O MANUSCRITO DE ADÃO E EVA
– Quem te contou isso? Seu doido! Disseram-me que perdeste o juízo naquele monastério, mas tia Eulália que gosta de ti mais do que de mim que sou seu próprio sobrinho, teima em defender-te e apaziguar as coisas quanto ao tocante da tua insanidade.
– Então Adalberto, achas que sou um destrambelhado? Que eu não atino para as coisas? Como podes dizer isso, tu? Visto que até agora parece-me que a minha loucura lhe caiu muito bem para esconder os teus casos com Dona Hermínia. Ou para quitar tuas dívidas na venda do seu José, quando ele vem com aquele avental sujo e aquelas mãos gordurentas se aventar todo como um porco a rolar na lama e me insultar e bater na minha cabeça por tua causa. Homem, homem, você me descompõe e faz eu sair de mim. Somos amigos. Porque? Porque, dentre a amizade verdadeira que temos não cabe esta confidência estranha, mas verdadeira? Eu encontrei o Manuscrito perdido de Adão e Eva? É isso!
– Olha, irmão, – retrucou Adalberto segurando e apertando os ombros de Borges com as duas mãos. Dando-lhe um beijo no rosto e depois suspirando, – tu és o meu amigo e eu não posso mentir para ti. Tua mãe e o padre Cassandro, já tem determinados os teus passos. Serás internado na Santa Casa se persistires nisso. Veja o que digo. Prestes atenção. Pare. Queres trombetas, confetes, pompas? O que? Chamar a atenção do Papa? Reconhecimento? Achas que o manuscrito tal e qual irá parar nas escrituras sagradas? Faça-me o favor!
Mas Borges, que era um homem de natureza empertigada e imprevisível, disse-lhe apenas esta sentença, que no coração de Adalberto pareceu ferir como flecha, uma sentença de morte: – Eu retornarei com a verdade e todos se retratarão diante de mim. E desapareceu dentre os carros e as gentes.
Muito tempo se passou até que Adalberto tivesse notícias de Borges e foi na frente da repartição, quando saía, perto da praça, que o mensageiro, um rapazote inquieto entregou-lhe o bilhete:
"Caro amigo,
Estou cá eu nesse recôndito vilarejo de onde a humanidade se afasta e pela qual circunda, desviando-se. Essas pedregosas e escarpadas montanhas não têm nada o que ensinar, pensam.
Eu sei que já fomos grandes amigos. Não sei agora, com tudo isso, a cota de estima que por mim ainda calculas. Para mim continuas em alta. Preciso de ti. Tens aí o endereço de onde estou. Escute-me, pelo menos uma vez, que seja para ser o meu testamentário."
Adalberto enfiou o bilhete no fundo da bolsa e queria que essa ideia de ir ter com seu amigo também lá ficasse, bem no fundo dos seus pensamentos. A doença do amigo o martirizava muito e não havia um só dia em que não pensasse nele. Mas se fosse ao seu encontro, o único jeito de manter as pazes seria se fazendo de louco, pois sabia que nada que falasse o convenceria. E isso o fazia sofrer ainda mais.
Dez horas depois de receber o bilhete de Borges, numa manhã ensolarada de quinta-feira, Adalberto partiu com duas malas para a ferroviária. Escreveu cartas para as pessoas que se importariam com ele, e a quem deveria alguma satisfação. Primeiro escreveu para a sua mãe:
"Querida mãe,
Como já é de teu conhecimento, sofro já há algum tempo com a progressiva e acelerada doença que se instalou no cérebro de um amigo dos tempos de escola que a senhora conhece bem, o Borges. Tudo de minha parte foi feito para que procurasse ajuda e se tratasse, mas o caso tomou proporções tão grandiosas que não existe remédio a não ser a sua internação compulsória. Estarei cuidando desse amigo nesses dias que ficarei ausente. Não se preocupe comigo, ficarei bem. Envio um telegrama assim que possível."
E depois escreveu para Dona Hermínia, sua amásia:
"Meu amor,
Meu desejo mais íntimo, o mais caloroso dos meus sonhos. Desculpe-me desaparecer dessa maneira, mas a urgência desta causa exige providências desesperadas como esta. Saibas que penso sempre em ti e no tempo que passamos juntos e isso irá me confortar no caminho e será como um remédio que reparará a dor da distância que irá nos separar.
Com todo o amor, sempre seu…"
A charrete que o conduzia até a estação não era das melhores, batia muito e parecia que em qualquer momento iria desmontar. O cocheiro andava depressa, ignorando as batidas que Adalberto dava com a sua bengala de doutor, que usava para ostentar algum status, assim como o anel. Quando por fim a estrada se estendia mais plana e sem buracos ou pedras soltas, ele pode admirar um pouco a vista. Crianças brincavam nas praças. Algumas damas passeavam com seus cachorros, acompanhadas por suas aias. Vendedores apregoavam com suas tabuletas e em barracas. Mas foi depois de passar por uma fonte, onde um chafariz borbulhante fez o brilho do sol atingir em cheio os seus olhos, refletido em seu jorro convulsivo, que ele passou a perceber coisas que pareceram a ele sinais ou profecias.
O primeiro sinal foi o de uma mulher que ele vira com uma maçã. Ela sentou-se e ofereceu a fruta a um homem mais velho e garboso. A moça era jovem, de pele escura e cabelos cacheados. Vestido colorido e cheia de pedras e miçangas que lhe enfeitavam. Estavam em uma feira, que se estendia por toda a calçada até o porto e terminava no mercado de peixes. O homem poderia ser seu pai, pela idade, embora parecesse impossível diferenciar as afinidades deste parente para as de um amante. Ele alisou o rosto da jovem e lhe beijou a testa, antes de morder a maçã que ela segurava. Depois foi a vez dela dar a mordida.
Essa imagem ficou martelando em sua cabeça até que se juntasse a outra, que sucedera esta cerca de dez quilômetros. Despontava no horizonte uma pequena colina e em redor um povo indiano fazia suas meditações e exercícios diários. No meio deles um encantador de serpentes tocava sua flauta e por estar ali só a distrair-se, sem intenção de ganhar uns trocados, ele passou a desafiar a cobra e disferir movimentos rápidos, de ataque, com as mãos. A cobra dançava, se esticando e se retraindo em movimentos oscilantes, como se fosse sustentada por algum fio invisível, até que partiu para o bote e o atacou. A mordida atingiu sua mão direita, entre o polegar e o indicador e o homem levantou a tampa do cesto sobre a cobra para afugentá-la, logo depois chutou o chão jogando terra sobre ela. Outros que estavam perto o acudiram, mas o homem, passado o susto, parecia não mais se importar com a picada e apenas ria.
Passado este outro episódio singular, Adalberto começou a sentir uma coceira incômoda na mão direita, como um reflexo sensitivo de sua experiência visual com o encantador de cobras e aquele incidente. Passaram do porto e adentravam o interior. Até as montanhas mais cinquenta quilômetros. Pararam para alimentar e dar água e descanso aos cavalos. Adalberto entrou numa taverna e pediu cerveja. O lugar estava calmo. Mesas vazias, um senhor triste e pensativo encarava seu caneco de cerveja na bancada, enquanto um velho e um garotinho sentados atrás de Adalberto o encaravam e davam risadas sem que ele percebesse. Em seguida o cocheiro apareceu carrancudo, batendo a porta e chamando a atenção de todos, em especial do homem que atendia no balcão, que não gostou nada de seus modos grosseiros e fez cara feia, soltando um: Hum! Adalberto, que não esperava que o sujeito fosse aparecer, deu de ombros.
– Ruivo? Dá-me cerveja, faz favor! – Pediu Silas, o cocheiro, de forma mansa, amigável, como se buscasse retratação.
– Escuta aqui seu caolho! Costumam na tua terra chamar-te deste modo? É o narigudo de tua aldeia chamado assim? – Vem cá, narigudo? – Ou alguém baixo, gordo? Eu não te expulso da minha taberna porque tenho clientes piores que tu. Mas vejas como conselho que a boa educação pede que te apresentes a alguém dizendo o teu nome, para que depois a pessoa se apresente de modo apropriado.
Silas riu estufado, como se puxasse do âmago um catarro grosso e debochou do homem ruivo mais ainda, afinando a voz como criança e dizendo que não se ofendesse por qualquer besteira como fazem os meninotes e que ele não se importou por ser chamado de caolho, porque ele era mesmo. Depois disso as coisas fugiram do controle e o ruivo, que era um homem grande e forte, pulou o balcão e agarrou-se ao pescoço de Silas, que lhe desferiu um tapa. Adalberto tentou segurar o ruivo, mas foi surpreendido pelo velho que o atacou por trás com uma garrafada na cabeça, enquanto seu neto batia palmas e ria. O dono da taverna deu um único soco em Silas que caiu como um saco de batatas que rola da pilha. E o homem triste com sua caneca de cerveja afastou-se e foi ser triste em silêncio, para não atrapalhar os outros.
Passada a lastimável situação na taverna, saíram da casa de saúde, os dois, com curativos e faixas na cabeça e no olho.
– Seguiremos viagem, sua jamanta? Ou não estais em condições? – Quis saber Adalberto, para poder se antecipar, pois queria chegar antes do anoitecer.
– Já viajei em condições piores. Além disso se não faço a corrida toda não me pagas integralmente e preciso do dinheiro. Vamos tocar viagem, sim, senhor.
De repente Adalberto começou a gargalhar, de tal modo solto e descontrolado que sua barriga doeu.
– E eu..., – ai, ai – eu que pensei que era, – ah, há, há, há, – o brigão e olha você. Brigando com um armário daqueles que te parte a cara num só golpe. Não és brigão no fundo. És um tolo. Vamos, temos que prosseguir. – Disse abraçando o cocheiro, que observava a tudo de boca aberta.
A viagem avançou a cavalo por mais duas horas e quando chegaram ao pé das montanhas despediram-se e Adalberto seguiu em direção à estação. O relógio que tirou da algibeira marcava seis horas da tarde. As luzes dos postes ao longo do passeio já estavam acesas e as cigarras começavam a cantar. Sentado no banco à espera do trem, pode notar uma movimentação estranha entre os barracos de madeira além dos trilhos. Eram dois homens que lutavam. Um deles sobre o outro, o esganava instigadamente, mas foi atingido por um sarrafo e recuou, porém sem se render pegou uma pedra e jogou contra o seu oponente. Mas a pedra, que atingiu o peito deste, era média e não o barrou. Ele avançou pra cima do estrangulador e deu-lhe uma sequência de socos que o fez cair. Depois pegou uma pedra grande o bastante para esmagar o seu crânio e assim a luta estava acabada. Adalberto ficou assustado com o que acabara de presenciar e por ser a única testemunha ocular do assassinato. Imediatamente apagou a chama que queimava no poste abafando-a com a bengala e procurou a escuridão. Temia ser visto. Quando o guarda da estação se aproximou o apito do trem soou e outros passageiros que iriam embarcar chegavam, o que distraiu o agente de segurança e o fez desviar seus passos para a bilheteria.
O seminário em que Borges estudava e do qual fugiu para invadir o monastério naquela noite chuvosa e cheia de mistérios que penetravam o ar, ficava no pico de uma das montanhas mais altas, à setecentos metros de altura. A maneira mais fácil de chegar era de cavalo e ele alugou um dos aldeões que viviam na região.
Deparou-se com o amigo Borges completamente nu deitado sobre a terra pedregosa, em frente ao seminário. Todos os habitantes daquela edificação haviam se recolhido e o vento forte e o ar gelado atingiam o corpo do miserável bruscamente. Adalberto cobriu o corpo do amigo com sua sobrecasaca e correu para pedir ajuda no seminário. Os seminaristas aqueceram Borges, serviram sopa de ervilhas para eles e prepararam uma cama no quarto em que o seminarista ficava para Adalberto se alojar.
Na madrugada, enquanto conversavam, Borges parecia estar bem melhor, e o assunto do manuscrito finalmente veio à tona. Sobre uma mesa e com o auxílio de um candelabro com seis velas eles estudavam as páginas enroladas numa capa de couro de novilho.
– Amigo. Eu quero que você leia. Eu vou deixá-lo sozinho, irei dormir. Eu demorei muito para conseguir pôr as mãos nessa preciosidade e se o que estiver escrito aí te fazer chorar como fez a mim, o esforço terá valido a pena.
Adalberto começou a ler, desinteressado a princípio:
"O sol, que cobria com uma lâmina dourada as copas das árvores e as águas sussurrantes do Eufrates, se despedia do Éden enquanto Adão, admirado, sorria para Eva e para a natureza, para o Deus da natureza e tudo que ele havia criado. Eles deitaram sob a árvore do conhecimento do bem e do mal e ela lhes protegia a noite. Os bichos que se aproximavam não ousavam lhes fazer mal algum e tudo participava para a harmonia e a unidade, como se em cada espécime vivente a máxima do amor estivesse inscrita e não pudesse ser violada.
Na manhã seguinte o sopro de Deus agitava as folhas das oliveiras que Adão plantara no jardim e nas videiras já brotavam os primeiros ramos dos quais nasceriam uvas.
Conversando com Deus na tarde deste mesmo dia Adão achou melhor que para ele e sua mulher se fizesse uma casa, com paredes e cobertura que os protegesse do sereno, do frio e da chuva. Mas ele não tinha as habilidades para desempenhar tal serviço. Então Deus atenciosamente ensinou-lhe os ofícios necessários para se construir uma habitação, assim como ensinou-lhe a plantar e a domar os animais selvagens. Os tempos em que o homem e a mulher viveram na presença de Deus foram cheios de contentamento e proveito. Pois Deus orgulhava-se de sua criação e o primeiro casal tinha em Deus um amigo e um protetor que os ouvia quando eles chamavam e lhes atendia em tudo.
Mas ouviram-se rumores e sussurros vindos de dentro da terra que começaram a inflamar em Adão e Eva uma curiosidade perigosa e questionadora, que eles nunca haviam sentido antes. Esses abalos e sublimações exalavam das pedras e perfumavam com um cheiro agradável, atraindo os dois e deixando-os pela primeira vez separados um do outro. Pois eles desde o início nunca se separaram e ficaram um ao lado do outro em todos os momentos. Isso fez as primeiras dúvidas e desconfianças a respeito de Deus brotarem em seus corações. Eram os anjos caídos, banidos do céu e do Éden que tentavam, com as limitações que possuíam, afastar Adão e Eva de Deus. Porém foi Lúcifer, em sua astúcia pérfida que teve a ideia de chamar a serpente que se alimentava no pântano de um sapo. A atraiu para os seus domínios e começou a falar:
“Serpente. Majestoso animal que passeia por aí a se gabar de todos por ser tão ardilosa. Diga-me. Viste as criaturas que andam sobre duas pernas, sem pêlos, que plantam e colhem, adubando e irrigando o solo, sobre a supervisão do criador em todos os detalhes? Percebestes como eles são bajulados? Sabes por que”?
A serpente respondeu:
“Não foram eles criados segundo a imagem e semelhança do criador? Não é por isso que eles têm a confiança dele nessas coisas? Não foi Adão a quem Deus pôs à frente e chamando todos os animais determinou que o nome que ele escolhesse, esse seria o seu nome segundo a sua espécie”?
Lúcifer não se deu por satisfeito:
“Tens razão nisso. Mas será que este privilégio dado a eles não é um exagero? Como ele pode ter criado uma criatura como tu, que debates comigo com igual maliciosidade e discernimento, sem oferecer também algum crédito ou respeito? Vós recebestes por acaso os sapos ou os ratos como teus súditos? Destes nomes a eles? És rainha do teu mundo? Não. Como te sentes? Não gostaria de vingar-te”?
E assim Lúcifer conseguiu enganar a serpente para que ela tentasse Eva e se rebelasse contra Deus. Logo Eva tentaria Adão e ambos estariam condenados e afastados para sempre da graça divina”.
Sem terminar de ler Adalberto virou-se para olhar Borges, que dormia um sono pesado. Ele percebeu então que seu coração se encheu de um pavor, de alguém a quem se revelou um segredo que não poderia ser revelado. Seus olhos encheram-se de lágrimas e calado ele chorava. Nesse momento os três sinais vieram a sua mente. A cigana com a maçã ofertada ao homem velho. A cobra que mordeu a mão do indiano e o assassinato na estação. Eram passagens do gênesis. O pecado, a traição e o assassinato.
Arrependeu-se de ter duvidado do seu amigo, visto que sentiu nos próprios ossos que aqueles papéis continham um conhecimento que nenhuma mente humana jamais poderia conceber. Pegou o castiçal e foi até a janela do quarto. Era uma janela alta com seis divisões e arcos pronunciados que ao se tocarem formavam uma ponta. Lá embaixo as árvores balançavam muito e o vento reverberava entre as pedras e as matas fantasmagoricamente num gemido aflitivo. De repente um vulto corta sua visão correndo e se escondendo entre as pedras e árvores. É Borges. Então ele se vira imediatamente para a cama ao lado onde estaria o amigo e ele não está. Não entende como, em questão de segundos e sem fazer o menor ruído, saiu fortuitamente do quarto.
Contorna as paredes de pedra e desce as escadas o mais rápido que consegue. Abre a porta principal, que é pesada e range alto por causa da ferrugem dos ferrolhos. Deixa o castiçal e prossegue o caminho. A noite está clara, é lua cheia. Ele corre e olha para os lados, entre as pedras e árvores por onde o amigo esgueirara-se, mas não vê nem sombra dele. Depara-se com um muro alto e escala-o. Do outro lado está o monastério, imponente com sua construção principal e torres de dez metros em cada uma das extremidades. Um telhado pontudo e circular e pequenas janelas no alto, em toda a sua circunferência. O clima dentro daqueles muros era estranhamente diferente, mais frio e até a vegetação possuía diferenças bizarras com relação a mata nativa do local. Continuou andando até ver refletidas numa das paredes do monastério, labaredas de fogo e escutar cochichos, que pareciam ser numa língua estrangeira. Aproximou-se com cuidado, enquanto os cochichos tornaram-se orações e declamações cantadas em tom de missa, mas com uma cadência mais pausada e enfática.
– Retroaram milvbabahtnis. Coroara PusgaminOdrin. Nonleveskraktonoritona...
Essas palavras, mesmo ininteligíveis tocavam fundo nele. E aquele que a pronunciava, dando lugar a outro na sequência, até que todos em uníssono terminassem, era nada mais nada menos que um monge. Todos monges. Aquele monastério, até onde ele sabia, junto com todos os seus monges, tinha sido extinguido há mais de duzentos anos e seria impossível que uma tradição esquecida ao longo dos tempos se perpetuasse e atraísse novos membros.
Então, a conclusão óbvia de que todos ali estavam mortos, congelou sua espinha e o deixou perplexo. Dentre os monges, seu amigo Borges entonava canções e orações, mas seus olhos arregalados e frios não incidiam aquele brilho de vida e consciência que aos olhos humanos é comum, mas eram olhos distantes, pétreos, vidrados.
Sentiu a morte lhe abraçar. Percebeu Adalberto que se permanecesse ali por mais tempo seria pego e com essa sensação voltou por onde veio e tentou dormir, mas não conseguiu, até Borges retornar. O retorno do amigo foi silencioso, assim como a sua escapada. Sentou-se na cama e não respondia a nenhuma das indagações de Adalberto, que eram muitas. Os olhos permaneciam estáticos, olhando para o nada e ele deitou-se e dormiu.
No outro dia Borges estava alegre, renovado e aparentemente saudável. Os dois conversaram, todavia, os assuntos limitaram-se as vidas dos dois, o que andavam fazendo. As novidades da civilização e a complicada relação de Adalberto e sua amante.
As dúvidas de Adalberto quanto a sua permanência no seminário foram sanadas quando Borges surpreendeu-o anunciando-lhe aos padres e seminaristas como um doutor em línguas e responsável para traduzir os pergaminhos dos monges encontrados pelo padre Rubens dentro de um jarro de barro e enterrados naquelas cercanias.
– Doutor em línguas? E como eu vou traduzir o que eu não conheço. Ficastes pior desde a última vez que nos vimos. Agora hás de me comprometer.
– Há de ser só um estratagema. Acalme-se. Será por pouco tempo, antes que descubram a farsa e teremos mais pano para desenrolar o mistério.
– Que mistério? Como ontem à noite? Queres me contar algo? Explicar porque sais escondido de noite e te encontras com monges ao redor do fogo?
– Presenciaste isso? – Borges demonstrou espanto ao ter essa revelação e retirando-se para fora do seminário foi andando até um pátio onde havia mesas e cadeiras, o refeitório.
– Eu presenciei e não foi fácil assimilar o que vi. Preciso de uma explicação.
– Adalberto, meu amigo. Sou eu que preciso de uma explicação. Nesses momentos não respondo pelas minhas ações. Estou em um transe e não lembro de nada do que faço. Deves ser os meus olhos e os meus ouvidos. E registrardes tudo o que virdes e ouvirdes. Tenho tinta e papel a vontade. Esses documentos poderão me ajudar a encontrar a verdade quanto a tudo isso. Mas tendes cuidado. Muitos já morreram tentando desvendar tais segredos.
– Eu sei que esses monges estão mortos. Mas eu os vi na minha frente como se de carne e osso fossem feitos. Eu posso ir a fundo nisso. Agora eu acredito em ti. Depois que li o manuscrito, bateu em mim uma amargura e um aperto que foi como se a espada de um anjo me tocasse mortalmente, alertando-me para não prosseguir e tive que parar a leitura. Mas meu amigo Borges, tu foste longe demais em tudo isso. Percebes? Não há esperanças para ti.
– Eu sei que não tenho muito tempo mais. Por isso escrevi-lhe como meu testamentário. Serás herdeiro do manuscrito e juntos, aproveitando o fôlego que me resta, buscaremos respostas. Agora que vistes e só por isso credes, tomarás sobre tuas costas esse peso e não sei se herdas na verdade uma benção ou uma maldição.
Na noite seguinte, como ficou combinado entre eles, Adalberto vigiaria o sono de Borges e descreveria em detalhes tudo que se passaria. Alguns lobos, na hora mais trevosa, às três da manhã, pareciam cercar o lugar e enchiam o ar com uivos ancestrais, que provocavam instintos animalescos em Adalberto. Ele lia o manuscrito tentando se manter acordado, mas o efeito parecia reverso. O amigo levantou, calçou as chinelas e foi até o local onde guardava o manuscrito. À chave, na gaveta da escrivaninha. Pegou a chave, abriu, tateou, mas não achou. Estava com Adalberto. Ficou parado, com as mãos sobre as pernas, os olhos arregalados, não piscava. O medo pareceu pressionar a garganta de Adalberto, como um assassino incorpóreo e ele achou melhor colocar o manuscrito com cuidado sobre o móvel, para ver o efeito que teria. O sonâmbulo pegou, abriu e começou a ler a partir de um determinado trecho:
"Adão, todos os dias se beneficiava do seu trabalho ao colher os frutos da terra, enquanto Eva cuidava do jardim e de sua irrigação. Tudo a terra lhes dava, como foram aprendendo. O bicho da seda produzia a mais fina e delicada trama, as abelhas produziam o mel e até as asquerosas aranhas eram fiandeiras natas, embora, assim como o casal, ainda ignorassem os cálculos matemáticos em que se baseavam as formas geométricas e concêntricas de suas teias. Os castores eram capazes de represar a água. E eles observavam tudo isso e cada dia no paraíso era um novo aprendizado para eles.
– Daína está para parir o filhote. Vamos pôr nossas mãos na barriga dela para que nossa benção esteja nela e nas suas gerações? – Indagou Adão, referindo-se a égua negra a quem se apegaram desde que era um filhote.
– Abençoada Daína já é por conceber em seu ventre, – e tocou sua barriga e pegou a mão de Adão e também a posicionou sobre ela, – e nós somos, Adão. Porque Deus nos fez para que sejamos fecundos e povoemos a terra. A cada nascimento todos os animais se achegam e recebem a nova vida. Quando formos nós, imagine a alegria.
Adão depositou a cabeça de Eva em seus ombros e acariciou seus cabelos e com a mão ainda em sua barriga disse:
– Serás a mãe dos homens. Eu serei o pai dos homens. Todos serão abençoados ou amaldiçoados por nossa causa. Nossa responsabilidade é maior. Temos a chave para abrir ou deixar fechado.
– Sobre isso eu sonho em meus sonos da tarde. Essa condição. Que parece tão séria e ao mesmo tempo não faz sentido. Olhe, este é o fruto proibido. Porque parece mais agradável aos olhos e escorre mais saliva da boca do que todos os demais frutos?
– Para que a tentação seja um inimigo adequado contra o nosso amor à Deus. Mas no fim sabemos que tudo que é contra nosso criador é contra a vida. Será para nós a morte e isso nos tirará para sempre da sua proteção."
Enquanto observava Borges ler, atônito, Adalberto constatava que a voz que narrava não era a de seu amigo, mas de outra pessoa. Isso o alertou para algum engodo sobrenatural em que pudesse estar sendo vítima, mas a ideia foi deixada de lado, ao perceber que o amigo se preparava para sair. Borges vestiu seus trajes de monge, enfiou o manuscrito na sua bolsa e deixou o quarto. O ar da madrugada estava fresco, uma brisa agradável soprava. A chama da tocha que carregava tremulava, criando e extinguindo sombras. Borges parou próximo de uma grande árvore, era uma mangueira, perto do muro que dividia a propriedade do monastério. Agachou-se e procurava por algo no chão. Puxou uma corda e levantou um alçapão, derrubando toda a terra que estava sobre ele. Adalberto esperou até que o sonâmbulo entrasse e quando chegou a hora percebeu que uma escada muito estreita e íngreme, de alvenaria, pintada de amarelo o aguardava e começou a descer. Prolongando-se ao final da escada, um túnel com suas paredes escavadas e ossadas humanas depositadas nesses buracos, como sepulturas precárias. Em alguns buracos no lugar de ossos tinham vasos de terracota lacrados, cuidadosamente depositados bem ao fundo e inscrições, como lápides, numa língua desconhecida.
Ao se aproximar da escada no outro extremo da galeria, a estrutura se alargava em formato circular, como uma nave numa igreja e prateleiras esculpidas nas pedras davam suporte a um número incalculável de velas derretidas e apagadas e estátuas de profetas e apóstolos bíblicos, juntos com cruzes e outras relíquias religiosas. Ao se deparar com o alçapão no limiar da escada, reparou que o mesmo estava fechado. Recostou a tocha sobre um dos degraus, cuidadosamente para que não a derrubasse e de forma que a mesma iluminasse a sua frente. Empurrou com as mãos, com os ombros. Usou toda a sua força, mas parecia impossível que o alçapão se rompesse. Pegou a lanterna, desceu as escadas e procurou algo que pudesse usar. Achou um fêmur em um dos buracos de ossos e voltou para o alçapão. Dessa vez, usando toda a sua força e com o osso servindo de alavanca, conseguiu romper uma brecha pela qual se apoiou o osso e finalmente a madeira estalou e partiu-se.
No monastério ele não ouviu canções ou rezas. Apenas o silêncio sepulcral da madrugada e a claridade azulada e límpida do céu sem nuvens, anunciando em breve o nascer de mais um dia. Olhou cautelosamente para o chão, procurando pegadas. Elas iam em direção a torre leste. Seguia as pegadas, mas de repente sentiu uma pancada forte na cabeça e tudo se apagou.
Enquanto isso dentro do monastério Borges conversava com padre Rubens:
– O sacrifício tem que ser feito logo. Que comecemos. – Exasperou-se Borges.
– Será feio. Esta noite. A virgem foi mais complicado. O pai dela é o dono de todas as terras desse fim de mundo. Ela é vigiada dia e noite pelos irmãos, pelos guardas e por ele. De forma que não seria fácil seqüestrá-la. Mas está concluído. A oferta dedicada aos anjos celestiais e a oferta que se entregará aos anjos caídos. Ambos estão limpos e aguardando a cerimônia. Vamos. – Ordenou o Padre apagando a lamparina sobre a mesa. O local onde estavam era uma pequena biblioteca, com mesas e cadeiras espalhadas. Pegou uma tocha e seguiu com Borges para o salão cerimonial do monastério, que ficava no acesso ao grande pavilhão do piso térreo, mas no subsolo.
Adalberto abriu os olhos e sentiu o gosto de sangue e uma pressão que estrangulava sua boca e seus braços. Estava amordaçado, com os braços amarrados a estacas fincadas nas laterais de uma laje alta de pedra. Ao seu lado, em outra laje igual, uma linda jovem, loura, pela branca, olhos azuis. Ela agitava-se e debatia-se brava e inutilmente. Adalberto olhou para ela e balançou a cabeça. Como se a alertasse da inutilidade daquilo. Ela pareceu entender. Parou.
No chão uma fogueira ardia intensamente e um desenho rebuscado de uma árvore frondosa e carregada de frutos completava a cena. Em volta, em formato de círculo, vinte e nove monges sentados e no meio, em pé, segurando um livro, o Padre Rubens.
– Senhores. O grande dia finalmente chegou. Em busca da iluminação e do conhecimento ilimitado e principalmente, daquele que é o maior de todos os mistérios que envolvem o divino e o sagrado, a árvore da vida, nós chegamos mais longe do que qualquer seita ou sociedade secreta jamais chegou. – Borges? – Padre Rubens entregou o livro que segurava a Borges, que se aproximava e se retirando do centro deixou que ele prosseguisse com a cerimônia. Borges estava lúcido e consciente nesse momento.
– Lingfarhynsectageminforykro. Coroara unitrendapolausdwya. Oritonamidrezokasba.
Borges seguia lendo o livro em sua língua misteriosa enquanto a árvore desenhada no chão iluminava-se com línguas vivas das chamas que pulavam e riscavam o chão passando pelos contornos da figura. Nesse momento dois monges portando punhais saíram do círculo e se posicionaram, um ao lado de Adalberto e o outro ao lado da jovem virgem. Enquanto as palavras do livro eram lidas e quanto mais se adiantava a leitura, o tempo pareceu reagir e lá fora, nuvens, que não havia, apareceram e se agrupavam se acumulando e originando uma tempestade que se formou tão rapidamente como uma tormenta no mar. As janelas do monastério se arrebentaram, mas o fogo permanecia ileso e intenso. A árvore queimava ferozmente e Borges fechou o livro. Nesse momento os monges desceram os punhais que atingiriam mortalmente os corações das vítimas. A jovem soltou um grito estridente de dor, enquanto o sangue era jorrado de seu coração que se rompia e parava. Mas o mesmo não aconteceu com Adalberto. Ao se aproximar o punhal de seu peito o mesmo se estilhaçou em muitos pedaços e não o atingiu. As amarras que o seguravam se soltaram. E a árvore que incendiava no chão passou a cuspir violentamente labaredas de fogos em todos os monges ali presentes. Borges, que estava mais próximo, foi o primeiro a ser atingido. Enquanto incendiava ele pegou o manuscrito da bolsa e jogou na fogueira. Adalberto num ímpeto de loucura lançou seu braço no fogo e pegou duas páginas, antes que fossem consumidas.
Segurou o amigo, rolou-o no chão, jogou terra por cima dele. Mas pouco podia ser feito pelo amigo agora. Ele estava morrendo.
– Ele te pulou, amigo. Ele não te quis. Sabe, o-que...
– Não fales nada. Estás fraco. Fiques quieto.
– Não. Você n-nã-oen-tende.
– Amigo. – Insistiu Adaberto, segurando firme a mão de Borges. – Eu te amo. És meu amigo. Entendo o que te fez agir da forma como agiu. Estavas tomado por um espírito impuro. Tudo ficará bem.
– Nada ficará bem. Nem o inferno me a-cei-tará. Eu fui o sacrifício, no seu lugar. Tu és digno. Só tu és... ca-paz de...
Borges deu seu último suspiro e morreu. Os monges que ainda resistiam ao fogo sucumbiram e a beleza da jovem virgem repousava intocada para sempre.
Adalberto saiu dali e encostou-se numa árvore, com as duas últimas folhas do manuscrito:
“Adão e Eva se amavam debaixo de uma figueira. Adão admirava as formas daquela criatura posta ao seu lado por Deus. Os seus corpos uniam-se e separavam-se na conjunção sexual como o vento e as vagas do mar calmo. Não tinham experimentado o beijo ainda, então suas bocas só se encostavam quando exaustos eles se entregavam aos braços um do outro. Nessa noite eles conceberam a Caim e sua descendência numerosa teve início.
Na tarde do outro dia o cavalo branco que pertencia a Deus encontrava-se no jardim e Adão, temendo a ele, voltou seu caminho.
– Adão! – Chamou Deus.
– Cá estou, Senhor. O que desejas?
– Evitando-me? Porque te ias?
– O sol está quente hoje, Senhor. Ia refrescar-me no lago.
– Tens medo de Rodes? Meu cavalo?
– Eu tenho. Ele é um cavalo e tem um chifre. Eu nunca vi uma criatura como essa. Ele me assusta.
– Venha, se aproxime. – Disse Deus pegando na mão de Adão e colocando sobre a barriga do cavalo.
– Sentes a respiração? Forte, enérgica? Este cavalo é mais antigo quanto tudo que eu criei. Mais antigo que você, que todas as criaturas. Os homens que ouvirão falar dele, contarão histórias e o incluirão em lendas tolas. Porque eles precisarão de histórias e de consolo.
– Meus descendentes? Eles ouvirão falar de Rodes?
– Sim. O chamarão de unicórnio. Mas o repertório de histórias do homem será vasto e seus corações não sossegarão. Você e Eva tem isso por recompensa. – Disse Deus estendendo os braços e mostrando o paraíso. – E será dado a seus filhos se vocês o merecerem.
Enquanto isso a brisa soprava sobre as águas do rio em que Eva se banhava. Emergiu das águas balançando seus cabelos molhados e seu caminhar era suave e cadenciado. Quis refrescar-se sob a sombra da árvore cujos frutos Deus os havia proibido de comer. De repente escutou um barulho, como um silvo. Quando olhou, uma cobra negra, de olhos verdes como o jade, a encarava sobre uma pedra e disse: "Salve, mulher”.