- O BRILHO VERDE DA ESCURIDÃO - IOLANDINHA PINHEIRO
Para meu amigo querido Lucas Louis que está sempre me dando atenção e carinho, uma singela homenagem e eterno agradecimento.
Para meu amigo querido Lucas Louis que está sempre me dando atenção e carinho, uma singela homenagem e eterno agradecimento.
Sentado e de cabeça baixa, já havia respondido à mesma pergunta pela quarta ou quinta vez. Não adiantava falar que não sabia, ninguém acreditava em mim. Na sala ao lado eu ouvia os gritos do pai dela. Minha mãe chorava e fazia ligações. Eu só queria ir para casa e tentar dormir. Eram tempos estranhos aqueles.
– Vamos lá, Lucas! Conte de novo. Onde vocês dois estavam?
Era uma resposta difícil de dar, porque na última vez que eu a havia visto, Isabel estava alguns metros abaixo da superfície da água e depois simplesmente sumiu. Fiquei aguardando por uns dois minutos enquanto as minhas esperanças se afogavam junto com ela, e gritando o seu nome, mas minha amiga não retornou. Corri para a casa onde morava e avisei ao seu pai. Em pouco tempo ele e outras pessoas mergulhavam no ribeirão e procuravam pelas margens sem encontrar Isabel.
No meio daquela gritaria eu me desligava e só ouvia um zumbido agudo que abafava todas as vozes ao redor. Quando a polícia chegou eu fui levado junto com o pai da menina, e umas outras pessoas foram buscar minha mãe.
Durante o trajeto ia pensando naquele ano incomum e em tudo o que nos levara até aquele exato momento de completa estranheza e solidão.
A vida para nós começou a mudar no primeiro dia do ano. Estava quase completando onze anos de idade, levávamos uma vida absolutamente normal. Meu pai era professor, minha mãe tinha um salão de beleza. Morávamos em uma casa confortável e tínhamos uma rotina perfeita até o dia em que papai não apareceu em casa após o trabalho e tivemos que mudar nossas vidas completamente.
Como se estivessem esperando este evento a qualquer instante, mamãe e a Bá, andavam para um lado e para o outro, colocando coisas em malas e queimando papéis na chama do fogão. Vi quando tiraram o fio do telefone da tomada e me mandaram ficar assistindo tv até ser chamado. A Bá me deu um pacote de biscoito de chocolate com leite. Elas achavam que não, mas eu sabia exatamente o que estava acontecendo e o motivo. Não tinha exato conhecimento dos fatos, mas lembrava que as reuniões que papai participava não eram sobre poesia inglesa, e que o grupo dele era de resistência ao governo.
No dia seguinte saímos como fugitivos, pegando os objetos mais importante e partindo sem avisar aos vizinhos. Mamãe falou que não deveria comentar com ninguém sobre a nossa partida. Não perguntei o motivo. Dormi a maior parte da viagem, estendido no banco de trás do carro. Quando acordei a cidade já havia sumido e a estrada era uma sequência tediosa de árvores e postes se sucedendo.
Afinal, chegamos a um sítio de um amigo dos meus pais. Havia lá uma casinha triste e coberta de poeira, encravada num terreno parcamente arborizado, sem luxo, ou balanços, ou vizinhança alegre para distrair. No fim da estradinha se via apenas uma outra casa, menor ainda que a nossa. Na frente dela, quebrando a monotonia do branco amarelado das paredes, um jardinzinho caprichosamente cuidado. E nada mais.
Nossos vizinhos tinham uma filha um pouco mais velha que eu, e como éramos as únicas crianças em toda aquela vastidão monótona, logo nos tornamos os melhores amigos. Foi com ela que aprendi a derrubar frutas das árvores usando pedras, onde passava o ônibus para a escola, e os melhores esconderijos para escapar das brincadeiras pesadas dos meninos mais velhos que nós.
Vivíamos o dia a dia criativo da infância sem grana, e éramos felizes naquela ilusão de paraíso.
Isabel era tudo para mim. Meu alento, minha musa, a minha melhor companhia e, sobretudo, a minha inspiração para fazer as coisas mais insensatas naqueles tempos sombrios da década de setenta.
Estávamos sempre metidos em encrencas. Uma vez peguei a Bá se queixando da Isabel para a mamãe. Falando que ela era má influência. Por causa de uma travessura que fizemos juntos fiquei de castigo e acabei perdendo um passeio organizado pela escola, pelo qual esperávamos há semanas.
Pensei que o dia estava perdido e saí escondido, pelo caminho da vereda, para o ribeirão. Já havia andado uns quinhentos metros quando vi que jogavam em minha direção pedregulhos quase me acertando as pernas. Logo depois ouvi um assobio longo e inconfundível saindo do meio das árvores e um grito me chamando, seguido de uma boa risada.
– Lucas! Espera por mim.
Era a Isabel com um saco de pedras na mão. Fiquei feliz por ela não ter ido ao passeio. Seguimos juntos até uma margem onde sabíamos que o rio era mais fundo. Nos encostamos numa rocha alta e eu joguei a linha. Meia hora depois, nenhum peixe no embornal, e a Isabel já estava impaciente.
Havia pedido para que não tagarelasse porque iria espantar os peixes.
– Que peixe? Não tem nenhum peixe aí. Ninguém vem mais pescar aqui porque os peixes sumiram, não sabia?
– Tem sim, acabei de ver um.
– Nem nadando a gente acha peixe aí. Olha só.
Fiz que ia empurrá-la na água segurando seus braços para que não caísse de verdade, mas as minhas mãos suadas a deixaram escapar. Então vi Isabel caindo na água e descendo para o fundo, como se fosse ao encontro dos peixes que ela dizia não existirem. Sempre ficava aflito quando ela entrava na água, porque eu ainda não sabia nadar.
Quando vi que não voltava comecei a gritar. No começo achei que era brincadeira para que eu me sentisse culpado. Fui andando pela margem, olhando se não estaria escondida pela vegetação da beira. Nada. Fiquei uns instantes sem ação. Meus olhos se encheram de lágrimas. Desejei que meu pai estivesse lá. Larguei tudo e saí correndo. Meu coração cheio de pavor e medo dos pais dela não conseguiam deter os meus passos velozes.
Depois tudo virou um caos. Uma pequena multidão foi até lá para ajudar. Mas, de verdade, a maioria ficou conversando, inventando histórias e criando versões sobre o que havia acontecido lá, a maior parte delas me colocava com culpado pelo sumiço.
Quando os homens cansaram de mergulhar, foram indo embora e fui no carro da polícia com o pai de Isabel e os soldados.
O interrogatório entrou pela noite, e só me liberaram quando meu tio chegou lá com um advogado. Sair da delegacia, finalmente, não me trouxe nenhum alívio. O desaparecimento de Isabel pesava sobre a minha cabeça como uma acusação. Ficava vendo Isabel escapar dos meus dedos repetidamente.
Naquela madrugada eu só consegui cerrar os olhos quando os primeiros raios atravessavam as frestas entre as venezianas da janela.
A escola deu alguns dias de folga, como se fosse um luto sem corpo. Eu ficava cismando, olhando para o caminho vazio enquanto o sol fazia sua trajetória na paisagem. No sétimo dia acordei com vozes altas que vinham da sala. Segui para lá de pijama mesmo. A mãe de Isabel chorava agarrada à minha mãe, mas também sorria. Tive certeza naquele momento que minha amiga havia voltado.
No horário de visitas eu e mamãe pudemos vê-la. Estava pálida e não se movia. Olhamos apenas pelo vidro da porta. De súbito ela se virou para nós e sorriu. Os olhos estavam completamente vermelhos, assustadores. Senti uma mão tocando no meu ombro e tive um susto. Mas era apenas o médico chegando para avaliar a paciente.
– Vai passar. Não se preocupe. Parece que a água do ribeirão estava contaminada por algum produto. Mandamos para análise.
Não tive mais vontade de fazer visitas no hospital. Esperei até que voltasse para casa. A mãe dela avisou e fomos. Havia um bolo e uma garrafa grande de refrigerante para nos receber. Outras pessoas já haviam estado lá, o bolo estava pela metade e não havia mais café. Relutei um pouco mas fui até o quarto de Isabel. A primeira coisa que senti foi o cheiro. O quarto estava muito limpo, mas, ao fundo conseguia sentir umas notas aromáticas diferentes, um bafio se insinuando entre o perfume de limpeza, desinfetante e o cheiro de jasmim vindo dos lençóis recentemente engomados.
Isabel estava na cama, esperando por nós. Assim que entramos percebi uma espécie de mancha prateada em uma de suas coxas, que ela rapidamente cobriu com um lençol. Os olhos haviam adquirido um brilho esverdeado que lhe dava um ar sobrenatural. Sentei-me numa cadeira, mamãe só fez algumas perguntas e se retirou. Quando ficamos a sós, ela me falou que havia encontrado uma abertura no meio das rochas da outra margem, e que do outro lado era uma gruta com paredes brilhantes.
– E o que você ficou fazendo lá?
Isabel calou-se um pouco e ficou olhando para o bordado do tecido da cortina. Depois de um tempo em que pensei que a conversa já havia terminado, ela se voltou para mim e respondeu sem muita convicção.
– Não lembro…
– Não acredito nisso, Isabel.
– Se eu contasse o que vi, e quem eu vi, você também não acreditaria. – Disse isso e pediu que eu fosse.
Dei a visita por encerrada. Levantei-me, me despedi e saí do quarto procurando pela minha mãe que naquele momento estava fazendo um embrulhinho com um pedaço de bolo que iria levar para a Bá.
Enquanto caminhávamos de volta para casa, minha mãe perguntou se a minha amiga estava bem. Acho que a frustração que eu sentia acabou respondendo por mim.
– Está bem o suficiente para contar mentiras.
Depois daquele dia acabei me afastando um pouco de Isabel, em parte porque ela parecia outra pessoa, e, também, porque me sentia excluído da sua nova vida.
Tudo estava diferente. Isabel havia virado uma espécie de celebridade local. Repórteres vieram fazer uma matéria com ela, e o laudo sobre a água do ribeirão informando que haviam encontrado vestígios de uma substância desconhecida pela ciência, ajudava a tornar o incidente ainda mais instigante. No fim das contas o que fazia minha amiga estar no centro das atenções era aquele brilho verde espectral adquirido depois do acidente, que faziam com que ela ficasse com um aspecto de fada alienígena ou sei lá o quê. As pessoas, o canal de tv, até alguns religiosos vinham apenas ver aquele fenômeno, cada um com a sua explicação.
Eu me sentia de fora de tudo, traído por ela ter virado o centro das atenções, e não ser mais a minha Isabel. Decerto que ela não havia se afastado de mim, e nem tinha culpa alguma de ter virado a principal atração da cidade. Eu podia ver, nas poucas vezes que ela aparecia na janela ou no quintal, o quanto parecia estar triste com aquele assédio diário. Muitas vezes eu inventava de aguar a grama só para ficar observando o movimento na casa dela. Numa destas vezes vi uma ambulância parando na porta da casa e Isabel saindo em uma maca. Por recomendação médica as entrevistas e as visitas foram proibidas.
Pouco se sabia de Isabel, apenas que ela piorava gradativamente. Na escola a sua cadeira vazia era uma testemunha da nossa impotência diante dos fatos. Nesse meio tempo meu pai mandou uma carta do Chile falando que estava bem e que queria que nós fôssemos para lá. Em outros tempos isso me deixaria feliz, mas com o estado de Isabel eu não me animava para ir embora.
Um dia eu vi a mesma ambulância trazendo minha amiga de volta. Senti que aquilo não era uma boa notícia. Queria muito estar errado, mas a volta dela significava apenas que a medicina não tinha nada mais a fazer.
A casa estava cada vez mais silenciosa. Ninguém cuidava do jardim, ou varria a calçada. A Bá ia lá todos os dias para levar comida. Acho que se ela não levasse, morreriam todos de fome, ou de tristeza. Evitava a todo custo pensar em Isabel, mas a intuição indicava que se quisesse me despedir dela era melhor encarar este momento tão desagradável.
Ainda nem havia chegado ao começo da cerca quando fui atingido pelo cheiro. Era um odor ácido e agressivo, um cheiro quente que me dava uma imediata vontade de vomitar. Entrei silenciosamente e fui andando para o quarto de Isabel. Ela estava na cama enquanto a sua mãe passava uma espécie de pomada naquilo que seriam as suas pernas. Digo isso porque as pernas dela estavam recobertas por uma camada de pele prateada que lembrava escamas. Era de lá que vinha o fedor de apodrecimento que impregnava aquela casa.
Isabel olhou para mim, horrorizada, flagrada naquele momento íntimo e asqueroso simultaneamente. Seus olhos agora estavam mais para arredondados e as pálpebras haviam se retraído. Sorriu para mim com os lábios entumecidos e vi uma lágrima descendo pelo seu rosto estreito e pontudo. Estava irreconhecível, mas eu jamais a confundiria com qualquer outra garota do universo. Ainda era a minha Isabel.
Pedi para que ficássemos sozinhos. O que ela tentava falar, eu já não conseguia compreender. Então ela pegou em minha mão e fez um gesto para que eu fechasse os olhos. Uma tela se abriu em minha cabeça, e eu pude ver o que ela havia visto no tempo que estivera na caverna. As criaturas, a cidade que havia sob a rocha, e um pedido de que precisava ser colocada na água para que pudesse sobreviver. Prometi que falaria com a mãe dela, até tentei, mas a mulher falou que a filha havia sido vítima de mutações genéticas provocadas pela substância na água, e que isso lhe provocava alucinações. Tentei argumentar que também tinha visto, e a mulher falou que era melhor não andar mais lá, pois não sabia até que ponto aquilo poderia ser perigoso para mim.
Ao passar pela porta do quarto de Isabel ainda pude distingui-la mexendo os lábios grossos para dizer “por favor, me ajude”.
Fui para casa desnorteado. Mamãe só falava em nossa viagem para encontrar meu pai, e se eu contasse para ela tudo o que havia acontecido, ela iria colocar a Bá no meu encalço, e eu não conseguiria mesmo fazer nada.
Descobri o dia em que iríamos viajar, e a partir desta informação, tracei o passo a passo do plano. Estava morrendo de medo e achando que ia dar merda, mas eu devia isso a ela. Mais cedo naquele dia havia conseguido um carrinho de mão da obra do chafariz que estavam colocando para os sitiantes do meu distrito, ficava pertinho. Como era um domingo, eu sabia que ninguém estaria trabalhando e que a mãe de Isabel iria à missa. Só não sabia ainda o que faria com o pai. Na hora eu pensaria em algo.
Esperei que a mulher saísse e fui caminhando com o carrinho até a casa dela. O isolamento de nossas casas me ajudava, nunca mais aparecera ninguém por lá desde que acharam outra bizarrice para noticiar.
Esperei que o pai fosse ao banheiro e entrei. Era fácil localizar onde ela estava pelo terrível cheiro que se intensificava com a sua proximidade. Tentei pegá-la no colo, mas a pele era escorregadia e apesar de ter perdido muito peso, Isabel era maior que eu, não consegui sequer removê-la da cama. Já dava tudo por perdido quando alguém chegou atrás de mim e tocou no meu ombro. Era o pai de Isabel.
A chegada do Sr. Cláudio foi o fim das minhas esperanças. Mal comecei a me desculpar e o homem foi logo dando ordens.
– Sai daí, garoto, deixa que eu levo a minha filha para o carro.
Passei alguns segundos para entender o que estava rolando, saí atrás do homem que carregava a filha para uma variant azul do chefe dele. Fui com Isabel na parte de trás porque ela já não conseguia mais se segurar. Ela se encostou em mim roçando em meu rosto os longos cabelos castanhos, o resto de humanidade que havia sobrado naquela estranha cabeça.
Seguimos até o rio onde tudo havia começado. Quando chegamos ao ponto onde ela havia caído, houve uma agitação na superfície, e formas começaram a aparecer na água brilhante, sob a ação do sol tardio que no crepúsculo se findava. Descemos as pedras com cuidado e a colocamos na água. Seu corpo foi envolvido e suavemente carregado para a profundidade enquanto ela buscava nossos rostos com os olhos cheios de lágrimas que se misturavam com a água que a tirava para sempre de nós.
Voltei calado enquanto seu pai tentava me consolar dizendo que tínhamos salvo Isabel. Tudo o que eu pensava, no entanto, era no beijo surpreendentemente doce e fresco que ela deu nos meus lábios no banco de trás do carro. O beijo que eu havia prometido a mim mesmo quando tivéssemos idade para casar.
O tempo passou, fui morar no Chile e outras garotas passaram pela minha vida. Casei, tive um filho que se chamava Luiz, como o meu pai, e fui feliz o quanto pude. Nunca pensei em voltar para a pequena cidade onde encontrei e deixei partir o grande amor de minha vida, até o dia em que minha esposa trouxe nosso bebê e mostrou um estranho sinal que havia aparecido em sua perna. Um sinal prateado, brilhante e triangular como uma pequena escama de peixe.
– Vamos lá, Lucas! Conte de novo. Onde vocês dois estavam?
Era uma resposta difícil de dar, porque na última vez que eu a havia visto, Isabel estava alguns metros abaixo da superfície da água e depois simplesmente sumiu. Fiquei aguardando por uns dois minutos enquanto as minhas esperanças se afogavam junto com ela, e gritando o seu nome, mas minha amiga não retornou. Corri para a casa onde morava e avisei ao seu pai. Em pouco tempo ele e outras pessoas mergulhavam no ribeirão e procuravam pelas margens sem encontrar Isabel.
No meio daquela gritaria eu me desligava e só ouvia um zumbido agudo que abafava todas as vozes ao redor. Quando a polícia chegou eu fui levado junto com o pai da menina, e umas outras pessoas foram buscar minha mãe.
Durante o trajeto ia pensando naquele ano incomum e em tudo o que nos levara até aquele exato momento de completa estranheza e solidão.
A vida para nós começou a mudar no primeiro dia do ano. Estava quase completando onze anos de idade, levávamos uma vida absolutamente normal. Meu pai era professor, minha mãe tinha um salão de beleza. Morávamos em uma casa confortável e tínhamos uma rotina perfeita até o dia em que papai não apareceu em casa após o trabalho e tivemos que mudar nossas vidas completamente.
Como se estivessem esperando este evento a qualquer instante, mamãe e a Bá, andavam para um lado e para o outro, colocando coisas em malas e queimando papéis na chama do fogão. Vi quando tiraram o fio do telefone da tomada e me mandaram ficar assistindo tv até ser chamado. A Bá me deu um pacote de biscoito de chocolate com leite. Elas achavam que não, mas eu sabia exatamente o que estava acontecendo e o motivo. Não tinha exato conhecimento dos fatos, mas lembrava que as reuniões que papai participava não eram sobre poesia inglesa, e que o grupo dele era de resistência ao governo.
No dia seguinte saímos como fugitivos, pegando os objetos mais importante e partindo sem avisar aos vizinhos. Mamãe falou que não deveria comentar com ninguém sobre a nossa partida. Não perguntei o motivo. Dormi a maior parte da viagem, estendido no banco de trás do carro. Quando acordei a cidade já havia sumido e a estrada era uma sequência tediosa de árvores e postes se sucedendo.
Afinal, chegamos a um sítio de um amigo dos meus pais. Havia lá uma casinha triste e coberta de poeira, encravada num terreno parcamente arborizado, sem luxo, ou balanços, ou vizinhança alegre para distrair. No fim da estradinha se via apenas uma outra casa, menor ainda que a nossa. Na frente dela, quebrando a monotonia do branco amarelado das paredes, um jardinzinho caprichosamente cuidado. E nada mais.
Nossos vizinhos tinham uma filha um pouco mais velha que eu, e como éramos as únicas crianças em toda aquela vastidão monótona, logo nos tornamos os melhores amigos. Foi com ela que aprendi a derrubar frutas das árvores usando pedras, onde passava o ônibus para a escola, e os melhores esconderijos para escapar das brincadeiras pesadas dos meninos mais velhos que nós.
Vivíamos o dia a dia criativo da infância sem grana, e éramos felizes naquela ilusão de paraíso.
Isabel era tudo para mim. Meu alento, minha musa, a minha melhor companhia e, sobretudo, a minha inspiração para fazer as coisas mais insensatas naqueles tempos sombrios da década de setenta.
Estávamos sempre metidos em encrencas. Uma vez peguei a Bá se queixando da Isabel para a mamãe. Falando que ela era má influência. Por causa de uma travessura que fizemos juntos fiquei de castigo e acabei perdendo um passeio organizado pela escola, pelo qual esperávamos há semanas.
Pensei que o dia estava perdido e saí escondido, pelo caminho da vereda, para o ribeirão. Já havia andado uns quinhentos metros quando vi que jogavam em minha direção pedregulhos quase me acertando as pernas. Logo depois ouvi um assobio longo e inconfundível saindo do meio das árvores e um grito me chamando, seguido de uma boa risada.
– Lucas! Espera por mim.
Era a Isabel com um saco de pedras na mão. Fiquei feliz por ela não ter ido ao passeio. Seguimos juntos até uma margem onde sabíamos que o rio era mais fundo. Nos encostamos numa rocha alta e eu joguei a linha. Meia hora depois, nenhum peixe no embornal, e a Isabel já estava impaciente.
Havia pedido para que não tagarelasse porque iria espantar os peixes.
– Que peixe? Não tem nenhum peixe aí. Ninguém vem mais pescar aqui porque os peixes sumiram, não sabia?
– Tem sim, acabei de ver um.
– Nem nadando a gente acha peixe aí. Olha só.
Fiz que ia empurrá-la na água segurando seus braços para que não caísse de verdade, mas as minhas mãos suadas a deixaram escapar. Então vi Isabel caindo na água e descendo para o fundo, como se fosse ao encontro dos peixes que ela dizia não existirem. Sempre ficava aflito quando ela entrava na água, porque eu ainda não sabia nadar.
Quando vi que não voltava comecei a gritar. No começo achei que era brincadeira para que eu me sentisse culpado. Fui andando pela margem, olhando se não estaria escondida pela vegetação da beira. Nada. Fiquei uns instantes sem ação. Meus olhos se encheram de lágrimas. Desejei que meu pai estivesse lá. Larguei tudo e saí correndo. Meu coração cheio de pavor e medo dos pais dela não conseguiam deter os meus passos velozes.
Depois tudo virou um caos. Uma pequena multidão foi até lá para ajudar. Mas, de verdade, a maioria ficou conversando, inventando histórias e criando versões sobre o que havia acontecido lá, a maior parte delas me colocava com culpado pelo sumiço.
Quando os homens cansaram de mergulhar, foram indo embora e fui no carro da polícia com o pai de Isabel e os soldados.
O interrogatório entrou pela noite, e só me liberaram quando meu tio chegou lá com um advogado. Sair da delegacia, finalmente, não me trouxe nenhum alívio. O desaparecimento de Isabel pesava sobre a minha cabeça como uma acusação. Ficava vendo Isabel escapar dos meus dedos repetidamente.
Naquela madrugada eu só consegui cerrar os olhos quando os primeiros raios atravessavam as frestas entre as venezianas da janela.
A escola deu alguns dias de folga, como se fosse um luto sem corpo. Eu ficava cismando, olhando para o caminho vazio enquanto o sol fazia sua trajetória na paisagem. No sétimo dia acordei com vozes altas que vinham da sala. Segui para lá de pijama mesmo. A mãe de Isabel chorava agarrada à minha mãe, mas também sorria. Tive certeza naquele momento que minha amiga havia voltado.
No horário de visitas eu e mamãe pudemos vê-la. Estava pálida e não se movia. Olhamos apenas pelo vidro da porta. De súbito ela se virou para nós e sorriu. Os olhos estavam completamente vermelhos, assustadores. Senti uma mão tocando no meu ombro e tive um susto. Mas era apenas o médico chegando para avaliar a paciente.
– Vai passar. Não se preocupe. Parece que a água do ribeirão estava contaminada por algum produto. Mandamos para análise.
Não tive mais vontade de fazer visitas no hospital. Esperei até que voltasse para casa. A mãe dela avisou e fomos. Havia um bolo e uma garrafa grande de refrigerante para nos receber. Outras pessoas já haviam estado lá, o bolo estava pela metade e não havia mais café. Relutei um pouco mas fui até o quarto de Isabel. A primeira coisa que senti foi o cheiro. O quarto estava muito limpo, mas, ao fundo conseguia sentir umas notas aromáticas diferentes, um bafio se insinuando entre o perfume de limpeza, desinfetante e o cheiro de jasmim vindo dos lençóis recentemente engomados.
Isabel estava na cama, esperando por nós. Assim que entramos percebi uma espécie de mancha prateada em uma de suas coxas, que ela rapidamente cobriu com um lençol. Os olhos haviam adquirido um brilho esverdeado que lhe dava um ar sobrenatural. Sentei-me numa cadeira, mamãe só fez algumas perguntas e se retirou. Quando ficamos a sós, ela me falou que havia encontrado uma abertura no meio das rochas da outra margem, e que do outro lado era uma gruta com paredes brilhantes.
– E o que você ficou fazendo lá?
Isabel calou-se um pouco e ficou olhando para o bordado do tecido da cortina. Depois de um tempo em que pensei que a conversa já havia terminado, ela se voltou para mim e respondeu sem muita convicção.
– Não lembro…
– Não acredito nisso, Isabel.
– Se eu contasse o que vi, e quem eu vi, você também não acreditaria. – Disse isso e pediu que eu fosse.
Dei a visita por encerrada. Levantei-me, me despedi e saí do quarto procurando pela minha mãe que naquele momento estava fazendo um embrulhinho com um pedaço de bolo que iria levar para a Bá.
Enquanto caminhávamos de volta para casa, minha mãe perguntou se a minha amiga estava bem. Acho que a frustração que eu sentia acabou respondendo por mim.
– Está bem o suficiente para contar mentiras.
Depois daquele dia acabei me afastando um pouco de Isabel, em parte porque ela parecia outra pessoa, e, também, porque me sentia excluído da sua nova vida.
Tudo estava diferente. Isabel havia virado uma espécie de celebridade local. Repórteres vieram fazer uma matéria com ela, e o laudo sobre a água do ribeirão informando que haviam encontrado vestígios de uma substância desconhecida pela ciência, ajudava a tornar o incidente ainda mais instigante. No fim das contas o que fazia minha amiga estar no centro das atenções era aquele brilho verde espectral adquirido depois do acidente, que faziam com que ela ficasse com um aspecto de fada alienígena ou sei lá o quê. As pessoas, o canal de tv, até alguns religiosos vinham apenas ver aquele fenômeno, cada um com a sua explicação.
Eu me sentia de fora de tudo, traído por ela ter virado o centro das atenções, e não ser mais a minha Isabel. Decerto que ela não havia se afastado de mim, e nem tinha culpa alguma de ter virado a principal atração da cidade. Eu podia ver, nas poucas vezes que ela aparecia na janela ou no quintal, o quanto parecia estar triste com aquele assédio diário. Muitas vezes eu inventava de aguar a grama só para ficar observando o movimento na casa dela. Numa destas vezes vi uma ambulância parando na porta da casa e Isabel saindo em uma maca. Por recomendação médica as entrevistas e as visitas foram proibidas.
Pouco se sabia de Isabel, apenas que ela piorava gradativamente. Na escola a sua cadeira vazia era uma testemunha da nossa impotência diante dos fatos. Nesse meio tempo meu pai mandou uma carta do Chile falando que estava bem e que queria que nós fôssemos para lá. Em outros tempos isso me deixaria feliz, mas com o estado de Isabel eu não me animava para ir embora.
Um dia eu vi a mesma ambulância trazendo minha amiga de volta. Senti que aquilo não era uma boa notícia. Queria muito estar errado, mas a volta dela significava apenas que a medicina não tinha nada mais a fazer.
A casa estava cada vez mais silenciosa. Ninguém cuidava do jardim, ou varria a calçada. A Bá ia lá todos os dias para levar comida. Acho que se ela não levasse, morreriam todos de fome, ou de tristeza. Evitava a todo custo pensar em Isabel, mas a intuição indicava que se quisesse me despedir dela era melhor encarar este momento tão desagradável.
Ainda nem havia chegado ao começo da cerca quando fui atingido pelo cheiro. Era um odor ácido e agressivo, um cheiro quente que me dava uma imediata vontade de vomitar. Entrei silenciosamente e fui andando para o quarto de Isabel. Ela estava na cama enquanto a sua mãe passava uma espécie de pomada naquilo que seriam as suas pernas. Digo isso porque as pernas dela estavam recobertas por uma camada de pele prateada que lembrava escamas. Era de lá que vinha o fedor de apodrecimento que impregnava aquela casa.
Isabel olhou para mim, horrorizada, flagrada naquele momento íntimo e asqueroso simultaneamente. Seus olhos agora estavam mais para arredondados e as pálpebras haviam se retraído. Sorriu para mim com os lábios entumecidos e vi uma lágrima descendo pelo seu rosto estreito e pontudo. Estava irreconhecível, mas eu jamais a confundiria com qualquer outra garota do universo. Ainda era a minha Isabel.
Pedi para que ficássemos sozinhos. O que ela tentava falar, eu já não conseguia compreender. Então ela pegou em minha mão e fez um gesto para que eu fechasse os olhos. Uma tela se abriu em minha cabeça, e eu pude ver o que ela havia visto no tempo que estivera na caverna. As criaturas, a cidade que havia sob a rocha, e um pedido de que precisava ser colocada na água para que pudesse sobreviver. Prometi que falaria com a mãe dela, até tentei, mas a mulher falou que a filha havia sido vítima de mutações genéticas provocadas pela substância na água, e que isso lhe provocava alucinações. Tentei argumentar que também tinha visto, e a mulher falou que era melhor não andar mais lá, pois não sabia até que ponto aquilo poderia ser perigoso para mim.
Ao passar pela porta do quarto de Isabel ainda pude distingui-la mexendo os lábios grossos para dizer “por favor, me ajude”.
Fui para casa desnorteado. Mamãe só falava em nossa viagem para encontrar meu pai, e se eu contasse para ela tudo o que havia acontecido, ela iria colocar a Bá no meu encalço, e eu não conseguiria mesmo fazer nada.
Descobri o dia em que iríamos viajar, e a partir desta informação, tracei o passo a passo do plano. Estava morrendo de medo e achando que ia dar merda, mas eu devia isso a ela. Mais cedo naquele dia havia conseguido um carrinho de mão da obra do chafariz que estavam colocando para os sitiantes do meu distrito, ficava pertinho. Como era um domingo, eu sabia que ninguém estaria trabalhando e que a mãe de Isabel iria à missa. Só não sabia ainda o que faria com o pai. Na hora eu pensaria em algo.
Esperei que a mulher saísse e fui caminhando com o carrinho até a casa dela. O isolamento de nossas casas me ajudava, nunca mais aparecera ninguém por lá desde que acharam outra bizarrice para noticiar.
Esperei que o pai fosse ao banheiro e entrei. Era fácil localizar onde ela estava pelo terrível cheiro que se intensificava com a sua proximidade. Tentei pegá-la no colo, mas a pele era escorregadia e apesar de ter perdido muito peso, Isabel era maior que eu, não consegui sequer removê-la da cama. Já dava tudo por perdido quando alguém chegou atrás de mim e tocou no meu ombro. Era o pai de Isabel.
A chegada do Sr. Cláudio foi o fim das minhas esperanças. Mal comecei a me desculpar e o homem foi logo dando ordens.
– Sai daí, garoto, deixa que eu levo a minha filha para o carro.
Passei alguns segundos para entender o que estava rolando, saí atrás do homem que carregava a filha para uma variant azul do chefe dele. Fui com Isabel na parte de trás porque ela já não conseguia mais se segurar. Ela se encostou em mim roçando em meu rosto os longos cabelos castanhos, o resto de humanidade que havia sobrado naquela estranha cabeça.
Seguimos até o rio onde tudo havia começado. Quando chegamos ao ponto onde ela havia caído, houve uma agitação na superfície, e formas começaram a aparecer na água brilhante, sob a ação do sol tardio que no crepúsculo se findava. Descemos as pedras com cuidado e a colocamos na água. Seu corpo foi envolvido e suavemente carregado para a profundidade enquanto ela buscava nossos rostos com os olhos cheios de lágrimas que se misturavam com a água que a tirava para sempre de nós.
Voltei calado enquanto seu pai tentava me consolar dizendo que tínhamos salvo Isabel. Tudo o que eu pensava, no entanto, era no beijo surpreendentemente doce e fresco que ela deu nos meus lábios no banco de trás do carro. O beijo que eu havia prometido a mim mesmo quando tivéssemos idade para casar.
O tempo passou, fui morar no Chile e outras garotas passaram pela minha vida. Casei, tive um filho que se chamava Luiz, como o meu pai, e fui feliz o quanto pude. Nunca pensei em voltar para a pequena cidade onde encontrei e deixei partir o grande amor de minha vida, até o dia em que minha esposa trouxe nosso bebê e mostrou um estranho sinal que havia aparecido em sua perna. Um sinal prateado, brilhante e triangular como uma pequena escama de peixe.