas coisas parecidas eram as raízes espinhosas daquela arvore, eu iria demorar muito até tirar todos os espinhos e usá-la para resgatar Lili que estava chorosa e apavorada lá embaixo. Eu poderia sair correndo e pedir ajuda, mas de repente para ajudar ainda mais a chuva resolveu precipitar. Um ou dois trovões e ela começou a cair carregada de granizo. E o que era só um problema simples se tornou um problemão, pois o buraco começou a se encher de água e Lili se apavorava mais. Lama e lodo desciam ribanceira abaixo e começavam a soterrá-la, definitivamente eu não poderia sair dali e tinha que pensar rápido para livrá-la o mais célere possível porque o pior poderia ocorrer e ela acabar soterrada lá embaixo. Lá vai Kiara ao resgate (eu mal cuido de mim direito o que dirá de outra pessoa. Mas, eu tinha que tentar algo. Era a Lili)

Tive a genial ideia de usar algumas lascas de arvores que existia por lá e comecei a descer o buraco criando com as lascas buracos para serem usados como escadas, um plano meio tolo, pois eu mesma poderia escorregar e cair aí seriam duas a serem soterradas, mas eu arrisquei, era habilidosa e ágil (lembre-se, eu sou uma ninja) e metro a metro eu ia descendo e acalmando Lili ao mesmo tempo.

Era um buraco fundo de uns 5 metros pra baixo e ia se afunilando. A chuva não perdoava e castigava nossos rostos com rajadas de água e gelo, mas eu permanecia firme e finalmente cheguei perto dela que começou a chorar:

-Pronto to aqui agora agarra minha mão e vem me seguindo, é fácil!

Mas, ela não conseguia sair do lugar, pois seu pé havia torcido na queda e ela não conseguia subir. Então desci mais um pouco e a agarrei, disse para ela segurar em mim que eu nos levaria para cima e tudo estaria resolvido e assim o fizemos. Ela se prendia em meu pescoço e eu a levaria apoiada em minhas costas subindo devagar. O vão em que estávamos só cabia uma pessoa então eu a arrastei um pouco para fora para acomoda - lá melhor a fim de usar seu pé bom. Ela gemia de dor e não conseguia falar muito devido à lama estar caindo em nós (e por ser gaga... Ah, eu não presto..., mas de volta ao drama comandante Hamilton), mas eu procurava tranquilizá-la de toda a forma que podia imaginar:

-Poxa Lili... Que dia você foi escolher pra tomar banho de lama haha! E isso porque tem gente que paga fortunas pra fazer isso. Por que algum degenerado lhe empurraria aqui?

- Eu... n-não sei...

-Hey hoje aprendi uma música nova e toquei um Steinway Halley de verdade olha só! E não era os que eu toco nas revistas parecendo uma retardada. Ah... Encontrei um de seus lencinhos daqueles que você usa quando resfriada, depois dessa você terá que fazer um conveniado com o fornecedor deles porque olha... Vai se resfriar!

E assim fomos indo, metro a metro, na moral, mas meus braços já estavam cansando e a chuva estava tornando os buracos que fiz em maçarocas. Eu já não estava mais tendo aonde segurar e o peso extra de Lili me obrigava a compensar em força (era só a capa da gaita, mas pesava). Ela estava se acalmando quando de repente Schsss! Começamos a escorregar rapidamente para o fundo novamente e na velocidade em que estávamos eu iria machucá-la, pois cairia em cima dela.

-Droga! Mais o que é isso? Haaagf

-AHHHHH!!!

Eu me agarrava com tanta força nos barrancos em volta até conseguir frear, mas paramos no meio do percurso. Existia do meu lado uma daquelas raízes espinhosas... Era a única coisa firme que nos ligava até lá em cima... Eu não podia mais voltar a subir, pois os buracos que fiz se desmancharam e eu estava cansada e o buraco profundo já estava cheio da água, não podíamos voltar para o fundo novamente. Ninguém iria nos ouvir se gritássemos naquela chuva e naquele lugar.

Não podia deixar minha amiga naquele lugar, não me perdoaria em falhar agora, Lili sempre me ajudou quando eu nem merecia. Logo, relutante do que me aguardava, mas igualmente determinada, não pensei duas vezes e antes de deslizarmos mais fundo nas águas eu agarrei com toda firmeza aquela raiz com as duas mãos e podia sentir os afiados espinhos transpassarem a carne das minhas mãos. A dor era excruciante e me segurei para não gritar.(por que dona Border nunca ativa quando eu mais preciso dela cortando a serotonina hein...?).

As minhas lagrimas eram mascaradas pela chuva (como sempre o foi) e eu sorria de dor dizendo a Lili que tinha encontrado um ponto bem firme, ela não sabia do que estava ocorrendo, pois não conseguia enxergar direito e também porque já tinha as suas próprias dores para se preocupar e ali de novo tornamos a subir, mas a cada vez que eu retirava as mãos para agarrar os espinhos meu corpo renegava submeter-se a tal dor e da ideia de agarrá-los mais uma vez, mas minha preocupação com Lili me dava coragem e força para mais um pouco... E mais... E mais... O sangue começava a descer pelos braços, mas eu os limpava com o rosto para Lili não ter que ver aquilo e se assustar. Ainda mais por mim, não queria preocupá-la mais. Então sofria calada a minha sina (eu era boa nisso, em sofrer calada e por fim tinha encontrado utilidade para isso. Tudo nos é útil de algum modo).

Eu nunca tinha rezado ou orado na vida, eu pensava que nada disso ajudaria a te livrar de seus problemas. Existiam algumas amigas de minha mãe que faziam coisas assim em casa, mas pra ser sincera nada acontecia.

Já tinha lido bastante o livro que eu tinha encontrado no banheiro desativado da escola e nunca entendia muito bem as coisas que ele dizia, mas as que eu entendia eu guardava em minha memória como algo precioso com a esperança de que em algum dia me seria útil e um dos versos que eu entendia era esse “Pede e receberá. Buscai e achareis. Batei na porta e ela se abrirá. Pois todo o que pede recebe, e o que busca encontrará e para o que bate a porta se abrirá. Pedi tudo em Meu nome e eu rogarei ao Pai que vos conceda” E assim eu o fiz pela primeira vez, pedi a Cristo que só me desse forças para chegar até lá em cima, pois eu não estava aguentando mais quando de repente por entre as nuvens negras do céu o sol resolveu surgir e combater a chuva.

Ele brilhava intensamente... Eu comecei a observar o tal embate feroz entre as gotas pesadas da chuva contra os feixes de raios solares ambos se engalfinhando criando prismas cintilantes e confundindo meus sentidos. Eu não sabia se sentia calor ou frio ou os dois ou nenhum dos dois, estava perdida com tudo aquilo, mas aproveitei a distração das forças e continuei subindo.

A dor ainda doía, mas eu me sentia tão leve, nem parecia que eu estava carregando Lili (embora isso seja a coisa mais normal do mundo não sentir o peso de Lili) e os espinhos? Em um dado momento eu havia me acostumado em senti-los e quando menos esperava... Nós saímos fora daquela vala. Viva!

Lilien tombou para um lado e eu do outro. Ambas estávamos cansadas e a chuva... Rham... Ela tinha perdido força e agora só estava acompanhando o sol como uma má perdedora que fazia birra.

Lili ainda gemia de dores e incômodos no pé mas, tinha forças pra me agradecer ou tentar se sua gagueira lhe permitisse e eu... Sentia-me estranha, meio anestesiada e um gélido frio por todo o corpo (aquilo era familiar para mim) e olhava minhas mãos ou o que sobrou delas e no redor o barro se misturava com meu sangue, mas logo era lavado pelas águas e as mãos tremulas repletas de espinhos e carne carcomida.

Levantando-me com dificuldade cumprimentei Lili (até porque era falta de educação não cumprimentar uma amiga oras) Ela chorava e me agradecia incessantemente, eu disse que não tinha necessidade daquilo porque ela faria o mesmo por mim, mas de uma forma mais inteligente que a orelhuda que vós fala, então lhe perguntei se ela conseguia ficar ao menos sobre um dos pés, e tentando até conseguia.

Contudo ela não podia andar plenamente, pois seu pé esquerdo estava inchadíssimo. Então eu logo me recompus peguei o que restava de meu fichário ensopado e lhe dei para que segurasse, peguei sua outra mão e a lancei atrás de meu pescoço, afirmei para ela ficar calma e curtir a viajem. Iriamos sair dali e encontrar ajuda.

Lili tinha parado de chorar, suas lagrimas deviam estar em greve, e logo relaxou e se concentrava em segurar meu fichário todo molhado. Eu estava começando a sentir o peso dela devido meu cansaço e dor e sua casa era longe dali então resolvi ir até a escola, pois sabia que haveria pessoas lá que poderiam socorrê-la devidamente.

Senti por minha amiga ter se machucado e pensava que eu tinha certa parcela de culpa por sempre falar daquele parque pra ela atiçando sua curiosidade. Não tinha entendido bem como ela conseguiu cair naquele buraco ou o que foi fazer atrás de mim, mas ela dizia que algo a tinha empurrado ou movido ela com força quando passava até razoavelmente perto dali. Estranhei tal ocorrido já que se tratava de uma área isolada, mas mantive tal pensamento comigo.

O céu estava lindo e um arco-íris transparecia mais claramente, a chuva não passava de meras gotículas isoladas e solitárias no asfalto e vidro dos carros e tudo estava com um cheirinho de molhado.

A caminhada foi boa e finalmente chegamos em segurança na escola lá eu deixei Lili sentada no portão da entrada, corri até a diretoria e falei o que havia acontecido, e rapidamente umas tias e a diretora foram acudir-la.

Elas estavam tão preocupadas com Lilien que nem haviam notado meus ferimentos e sangue.

Saí rápido de cena (eu cuidava de minhas próprias dores) e fiquei perto da entrada e via de longe ela sendo socorrida com todos os cuidados necessários. Fiquei muito feliz em ter encontrado ela porque se eu não passasse no parque e tivesse ido embora direto ela estaria por lá até que sua família desse por falta dela. E as coisas seriam realmente piores se ela ficasse naquele buraco com a chuva que deu. Poderia ser trágico...

Um certo alívio se apoderou de mim que me forçou um suspiro profundo (também quero, adoro doces). E ali dei um sorriso no vazio e disse “Estas segura agora minha amiga!” e me fui dali tão rápida e sorrateira que não me notaram.(exceto a guia da calçada que ainda me deu um baita capote...e eu apanhando pro anonimato mais uma vez...tic tic)

“Existia gotas de sangue na entrada da escola. Uma das tias havia percebido que Kiara estava ferida nas mãos, mas desdenhou da garota, pois sabia que ela sempre foi à escola andando. E uma vez que Lilien chegava sempre acompanhada de sua mãe em um carro importado logo foi mais atraente correr ao socorro de uma aluna com família de poder aquisitivo maior. Afinal, quando sua mãe chegasse iria prestigiar aqueles que salvaram sua filha e quiçá presentear suas socorristas o que de fato ocorreu uma semana depois.

Todos buscam o prestígio de herói e serem ovacionados, todos querem receber elogios mesmo que isso signifique roubar a glória e o esforço de uma aluna de 13 anos que deu o sangue só para ver a amiga sã. Kiara podia esperar, ela sempre esperou. A família dela se encarregaria daquilo. O porquê se preocupar tanto com uma garota tão... comum.”

Chegando em casa ensopada e com frio, certifiquei-me que minha nave mãe não estivesse em orbita ou qualquer outro, por que eu iria ter que ouvir outro sermão por ter me machucado de novo e eu iria fazê-la gastar o dinheiro que não tínhamos com remédios para mim e também porque ela chegava tarde do trabalho, corri para o banheiro e me tranquei por lá.

Peguei um alicate de unha, abri a água do chuveiro e me sentei no chão criando coragem para tirar os tais espinhos de 3 cm.

Um à um eu respirava fundo para retira-los, mas a dor era escruciante e eu comecei a chorar involuntariamente. O Box do banheiro ficava respingado de sangue junto do azulejo. Voou teco de Constância pra tudo que é lado e eu me segurava para não gritar mais alto.

E assim foram as longas duas horas e meia para arrancar todos, no total 37 espinhos infelizes (uma transfusão de sangue, por favor!) e pegando alguns curativos de meu kit de socorro (para alguém que bateria as botas logo, isso... não parecia muito útil mais enfim...) eu me consertei e fiquei ali sentada chorando e rindo, tudo junto e misturado

“Então por fim a Sta acordou dona Border... tu queres um chá??”

“O mundo não é um mar de rosas. Mas, também não quer dizer que seja um oceano de espinhos."

Ah que ótima hora pra filosofar algo que você nem acredita Kiara, sua idiota...

*No centro médico...

-Senhora Ivinova, sua filha teve luxação no pé direito e algumas escoriações nas laterais dos braços. É jovem! Vai se recuperar em breve, mas terá que permanecer em observação nessa noite devido um agravo na rinite. Não se preocupe, ela receberá um bom tratamento e depois seguirá com as fisioterapias. A menina já está alimentada e está repousando.

-Obrigada doutor. Eu posso vê-la?

-Sim, fique à vontade.

*No quarto

-Minha querida. Está melhor?!

-Sim mamãe! Estou...

-Aquele parque é perigo minha filha já disse que você só pode ir até lá se for acompanhada Lilien... A diretora da escola disse que elas souberam que havia se machucado naquele parque e estava sozinha e foram até você. Sabe Deus o que teria ocorrido se elas não fossem... Nunca mais faça isso!

-Sim mamãe, ma-mas eu fui socorrida pela Ki-Kiara! Foi ela que me salvou do buraco...

-De novo essa tal de Kiara. Você só fala nessa menina, se ela realmente estivesse com você não te deixaria cair num buraco ou ao menos pediria ajuda para alguém. Aposto que a essa altura essa deva estar no conforto de sua casa agora.

-Mas foi ela quem me ajudou e na- não as tias mamãe!

-Tá bom... Vamos deixar isso pra lá, ok. O que importa é que você está bem. Eu falei com seu pai e hoje mesmo te transferimos para o hospital de nosso convênio. Lá as acomodações são melhores e tem mais recursos para sua fisioterapia, minha filha.