Nautilus
Verônica estava dormindo um pouco antes do jantar, descansando as pernas de ficar o dia inteiro de salto. Mas precisava se levantar para terminar de assar o pato, ela sabia. Fez muito esforço para acordar: os olhos pesavam e se fechavam novamente a cada vez que ela tentava. Por fim fez um esforço de se pôr sentada e se levantou. Olhou o par de saltos ao pé da cama e suspirou ao se lembrar que teria que calçá-los novamente até o fim do dia. Então resolveu pegar a caixa embaixo da cama e olhar o belo par de tênis de corrida lá dentro e imaginar quando iria estreá-los finalmente. Guardou os tênis, calçou os saltos, foi para a sala.
E lá estava Marcos, pintando seu auto-retrato.
- Podemos sair um pouco? – ela perguntou
- Ora, você sabe que não podemos sair. A maré está enchendo.
Ela olhou pela grande janela de vidro da casa, a água estava quase alcançando o parapeito.
- É verdade, está. Você sabe quando ela desce?
- Você sabe que essas coisas são imprevisíveis. A qualquer momento pode vir a segunda onda.
- É verdade, pode vir. – concordou novamente.
Foi até a cozinha, pegou o pato que estivera marinando, colocou no forno. Descascou batatas e reservou. Olhou para a cozinha, tudo estava limpo. Talvez ela pudesse limpar de novo, só para passar o tempo, mas os pés dentro do sapato doíam. Era um sapato trinta e oito para um pé trinta e nove. Os tênis de corrida eram trinta e nove, perfeitos. Mas ela resolveu não pensar mais em bobagens e foi tirar o pó dos móveis da sala. Cansou, se sentou um pouco, contemplando o fazer do marido.
- Por que não pinta um pouco, querida?
- Não sei pintar.
- Deveria tentar. Tenho aqui em casa um estoque enorme de tinta e telas, não precisaríamos sair pra nada.
- Mas eu queria sair um pouco...
- Mas que bobagem, não temos aqui dentro tudo que precisamos?
- É sim, nós temos...
E naquele momento ela teve consciência que tinha urgência em fazer algo, não podia ficar mais ali. “O jantar”, pensou. E num enorme esforço para abrir os olhos pesados, finalmente conseguiu se sentar e levantar. “Sonho esquisito”, pensou. Calçou os sapatos, saltos trinta e sete em um pé trinta e nove. Foi até a sala onde o marido estava pintando seu auto-retrato.
- Podemos sair um pouco? – ela perguntou.
- Ora que tolice, querida, a maré está alta.
Ela olhou para a janela fechada, a água batia no meio da janela. A maré estava calma, sem ondas. O dia estava claro e ela podia ver o mar. Um peixe vermelho veio até sua janela e ficou olhando para ela por um momento, depois seguiu sua jornada. Ela suspirou e foi para a cozinha, colocar o pato no forno. Os pés doíam, mas estava acostumada. Mas aqueles tênis eram tamanho trinta e nove, ela sabia. Eram perfeitos.
Foi até a sala contemplar o marido. Viu que ele pintava a si mesmo pintando algo.
- Por que não pinta um pouco, querida?
E naquele momento ela lembrou que tinha algo a fazer, que não podia mais ficar ali. Os olhos pesavam e se fechavam novamente, mas ela se esforçou para sair da cama, dessa vez meio que rolando ou escorregando. Sentia-se pesada, semilíquida. Pegou os saltos trinta e seis e pôs em um pé trinta e nove. Estava cada vez mais difícil calçar aqueles saltos... Olhou a caixa dos tênis de corrida e pensou como seria mais fácil calçá-los, simplesmente. Mas não era assim que fora ensinada.
Foi até a sala onde o marido pintava calmamente.
- Podemos sair um pouco? – ela perguntou
- Você sabe que ninguém pode sair de casa, a maré está subindo.
- Ainda?
- É, ainda.
Na janela fechada o nível da água já estava no topo, sem ondas. Do lado de fora uma lula flutuava calmamente, fitando-a com seu grande olho.
- Quando a maré vai descer?
- Ninguém sabe. Fique tranquila, temos tudo que precisamos aqui até a maré descer. –disse o marido
- E se a maré nunca descer?
- Não seja boba, toda maré que sobe, desce.
- Mas já faz tanto, tanto tempo... Nem me lembro mais.
Aproximando-se do marido viu que ele pintava a si mesmo pintando a si mesmo.
Lembrou-se que tinha algo a fazer, não poderia ficar mais ali. “O jantar!”, pensou, enquanto fazia um enorme esforço para rolar da cama e cair no chão, batendo o joelho em uma quina. Pegou os sapatos, saltos trinta e cinco para um pé trinta e nove. Não conseguiria calçá-los, não daquela vez. Então resolveu calçar seus tênis, finalmente.
Saiu do quarto, deu de cara com o marido pintando, calmamente. Olhou a janela, agora a água havia subido para além do telhado, mostrando um mar escuro e indistinto. Do lado de fora uma estranha luz baça se aproximou: um peixe-lanterna veio contemplá-la com seu olho semicego.
Ela decidiu então ir até a porta.
- Não faça isso, querida! Vamos todos morrer!
Ela girou a maçaneta calmamente
- Não, querida, não faça isso! Temos tudo que precisamos aqui dentro!
- Não, eu não tenho. Você tem.
Então ela abriu a porta e não encontrou água alguma, somente uma praia ao pôr do sol. E se pôs a correr para sempre.
Verônica estava dormindo um pouco antes do jantar, descansando as pernas de ficar o dia inteiro de salto. Mas precisava se levantar para terminar de assar o pato, ela sabia. Fez muito esforço para acordar: os olhos pesavam e se fechavam novamente a cada vez que ela tentava. Por fim fez um esforço de se pôr sentada e se levantou. Olhou o par de saltos ao pé da cama e suspirou ao se lembrar que teria que calçá-los novamente até o fim do dia. Então resolveu pegar a caixa embaixo da cama e olhar o belo par de tênis de corrida lá dentro e imaginar quando iria estreá-los finalmente. Guardou os tênis, calçou os saltos, foi para a sala.
E lá estava Marcos, pintando seu auto-retrato.
- Podemos sair um pouco? – ela perguntou
- Ora, você sabe que não podemos sair. A maré está enchendo.
Ela olhou pela grande janela de vidro da casa, a água estava quase alcançando o parapeito.
- É verdade, está. Você sabe quando ela desce?
- Você sabe que essas coisas são imprevisíveis. A qualquer momento pode vir a segunda onda.
- É verdade, pode vir. – concordou novamente.
Foi até a cozinha, pegou o pato que estivera marinando, colocou no forno. Descascou batatas e reservou. Olhou para a cozinha, tudo estava limpo. Talvez ela pudesse limpar de novo, só para passar o tempo, mas os pés dentro do sapato doíam. Era um sapato trinta e oito para um pé trinta e nove. Os tênis de corrida eram trinta e nove, perfeitos. Mas ela resolveu não pensar mais em bobagens e foi tirar o pó dos móveis da sala. Cansou, se sentou um pouco, contemplando o fazer do marido.
- Por que não pinta um pouco, querida?
- Não sei pintar.
- Deveria tentar. Tenho aqui em casa um estoque enorme de tinta e telas, não precisaríamos sair pra nada.
- Mas eu queria sair um pouco...
- Mas que bobagem, não temos aqui dentro tudo que precisamos?
- É sim, nós temos...
E naquele momento ela teve consciência que tinha urgência em fazer algo, não podia ficar mais ali. “O jantar”, pensou. E num enorme esforço para abrir os olhos pesados, finalmente conseguiu se sentar e levantar. “Sonho esquisito”, pensou. Calçou os sapatos, saltos trinta e sete em um pé trinta e nove. Foi até a sala onde o marido estava pintando seu auto-retrato.
- Podemos sair um pouco? – ela perguntou.
- Ora que tolice, querida, a maré está alta.
Ela olhou para a janela fechada, a água batia no meio da janela. A maré estava calma, sem ondas. O dia estava claro e ela podia ver o mar. Um peixe vermelho veio até sua janela e ficou olhando para ela por um momento, depois seguiu sua jornada. Ela suspirou e foi para a cozinha, colocar o pato no forno. Os pés doíam, mas estava acostumada. Mas aqueles tênis eram tamanho trinta e nove, ela sabia. Eram perfeitos.
Foi até a sala contemplar o marido. Viu que ele pintava a si mesmo pintando algo.
- Por que não pinta um pouco, querida?
E naquele momento ela lembrou que tinha algo a fazer, que não podia mais ficar ali. Os olhos pesavam e se fechavam novamente, mas ela se esforçou para sair da cama, dessa vez meio que rolando ou escorregando. Sentia-se pesada, semilíquida. Pegou os saltos trinta e seis e pôs em um pé trinta e nove. Estava cada vez mais difícil calçar aqueles saltos... Olhou a caixa dos tênis de corrida e pensou como seria mais fácil calçá-los, simplesmente. Mas não era assim que fora ensinada.
Foi até a sala onde o marido pintava calmamente.
- Podemos sair um pouco? – ela perguntou
- Você sabe que ninguém pode sair de casa, a maré está subindo.
- Ainda?
- É, ainda.
Na janela fechada o nível da água já estava no topo, sem ondas. Do lado de fora uma lula flutuava calmamente, fitando-a com seu grande olho.
- Quando a maré vai descer?
- Ninguém sabe. Fique tranquila, temos tudo que precisamos aqui até a maré descer. –disse o marido
- E se a maré nunca descer?
- Não seja boba, toda maré que sobe, desce.
- Mas já faz tanto, tanto tempo... Nem me lembro mais.
Aproximando-se do marido viu que ele pintava a si mesmo pintando a si mesmo.
Lembrou-se que tinha algo a fazer, não poderia ficar mais ali. “O jantar!”, pensou, enquanto fazia um enorme esforço para rolar da cama e cair no chão, batendo o joelho em uma quina. Pegou os sapatos, saltos trinta e cinco para um pé trinta e nove. Não conseguiria calçá-los, não daquela vez. Então resolveu calçar seus tênis, finalmente.
Saiu do quarto, deu de cara com o marido pintando, calmamente. Olhou a janela, agora a água havia subido para além do telhado, mostrando um mar escuro e indistinto. Do lado de fora uma estranha luz baça se aproximou: um peixe-lanterna veio contemplá-la com seu olho semicego.
Ela decidiu então ir até a porta.
- Não faça isso, querida! Vamos todos morrer!
Ela girou a maçaneta calmamente
- Não, querida, não faça isso! Temos tudo que precisamos aqui dentro!
- Não, eu não tenho. Você tem.
Então ela abriu a porta e não encontrou água alguma, somente uma praia ao pôr do sol. E se pôs a correr para sempre.