LIQUEFEITO
"Da terceira vez não vi mais nada
Os céus se misturaram com a terra
E o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas."
Manuel Bandeira, poema Teresa.
Pai era forte e me criou para ser como ele: firme como uma rocha. Sempre dissera que a vida era difícil, mas homem de verdade não chora, nem fica no chão, do contrário, virava tapete para os outros passarem. Como eu era filho único, depositara todo seu ensinamento e suas expectativas de envergadura moral em mim.
Tentei.
Cheguei do trabalho cansado. Tomei um banho e por um instante a água estava gostosa, deliciosa. Um abraço constante e voluptuoso de chuva morna. Eu poderia dançar naquele gotejar contínuo de excitação. Ao me secar que vi algo estranho. Uma parte da toalha estava muito úmida. Havia um filete em formato de uma letra i. Somente quando fui para o computador que percebi.
Meu dedo anelar da mão esquerda virou água.
Terminei o noivado. O casamento com Quezia seria dentro de duas semanas. De repente, uma briga feia. Palavrões saíram sem querer. Verdades foram jogadas na cara. Outras foram inventadas. Deboche, ironias, gritos. Erros não corrigidos. Esforços egoístas.
Acabou. A aliança seria usada naquele dedo. Eu a amava. Quezia era linda. Única. Seu riso, olhar, jeito de falar com raiva ou contando uma piada interna perto de outras pessoas onde só nós ríamos. Éramos mais que um casal; amigos íntimos.
“A gente supera”, disse eu. “Bola pra frente”.
Era estranho ficar sem um dedo. Toda ausência é incômoda.
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O dia da colação de grau foi radiante. Após anos de sofrimento concluí o curso e iria procurar emprego na área.
"Chega de bronca de professor universitário metido a "deus". Chega de trabalhos intermináveis. Chega de pagar parcelas que só aumentavam e ter um péssimo atendimento para resolver qualquer problema ao telefonar."
A turma marcou de tomar uma próximo à faculdade. Seria uma despedida. Fui com eles. Não vi uma das componentes do meu grupo, a Tânia. Ela nunca foi de beber. Nem eu. Era provavelmente a última vez que a classe estaria reunida. Depois que os estudos acabam, raros são os que permanecem.
Bebi pouco. Estava sem vontade. Pedi um salgado e derrubei mostarda nas calças. Fiquei tentando limpar com um guardanapo.
Jogamos conversa fora. Contamos piadas. Relembramos os velhos tempos que nem eram tão velhos assim. Ninguém reparou que me faltava um dedo. Escondi bem.
Em casa tirei as calças. Um cheiro podre de mostarda azeda exalava da mancha. Fui colocar a roupa de molho para depois pôr na máquina. Minha mãe ensinou assim.
Era tão bom pôr as mãos na água. Sentir o sabão em pó como esfoliante. Retirei as mãos. Faltava o polegar direito.
"Merda!" Só pude gritar isso.
Vi uma coisa viscosa no balde em que estava as calças. Parecia que um jato curto de detergente neutro fora esguichado ali. Uma pequena mancha aquosa nadava entre a água azulada pelo sabão.
Lembrei que essa amiga de sala estava brigada comigo. Sempre nos cumprimentávamos com uma batidinha de mão aberta, depois de punho fechado e por último enroscávamos os polegares. Tinha a unha grande e torta, como um nariz de bruxa. Cometi uma mancada com essa moça e a chamei de incompetente por pura imaturidade de não aceitar sua bronca. Não fiz minha parte no trabalho final. Tânia completou tudo e depois bloqueou meu número. A gente conversava sobre filmes e fofocávamos sobre os alunos "palestrinhas" da classe que faziam comentários na hora da aula para parecerem inteligentes. Gostava muito dela. Era uma grande amiga. Que vacilo! Fiquei com vergonha de pedir desculpas. Vida que segue.
"Vai ser difícil urinar sem o polegar."
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Coisas de casa para consertar eram um saco. Fiação elétrica. Geladeira. Televisão. Tudo isso eu pagava para outro fazer. Quem conseguiria comprar um carro desse jeito se quando o dinheiro cai tudo quebra? Pareciam bebês pedindo atenção.
Agora sem um dedo em cada mão era mais difícil de fazer algumas coisas. Segurar um garfo, por exemplo. O estranho era que bastava tomar um banho que podia sentir eles de volta. Mexendo. Vivos. Sem carne.
Despi toda a roupa e fui para debaixo do chuveiro. A água deslizava sobre meu corpo. Acariciava sensualmente cada parte. A pele se revestia de uma armadura que limpava e hidratava. Ali, no lugar mais íntimo da casa, ninguém poderia invadir. Não estava no filme Psicose. Tudo ficaria bem.
Fazia dias que estava com muita caspa. Qualquer passada de mão pelos cabelos e chovia escamas brancas da minha cabeça. Contudo, esqueci de comprar shampoo. Esfreguei com o sabonete mesmo. Sentia o couro cabeludo sensivelmente cuidado, embora com o produto errado. "Que se dane!" disse eu.
Saí do banho e olhei no espelho. Estava careca. Mais do que isso. Parte da pele da minha cabeça fora arrancada. Não senti dor nenhuma.
Era possível ver a parte amarela e ossuda do crânio. Brinquei de "toc toc" com a capa que revestia o cérebro. Nunca imaginei que poderia ver um osso tão de perto. Era áspero. No azulejo do banheiro algo borbulhava perto dos furos do ralo. Uma espécie de membrana, como clara de ovo, cheia de cabelos curtos, pretos e alguns brancos.
"Então fui escalpelado.” Ri.
Emprestei dinheiro para um parente. Um tio. Não estava em situação financeira muito boa, ainda assim, concedi a quantia. Sem estipular prazo confiei em sua honestidade.
O tempo passou e ele sequer deu notícias. Deixei para lá.
Meses depois, fui assaltado numa saidinha de banco. Os miseráveis me seguiram e pegaram todo o salário do mês. Estava contado. Fiquei apertado e o cartão estava estourado. Não consegui pagar e a empresa de cobrança era irredutível comigo. Dizia querer negociar, só que em valores enormes por causa dos juros altíssimos. Era uma espécie de assalto educado. Não podia perder o cartão. Era o escape em horas de crise financeira.
Liguei para esse parente durante uma semana. Caixa postal. Mandei mensagem no Whatsapp. Ele deve ter bloqueado a última visualização e também a notificação azul que confirmava que olhara o que enviei.
O banco só deu trinta dias para suprir o saldo do cartão, caso contrário, ele seria cancelado. Seria uma lástima. Como faria as compras do mês?
Fui até a casa desse tio. Nunca estava. Desgraçado. Falaram que tivera um problema de saúde grave e comprara muitos remédios caros. Fiquei preocupado e com dó. Pedi ajuda para meu pai com algumas dívidas. E ele ajudou como sempre fazia; falando muitas e boas:
"Sempre falei: não empresta dinheiro para esse safado. Aquilo é pilantra. Faz cara de coitado, mas depois te lasca todo e tu fica aí, na merda. Está pensando que o mundo tem dó? E tu e Deus, meu filho. A vida bate e a gente revida vencendo."
Só não passei fome naquele mês porque meu velho liberou uma grana; pude pagar algumas contas e "abastecer" o armário e a geladeira. Fiquei uma semana comendo só ovo e arroz.
Perdi o cartão. Sujei o nome.
Recentemente, ao entrar no Facebook, dei de cara com uma postagem de uma equipe de turismo que eu seguia. Arraial do Cabo. Lindo e caro. O tio estava lá. Com a saúde perfeita. Essa foto não estava no perfil dele.
Deixei para lá. Já foi. Bloqueei ele. Comprei um boné. Pelo menos não gastaria mais com cabeleireiro.
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Fui ao médico recentemente. Fiz uma bateria de exames. Ele não deu falta dos dois dedos.
"Senhor… infelizmente..." disse pausadamente de cabeça baixa.
Fui diagnosticado com uma doença em estágio avançado que causaria minha invalidez, paralisando alguns dos meus movimentos. Uma que lembra um signo ou uma constelação. Havia um signo de estrelas crescendo em minha coluna e chegava a medula. Como? Não sei. Mistério do ser humano e suas mazelas. "E o corpo ainda é pouco" cantavam os Titãs.
Se a enfermidade se chamasse "Touro" ou "Peixes" soaria mais terrível. "Lamento informar, mas o senhor sofre de touro". Câncer só soa estranho. O pai encarou uma doença semelhante e sobreviveu. Ele me queria homem. E homens são fortes e solitários.
Sem ninguém, tive consolo numa bela ducha. Aquilo preenchia um vazio. Não estava sujo. Só quis ficar lá. Senti meus cabelos outra vez. Pareciam maiores.
Ao desligar o chuveiro senti que estava encolhendo. Caí no chão molhado, mas não foi um escorregão. Foi uma queda veloz.
Estava sem as duas pernas.
Não havia sangue. Era apenas a ausência das minhas duas pernas, direita e esquerda. Quase como ser só um cotoco da cintura para baixo.
"E se…"
Estiquei a mão para alcançar o registro. Girei. Água em fios prateados e quentes fluíram dos poros do chuveiro Lorenzetti. Segundos depois me levantei. As pernas reapareceram. Sem pele, músculos ou pêlos. Era aquática. Úmida. Parecia efeito especial aquela bosta.
Comecei a deixar toalhas molhadas enroladas em minhas canelas. A noite dormia com os pés dentro de um balde ou bacia com água. Mas era difícil se manter imovel durante o sono, então o quarto amanhecia todo molhado por ter derrubado o local que mantinham minhas pernas existentes. Teria que voltar me arrastando.
Repassei o resultado do exame para o patrão. Ele entendeu e lamentou. Fui afastado. Disse que se precisasse, estaria por lá. De fato, ele lá e eu cá. Por sorte estava bem. Tinha tudo. Dava para me virar.
Acostumei a ficar sem abrir a janela. Nem a porta. Tranquei-me num mundo de quatro paredes vivendo de Ifood. O bom era que só pagava com o cartão. A toalha molhada não sustentava por muito tempo do lado de fora, então sempre que precisava ir até o portão receber a comida, enrolava três toalhas encharcadas. Uma em cada perna e uma cobrindo a cintura para parecer que acabara de sair do banho. Os entregadores nunca entendiam nada. Eu ria.
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Era muito requisitado na empresa. Tinha boa fama. Os clientes novos acostumavam rápido comigo. Alguns colegas chegaram a invejar e nunca gostei disso. Para mim, todos eram importantes naquilo que faziam. Até que o chefe colocou uma moça em meu lugar. Competente, esforçada. Tinha menos experiência.
Alguém fazia melhor que eu. E eu? Não servia mais para nada.
Colegas do trabalho mandavam mensagem perguntando se estava tudo bem e sobre o tratamento da doença que eles sequer gostavam de falar o nome. Como o paciente era eu, falava naturalmente com eles: "O câncer vai bem, obrigado. E sua irmã?"
A empresa teve um “upgrade” e colocaram a moça como chefe de um setor. Nunca fizeram isso comigo em todos os anos de serviço. Ela fora indicada por um amigo chegado e conseguira destaque em pouco tempo. Não a culpo. Merecia a promoção. Embora, não tanto quanto eu.
Pararam de falar de mim. Nas primeiras semanas fui o assunto principal do setor. Depois, o tema foi a novata. A inveja deles agora foi direcionada a ela. A minha também.
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Ablutomania. O termo que davam para vicio em banho. Não me via assim. O corpo é setenta por cento líquido. O planeta é inundado por oceanos. Chuva, gelo, vapor. Suor. Tudo se dissolve nessa vida. Zygmunt Bauman e os caramba a quatro. Coisa de faculdade.
A sensação era boa. Embaixo do chuveiro nada é proibido ou censurado. Meu físico não é avaliado. A água não tem preconceito com formas.
Na quietude condensada pela luz que refletia nos azulejos umidecidos, o chiado do chuveiro elétrico e o crepitar das gotas que caíam, um mundo paralelo se abria; de dentro para fora. A imaginação vai e volta. Como as lembranças. Ali tudo pode ser esquecido, feito a água que se vai.
Mas não conseguia esquecer.
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Minha orelha estava queimando uma noite dessas. Queimava demais. Ardia que doía o ouvido. Nunca fui supersticioso, mas estava "com a bubônica" como diria meu pai.
Lavei ela na pia do banheiro. Não ouvi mais nada.
Em minha cabeça dos buracos, feito mordidas de um monstro que arrancara minhas duas orelhas. Parecia uma maçã toda comida onde só resta a parte do meio e a superfície de cima e de baixo.
Nada mais ouvia. Na pia, duas orelhas, translúcidas, moles, boiavam.
Com o tempo fui acostumando com o silêncio. Considerava um alívio não ouvir falarem bem de algumas pessoas e não escutar besteiras nem música ruim. Meu pai nos ensinou a se virar. Sempre tem um jeito.
Faria os ritmos com os dedos que sobraram.
"Música está aqui, ó. Na cabeça".
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Eu quase morava no banheiro. Perdi as contas de quantos banhos tomava. Pele inchada feito pele de velho. Porém, amava estar lá.
Era mais que higiene. E sim uma necessidade de se recompor. Tornara-se meu ritual de purificação. Meu culto de restauração. Meu posto de gasolina. Ali minha vida fluía. As partes do corpo voltavam, ainda que em forma líquida. Podia ouvir o estralejo das gotas que tombavam na epiderme lisa do que ainda não diluiu.
Ali não sentia fome. Nem sono. Nem dor. Nada doía. Nada do mundo externo atrapalhava aquele momento. Nem mesmo nenhuma merda que aconteceu ou que fiz. Apenas o ato entrar num transe de alívio e prazer entre o líquido puro e morno que aquecia meus ombros, desciam pelos bíceps, tríceps, invadiam as axilas, chegavam ao cotovelo, ao antebraço, ao pulso e as mãos. Era um tritão conquistando a Atlanta dos meus sonhos mais idiotas.
Antes de desligar o chuveiro, lembrei do trabalho. Costumava ser muito útil ali. Era o que eu sabia fazer. O que gostava de fazer. Com essa doença e o com as minhas funções entregues a outra pessoa, fui deixado de lado. Engrenagem que não gira mais é descartável.
Desliguei. Um braço caiu. Desmanchou, melhor dizendo. Foi como se um balde de cândida fosse jogado no chão.
"Splash!"
A conta de água estava vindo cara. Precisava dar um jeito. Mas qual?
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Soube ontem a noite que meu pai estava internado em estado grave. O hospital ligou. Ele sofreu um infarto e foi levado direto para UTI. Não está reagindo. Engoli uma saliva que grudou na garganta.
Era ele quem sempre me aconselhava e ensinou tudo que sei hoje. Falava que problemas não matam ninguém e que homens de verdade não choram feito meninas ou crianças. Que é possível vencer tudo e qualquer coisa nessa vida, que era dura só para quem fosse mole.
No entanto, essa notícia me fez duvidar. Por que ele não venceu o infarto? Por que não se levanta daquela cama de hospital? Por que nunca disse que homens… sentem dor?
"Vou tomar um banho. O último."
Era noite. Chovia forte. Abri o portão de casa me arrastando e pulando. Feito um zumbi que rasteja só com o tronco, um braço e a cabeça sem orelhas e partes laterais. O crânio à mostra. Não havia ninguém na rua. Que bom!
Estava com roupas que balançavam pesadamente nas partes vazias que faltavam. Semelhante aos bonecos de posto. A chuva me tocava. Ela é fria, igual a vida aqui fora. Pelo menos a do chuveiro é quente, como a vida em minha casa. Deixei tudo do jeito que estava e tranquei o portão.
Enquanto a chuva caía, sentia as gotas grossas, pesadas e rápidas baterem como pedras. Nesse instante, regenerei. Fiquei em pé. Braço, pernas, dedos, orelhas, cabelo, tudo feito de água, fluindo feito uma fonte. As roupas se ajeitaram no corpo e tremiam vagarosamente.
Levantei a cabeça e deixei a chuva me surrar. Abri os braços e sorri. O peito estava doendo. A pele do rosto caía feito papelão encharcado. O tronco começava a se dissolver.
Não sei como o pai ficará. Espero que melhore e saia do hospital. Quando a chuva parar, ela me levará por inteiro até um bueiro e cairei para sempre num córrego. Esquecido.
A chuva escorria no que restava do meu corpo, diluindo-me feito açúcar, como que arrancando uma pintura velha, deixando-a no chão. No lugar da carne e dos ossos ficava um pedaço aquoso suspenso preenchendo o vazio. Uma criatura de Poseidon. Estou me desfazendo, derramando, enfim. Eu e a água seríamos um só. Um pertenceria ao outro para sempre. Como num casamento, diferente do meu noivado com Quezia, ou das minhas amizades de faculdade, ou minha saúde ou emprego. Não. Ambos seríamos levados, banhando o mundo com nossa última gota de existência. Com o que éramos de verdade. Com o que eu era por dentro.
Enquanto liquefazia, uma tristeza… grande, profunda, caiu sobre mim.
"Pai... me perdoe. Não fui forte como o senhor."
Já diluído feito um gelo exposto ao calor, dissolvido e carregado pela torrente em direção à uma boca de lobo, minha língua finalmente sentiu o gosto daquele líquido em que me tornava. Não era água comum. Mas salgada, semelhante a água do mar.
Aquilo em mim era, o tempo todo... lágrimas.
"Como água me derramei..."
Salmos 22;14
"... Os meus gemidos se derramam,
como água."
Jó 3;24