- LIANA E O PEIXE -
 
Capítulo 1 – Casamento

Manhã sem chuva, igreja enfeitada, todos olhando para a porta enquanto o sacerdote sentenciava:

– Se alguém sabe de algo que possa impedir este casamento, diga agora ou se cale para sempre!
Liana olhou para trás e depois para o peixe vestido de fraque, sorrindo ao lado dela. O noivo pingava no tapete vermelho, enquanto uma aliança agigantada circulava a ponta mais fina da barbatana lateral. O pior mesmo era aquele cheiro enfezado de maresia com alga no sol que exalava das escamas brilhantes.
Ninguém apareceu para reclamar. Sorriu de volta para o futuro marido com carinho. As guelras saindo pela gola do fraque, vibravam de emoção. Ou talvez ele estivesse asfixiando.

Do púlpito, uma alpaca oficiava o ritual. Padre Manoel fazia o sermão com a boquinha miúda e cuspideira. Era até fofo com aquele pelo lanoso, como um carneirinho que crescera demais.

Para uma pessoa comum, todo aquele cenário de casamento seria uma coisa surreal, para Liana, no entanto, era a sua rotina desde os oito anos.

Capítulo 2 – Início

Nem sempre Liana havia vivido entre bichos. Tivera uma infância comum de qualquer criança, pelo menos era isso que o pai contava quando conversavam, mas o destino a havia preparado para coisas maiores e extraordinárias.

Liana recordava o dia em que os bichos entraram em sua vida e como esta mudança se operou. Foi depois de um longo período em que esteve inconsciente no hospital. Quando finalmente acordou, estava sem memória, deitada e imóvel em uma cama de ferro, com tubos que lhe entravam pelo nariz. Ao lado dela, sentado em uma poltrona de acompanhante, alguém se alegrava ao vê-la abrir os olhos.

Por causa da amnésia não lembrava como era o rosto do seu pai, mas no lugar de um homem adulto de quem deveria se recordar, o que ela viu foi um coelho gigante, peludo e branquinho lhe dando bom dia.

Tomou um susto enorme e começou a gritar. Logo o quarto estava tomado por enfermeiros e médicos com aquelas caras de animais variados, que falavam ao mesmo tempo e pediam ao coelho que saísse.

Demorou até que se acalmasse. Naquela semana começou a conversar com a “tia” Paula, uma doutora com cara de gato amarelo, que tinha a voz doce e fazia muitas perguntas. Aos poucos e com muito jeito, ela foi explicando para Liana que não precisava ficar com medo, que aquilo seria temporário, e que assim como a sua memória, a aparência real das pessoas também voltaria.

– Tenha paciência. Você aceita receber visitas do seu pai? Ele está com muita saudade.

No dia seguinte, ainda pela manhã, ele apareceu. Entrou e se sentou na beirada da cama. Então virou para a menina, sorriu com seus doces olhos vermelhos e tocou a sua mão com a patinha felpuda. Ficaram assim por um tempo enquanto o silêncio falava por eles.

– Estava com saudades do papai? – Perguntou com uma voz grave e carinhosa.

Liana queria falar que ele era um estranho para ela, nem mesmo a sua voz conseguia reconhecer, e aquela aparência exótica de coelho só piorava as coisas. Mas não disse nada.

Depois de uns minutos, o coelho se inclinou e deu um beijo em sua bochecha, fazendo cócegas com os bigodes finos. Antes que ele atravessasse a porta ela falou:

– Até logo, Senhor Coelho.

O tempo passou, saiu do hospital e foi para uma casa que nunca havia visto. Aos poucos foi se acostumando com tudo. Outros bichos foram entrando em sua vida. O processo era suave, e algumas vezes até divertido como quando descobriu que sua vizinha era uma agitada macaca vestida de vermelho.

Moravam ela e o coelho numa casa com cheiro de nova. Perguntava pelos parentes, pela mãe. O pai ficava calado, olhando a parede da sala. Um dia, respondeu.

– Não sei onde está sua mãe. Nem eu nem ela tínhamos irmãos, e seus avós já morreram. Aluguei esta casa para esquecer a tristeza.

Descobriu pelo pai que os dois haviam sobrevivido a um incêndio, e por isso a mudança para uma casa nova, numa cidade maior onde ela pudesse ser tratada em um hospital com mais recursos.

– Você inalou muita fumaça, um móvel caiu sobre o seu corpo e bateu na sua cabeça, por isso não lembra de nada. – Ele dizia.

Capítulo 3 – Os Desenhos

Acostumou-se a viver como se estivesse em uma selva urbana. Embora, a longo prazo, aquilo a deixasse infeliz. Os bichos falavam e agiam como seres humanos, porque de fato eram, menos para ela. Foi o que a psicóloga explicou. Frequentava a Dra. Paula semanalmente, as duas tentavam descobrir o motivo deste novo mecanismo cerebral.

– Como está se sentindo?
– Bem…

Dra. Paula tirou um bloco de papel da prateleira, e lápis coloridos em um copo de metal.

– Gosta de desenhar?
Sem falar nada a menina pegou o material e começou a desenhar uma sombra. Depois de terminar o tronco, os braços e a cabeça, fez uma cercadura retangular em torno do vulto negro. Então entregou para a psicóloga.

– O que é isso? – Mostrou a mulher indicando o contorno desenhado.
– A janela.
– De onde?
– Do meu quarto.
– Na sua casa?
– Quando durmo.
– Seu sonho?
-Sim.

– Você quer um presente?
– Quero.
– Olha isso. – Falou Dra. Paula entregando um embrulho com um bloco igual ao que ela havia desenhado, e um conjunto de lápis de cor.
– Para mim? Posso levar?
– Sim, mas tem que me prometer uma coisa. Quero que desenhe os seus sonhos ou lembranças e traga para mim, ok?

Durante toda uma semana Liana desenhou vacas, ursos, bonecas, sacolas, cadeiras, portas, mas nenhuma janela e nenhuma sombra. Tia Paula ficou feliz, propôs mais atividades artísticas e a menina foi se soltando. Até começou a brincar com as outras crianças, mas continuava a enxergar as pessoas como animais.

O pai de Liana ficava pensativo. Sentia pena da menina, mas já andava insatisfeito com o tratamento que parecia nunca sair do canto. Um dia foi chamado ao consultório. Dra. Paula o atendeu com entusiasmo, tinha um plano.

– Talvez fosse uma boa ideia voltar para a cidade de vocês. Buscar referências. Fisicamente a sua filha não tem nada. Tenho certeza que a cura desta condição está em resolver os traumas do passado.

O homem foi contra. Achou um desperdício, um erro. Falou que ia avivar as lembranças ruins e não ia fazer a filha melhorar. Na semana seguinte Liana não foi. Também faltou às outras. As sessões acabaram, mas os desenhos não.

Na escola os desenhos de Liana chamavam a atenção das outras crianças. Os traços eram precisos, havia um sombreamento eficiente, e quanto mais ela desenhava, mais realistas eles iam ficando. Fora isso era uma menina esquisita. Não gostava muito de se misturar com os coleguinhas, principalmente quando o assunto era namoro.

Muito cedo se tornara vegetariana pois não suportava ver animais sendo comidos por outros animais. Depois convenceu o pai a seguir sua dieta também.

Mesmo com todos tentando ajudar, a sua vida se tornara algo angustiante. Há anos não via outro rosto além do seu, e não conseguia lembrar dos rostos antes do acidente. Muitas vezes tinha problemas para distinguir os amigos entre outros animais da mesma espécie, se sentia profundamente só.

Os desenhos a levaram adiante, terminou arquitetura e seu desempenho abriu as portas para novos empreendimentos. Por esta época o pai havia adquirido um câncer na garganta, o que modificava a sua voz. Os efeitos da doença eram terríveis, mas a fala fraca e entrecortada do pai era o que mais a entristecia. A voz o diferenciava de todos os outros coelhos do mundo, aquela voz única que a embalara tantas noites enquanto ela chorava de frustração.

Capítulo 4 – O Peixe

Recebeu um convite para trabalhar em um escritório mas adiou até  a partida do pai. Foi o dia mais triste de sua vida. Agora estava realmente sozinha no mundo. Não havia conseguido se conectar a ninguém, e conhecer novas pessoas seria a chance de fazer amizades.

O povo do trabalho era muito simpático, eram três arquitetos contando com ela, uma administradora e um engenheiro: dois cachorros, uma coala que era a chefe, e um peixe. Trabalhavam com paisagismo em shoppings e praças. Nas sextas iam sempre ao mesmo bar que haviam descoberto durante um projeto num centro comercial próximo. Liana era convidada, mas recusava com delicadeza.

Já havia percebido o interesse do peixe e não estava em seus planos se envolver emocionalmente com quem quer que fosse.

Naquela sexta-feira, ao descer para o estacionamento, descobriu, com desgosto, que o motor do carro não estava funcionando. Então acionou o seguro e eles vieram com um reboque. Já ia chamar um táxi quando os amigos a chamaram para ir com eles ao bar. Seria rápido e de lá a deixariam em casa.

Achou tão agradável que começou a repetir a saída sempre, e assim, a cada rodada de coquetéis com os amigos, ia ficando cada vez mais à vontade e quando deu por si estava noiva do peixe.

A vida solitária que levava foi um estímulo para estreitar as relações com o rapaz e sua família. A amizade virar um namoro foi um processo quase natural, considerando as diferenças entre os dois.

Naquele dia na igreja, prestes a casar, refletia sobre tudo o que a levara até aquele momento. Gostava do engenheiro, mas as dúvidas apareceram quando a data começou a se aproximar. Só chegou à conclusão que aquilo era uma  grande loucura quando chegou ao altar. Não ia conseguir viver com um peixe, ter intimidade e filhos com ele. Conseguira evitar maiores contatos durante namoro e noivado, mas após o casamento isso seria inevitável.

Olhou uma última vez para o seu noivo enquanto ele dizia um confiante “sim” e afinal falou:

– Sinto muito! Por favor, me perdoe.

Diante do espanto de toda a plateia, caminhou quase correndo até a porta da igreja e deixou o caos e a culpa atrás de si. Pegou um uber e voltou para casa apenas para trocar o vestido e para pegar as suas coisas, colocar em uma mala e deixar para trás tudo o que vivera até então.

Já estava com tudo pronto, mas não conseguia encontrar a chave do seu carro. Vasculhou nos armários da sala, da cozinha, nada. Lembrou então que havia uma cópia nas prateleiras altas do armário do seu pai. Subiu em um banco e ficou tateando lá em cima. A chave estava lá como previsto, mas o chaveiro estava preso em alguma coisa. Liana começou puxando a chave com cuidado, mas no minuto seguinte já havia perdido a paciência e deu um puxão mais firme fazendo com que a chave e o objeto que estava prendendo o chaveiro caíssem no chão.

Capítulo 5 – A Sombra na Janela

Sentou sobre o piso de tacos de madeira, e foi catando o conteúdo da sacola que se espalhara por todo lado. Eram papéis, eram fotos, era uma carta escrita pelo Senhor Coelho, para ela.

“Não sou o seu verdadeiro pai, “… Leu e parou para respirar. Ficou ali agarrada a esta incômoda frase sem coragem para prosseguir, mas era preciso. Leu o resto da carta completamente estarrecida com o a sucessão de palavras contando  os terríveis fatos ocorridos no dia do incêndio, que até então estavam registrados em uma parte do cérebro não acessada. Trancada. Ocultada.  Ali estava a história da sua vida e a razão pela qual teve que ir embora de sua cidade natal. Quanto mais lia e se espantava, mais tinha consciência que a sua grande mágoa ainda vinha da primeira frase: ” Não sou o seu verdadeiro pai”, ” Não sou o seu verdaeiro pai”, ” Não sou o seu verdadeiro pai”… 

Sua vida havia sido uma mentira completa. Com exceção de seu nome  e do incêndio, todo o resto era inventado.

Encontrou ainda a sua certidão de nascimento confirmando que era mesmo filha de outro homem, a certidão de casamento e de óbito da mãe assassinada pelo primeiro marido, recortes de jornal, fotos que nunca havia visto antes.

Olhou nos documentos o endereço do imóvel e resolveu que era para lá que precisava ir. Escavar o resto dos segredos que aquele lugar escondia, e escancarar as portas da memória de uma vez por todas.

A cidade onde ficava a sua antiga casa estava num local bem mais distante daquele que o seu suposto pai havia lhe falado. Ia cansada deste vendaval de emoções mas seguia resoluta. Não parou nenhuma vez pelo caminho e acabou chegando no local ao amanhecer. Pediu algumas indicações aos habitantes e logo estava bem na frente do que restara da casa onde um dia vivera com a mãe falecida.

O imóvel estava abandonado desde a tragédia. Apesar da maior parte ter sido destruída pelo incêndio, conseguiu reconhecer um pouco do seu passado. Os móveis da sala, a cozinha, o seu quarto e a janela retangular que dava para o jardim, idêntica a do desenho. Correu então para fora.

Paredes, corredores, jardim, o cenário do crime voltava furiosamente aos seus pensamentos em forma de dolorosas lembranças. Entre visões dos tiros do pai e dos gritos da mãe, lembrou das pancadas no vidro da janela, e do padrasto, o coelho carinhoso com quem vivera todos aqueles anos, pedindo que ela fugisse por lá.

No fundo do quintal ficava a casinha onde os bichos dormiam, e a caixa grande com os coelhos que criavam para matar. Ali, entre os bichinhos felpudos e assustados, os dois haviam se escondido até que o silêncio voltasse para apaziguar seus corações.

Mas o silêncio não voltou. Depois de matar sua mãe, o homem ciumento resolveu tocar fogo em quem sobrara. O incêndio atingiu a casinha e a última coisa que viu antes de desmaiar foi o padrasto atravessando as chamas com ela nos braços. Um padrasto querido que agora finalmente tinha um rosto.

Sentou no banco de madeira que havia escapado do fogo e chorou. Pensou em todos os anos vivendo aquela existência singular e que a encarcerara em um mundo de solidão. A única humana de seu mundo distorcido.

 Não tinha ideia se o pai assassino ainda estava vivo e entendeu porque o padrasto a havia levado para longe dali. Sentiu um amor imenso por este homem, e uma saudade ainda maior porque nunca mais poderia vê-lo. Saiu fechando o portão retorcido e encerrando uma etapa da sua vida.

Na primeira esquina que cruzou, encontrou um senhor carregando duas latas presas por uma madeira. Imagem comum em qualquer cidade pequena onde a falta d’água é fato corriqueiro.

Não era um gato, um cavalo, ou um porquinho vestido como gente. Era uma pessoa mesmo, um homem de barba, já velhinho, meio torto e sorrindo.

Ele sorria, ela chorava. Sem entender o homem perguntava o motivo das lágrimas. Como explicar que ele era a primeira pessoa que ela via em mais de dezessete anos? Desceu do carro e o abraçou sem dizer nada. Fechou os olhos e curtiu o carinho daquele desconhecido, como se estivesse abraçando o Senhor Coelho.

Dirigiu devagar apreciando cada rosto humano que via, sorrindo por voltar a fazer parte do mundo do qual um dia tinha sido degredada. Queria chegar em casa, olhar cada foto do seu padrasto  e até as que tirou com o seu noivo, e sair andando pelas ruas, se misturando com as pessoas, confundida entre milhares de outros rostos tão humanos quanto o seu. Um prazer insignificante para o resto do mundo, mas tão libertador e gratificante para ela.

Pensou no peixe um pouco arrependida, e um pouco livre. Como aquela história iria terminar, ainda não sabia, mas teria o resto de uma vida normal para descobrir.


 
                                      


 Interações da fabulosa e talentosíssima Cristina Gaspar. Obrigada, amiga!
 
Nem toda Alice tem um País das Maravilhas
Às vezes vozes traumáticas calam a realidade
Aí chegam padrastos, tios, avós, filhas

Dão cor e sentido, reconfigurando a felicidade.

Tempos embaçados
paralisadas ações
Ventos do Sudoeste
aragens desiludidas
Dormências desesperançadas
mentes aflitas
Tempos adversos anormais
resiliência imposta
Estranho mundo revisitado
câmera lenta nas reações
Tensão com atonicidade
Passos que não caminham
Fim de estradas que não findam
Pote de arco-íris cheio de espaço
limbo em ponto de espera retardado