Vacas de Barsã
Reouço os sons das paredes medievais reverberando em minha cabeça, as imagens vão e voltam, num périplo literário sem fim; sou profeta, sou poeta, sou rebelde, num mundo apustemado por vícios e desvícios e desserviços sociais; bebo das dúvidas existenciais e da lira das minhas certezas, no asfalto quente e lubrificado do meu corpo, certidão de nascimento amarelada pelas minhas convicções revolucionárias. Arrimo-me com esta prole de deserdados e sou feliz. Vejo-os sujos, marginais amalgamados, folhas corridas nas penitenciárias municipais, olhos fitos nas ruelas e avenidas atulhadas e solitárias, Guernicas séculovinteeum, mofo na civilidade, na caridade, nas caras das idades.
Vais o quê! gritou meu pai, quando lhe disse que renunciava a tudo, que repudiava o modo de vida a que estava submetido fazia vinte e oito anos; enlouqueceste, viraste comunista, foi se juntar com quem não presta, sabia, faculdade faz baderna na cabeça de gente de pouco prumo. Dei-te tudo a que um homem aspira, dei-te um anel de advogado e vens a mim, com essa cara de penduricalho socialista insultar-me? Pois bem, seja feita tua vontade. Rabissaqueou e deu-me as costas. Voltei-me pra minha mãe, aquela pobre e vilipendiada vaca de Barsã, um mar nos olhos, perguntando-me por quê, pra quê… Peguei-lhe as mãos, beijei-a no rosto, o sal dela me lambendo a boca, confias em mim? Cabeça baixa, assentiu, mas o coração vazando sangue varava-lhe o assentimento. Encarei meus pobres irmãos, experimentos laboratoriais de uma pirâmide social em decomposição e ambos me viraram as costas. Dei de ombros.
Foi na madrugada que tive o estalo decididor do que faria. Eis que me apareceu o Sonho, um ancião barbudo, habitante das perscrutantes mentes e insaciáveis almas, sentado numa carruagem de velho oeste, um cajado à mão e voz mansa e suave: sai da tua parentela bem fornida socialmente, procura teus irmãos que estão nas ruas e cimentos desta cidade; leva o que tens, distribui tudo com eles, e no dia que te determinarei, tomarás o trem das sete horas e irás a um lugar chamado Torsa, que fica pra lá do além do sertão. Lá encontrarás o ancião Absalão, que te dará abrigo e fortuna de tal modo que enterrarás em covas profundas tuas reminiscências capitalistas. Assim falo eu, o Sonho.
Assim fiz eu, o profeta, o poeta, o rebelde.
Com um saco às costas, dei num debaixo de marquise na zona oeste daquela cidade-krakatoa; estabeleci-me, com meus novos camaradas de revolta me olhando de través, cochichando entre orelhas ávidas, sujos, barbas por fazer, estômagos colados às costas, me interrogando qual é a tua, sujeito? que fazes aqui? e eu cumprimentando-os com a mão e balançando a cabeça oi, tudo bem? como estão?, essas coisas. Urgia fazer logo camaradagem e mostrar que era um deles, apesar das roupas, apesar da estética de burguês, apesar das roupas chiques… Escolhi aquele lugar porque ficava perto da estação ferroviária, logo ali… Juntei-os todos e, num linguajar marginal à João Antônio, abri-lhes minha alma. Poucas horas depois, viraram meus camaradas, meus amigos, curiosos por saber como alguém com tanto berço fora parar ali, coisa mais maluca, desexplicada. Falei-lhes do Sonho, da ordem quase divina dele, da minha missão demiúrgica, eu, um vate pós-moderno futurista. Balançavam a cabeça, bocas abertas, impressionados. Sabes, eu tenho curso superior, me disse Gamaliel (deixara a medicina por ter matado, sem querer, um rapaz na sala de cirurgia ). Depois daquilo, entrei em depressão, larguei a mulher e os filhos ( três ) e vim pra rua. Saudades nenhumas daqueles tempos, sabes? Esses são meus irmãos e amigos. Amo todos eles. Eles se aproximaram e abraçaram Gamaliel, que deixou escorrer alguns fios de lágrima. Havia também Timóteo, empresário traído por uma vaca de Barsã, que o trocou pelo motorista preto e semianalfabeto. Foi escândalo de abalos sísmicos impensáveis. Pediu falência e deixou a vaca sem um tostão, nem um bem sequer . Nada! Lasquei ela, soube depois que o cabra deixou ela, tenho pena alguma. Que se foda! O resto aplaudiu ele, batendo-lhe nas costas. Ananias já nascera pobre e sempre morara nas ruas. Já nasci com o cu virado pra lua, e deu uma gaitada contagiante. E por último, Moisés. Boca lacrada pra risos. Barba fechada. Cara também. Olhos de britadeira escavacando a alma da gente, sempre abespinhado. Ninguém da turma sabia por que ele fora morar na rua. Espadaúdo, boa aparência, no canto dele. Um devorador de livros. Ao invés de uns trocados, de alimentos, pedia livros. E uma Bíblia em cima da tuia de livros.
Depois de uma semana, fiz o que o Sonho mandara: distribuí com cada um uma quantia, suficiente para alimentá-los por um tempo; pedi-lhes quase rogando que tomassem sempre banho, escovem os dentes, se cuidem, comprem roupas novas… Moisés não. Agradeceu com um grunhido. Disse não preciso de nada, estou bem. Faze um boa viagem. Um susto! FAZE!!! Pouca gente usava o imperativo afirmativo do verbo fazer correto. Era um cabra esquisito e encantador, o sujeito. O que o levara àquela condição, nunca saberia eu.
Vida ávida adoidada abastecida por tecidos epiteliais episcopais cujo sulcos se inundam de suores e alvoroços remoçados pelas buscas e amanheceres incertos a razão bêbada vomitando nas calçadas as elucubrações pejadas no mesencéfalo e obliteradas pelos bombardeiros luftwaffe na conde da boa vista e nas pontes mauriceas do rio capilar apinhado de dejetos. Cheguei à estação central pontualmente às sete horas, quando o ajudante já balançava o candeeiro, avisando da partida do monstro de ferro bufante. Pouca gente, muito frio. Nevara na madrugada, quase nos matando, a mim e meus amigos de marquise de frio. Enquanto subia ao vagão da classe popular, pari um poema. De cabeça. Na cabeça.
aonde vais, ó trânsfuga
de que foges
o que escondes
o que retesas
em tuas entranhas macrobióticas
tua verve calcificada
num bisaco apodrecido
carcomido pelo pó
edifício implodido
pela tnt das desrazões
vagas pelos saaras
em camelos sem oásis
tuas raízes ainda presas
na subcultura das casas fortes
cofres sedados por combinações
lixo penhorado em bancos
brancos
Sentei-me. Poucos passageiros. Um cheiro forte. Almíscar. Italian Pine. Trem apitou e começou o sacolejo. Viagem de doze horas até Torsa, no muito além do sertão abocanhado por tubarões nunca saciados. Procurar seu Absalão. Previsão de chegada: dezenove horas, anunciou o controlador. Tinha lá seus setenta anos. Risonho. Bilhete, por favor? Furou meu bilhete. Atarracado, absolutamente glabro, um dente de ouro no sorriso, preto retinto. Quanto tempo nesse serviço, perguntei. Quarenta anos. Nem penso em me aposentar. Adoro viajar, conversar. De repente me veio a imagem de Louis Armstrong. Bonachão. E ainda toco trompete na banda da cidade X. Não conhecia a tal cidade. Balancei a cabeça, parabéns. Quantos filhos? Dez! Todos criados. Oito homens, duas mulheres. Não parava de mostrar o dente de ouro, sorriso de montanha apinhada de alpinistas. Preveniu-me, soube que vai nevar em Torsa. Prevenido? Tou sim, obrigado. Tava não. Só um casaco de jeans e umas calças Far West. Um par de tênis Sete Vidas. Ao meu lado, uma vaca de Barsã absolutamente deslumbrante. O que fazia num vagão-gueto de vagabundos que nem eu? Um chapéu à Ingrid Bergman em Casablanca; vestido longo, branco, luvas que chegavam à beira do braço; um cigarro numa piteira dourada, sombras cintilantes e a cor rosa aberrante nos lábios e nas bochechas e um par de sapatos Oxford. E do pouco que vi das pernas dava pra deduzir umas coxas bem fornidas e uns mamilos túrgidos quase furando o vestido. Aquilo não era hora de uma ereção, mas não consegui implodi-la. Tempos demais sem sexo, sem entrar numa mulher… Ela me olhou de cima a baixo, deu um muxoxo e continuou no seu arrebitamento de nariz perfeito.
Da janela de madeira do meu vagão, vi eufórico duas girafas saracoteando no meio da mata sertaneja, leões chafurdando com hipopótamos nos riachos inchados de água limpa, jacarés fazendo acrobacias e zombando dos viados e das corças, um arco-íris avermelhado embonitando aquilo tudo. A fumaça da Great Western era como uma pitada de pincel de Salvador Dali naquela manhã radiante e definidora das minhas decisões de ruptura. Não aguentei e pari outro poema. Mental.
deixei-os nas sombras
meus irmãos perdidos
máscaras ardendo
sobras de dignidade
quisera-os aqui
sol luzidio colorindo-os
dignos seres indignados
a sandice dos bipolares
fazendo-os indigentes sociais
caminhantes sem destino
meus camaradas retirantes
quero-os aqui
Primeira parada. Meia hora pra comer, esticar as pernas, não esqueçam a hora, senão só amanhã. O glabro senhor bonachão anunciou a parada e a boca não parava aberta. Dentão dourado reluzindo ao sol. Céu nu. Levantei-me. Ela se levantou. Quase minha altura. Meu olho no olho dela. Aquilo era um sorriso? Marrom de íris quase verde. Aqueles dentes, eram reais ou implantados? Lábios grossos, nadegosa. Perguntei vai ficar aqui? Ela disse vou, moro aqui. Uma pena, não? Com andar de mulher fatal deu-me as costas e acenou pros carregadores. Um magote. Aquele monte de malas, maletas, caixões, um vagão todo pro consumismo exacerbado daquela vaca de Barsã do interland pernambucano. A ereção demorou a murchar. Acompanhei-a com os olhos, aqueles movimentos nadegosos lambuzando minha libido de imagens testosterônicas. Precisava urgente entrar numa mulher. A última fora a amiga de minha irmã, uma bezerra de Barsã, cujos neurônios seriam alunos de uma ostra. Chefe da estação apitou, todos a bordo.
Maria Fumaça bufou tchiiiiiiii… O banco ao lado agora vazio, um cheiro de suor e álcool , cadê o glabro? Topara com ele, o ouro de Carlitos no dente, sorrisão… Olhos nas serras verdejantes do sertão, embranquecidas pela neve tropical, o trem teteco, teteco, cheiro de óleo. Adorava andar de trem. O Sonho bem o sabia. Faltavam seis horas para Torsa. Antes, a cidade de Olho D’água, quase um vilarejo, me dissera o glabro. Era uma cidade linda, que teima em não se modernizar, que erigiu um muro pro progresso, disse-me. Em pleno século vinte e um, tu vais amá-la.
Ameia-a, sim. Estação toda pintada de amarelo, verde nos rodapés, vermelho nos guichês, escadas de tijolo; perto uma praça com um coreto todo cor de rosa, várias casas em estilo barroco, ruas de paralelepípedos, uma serra sinuosa rodeando a cidade. Chovera na madrugada e a terra exalava cheiro molhado, de vasculhar os pulmões da gente e enche-los de oxigênio ventanoso. Os homens usavam chapéu e paletó, as mulheres xales e tailleures e recheios nos ombros. Dei uma passeada rápida por aquela cidade saída das penas de Henry James. A prefeitura chamou-me a atenção: prédio de tijolos marrons, o térreo com uma escada com mosaico turco, várias máquinas de escrever Remington, um cheiro de pinho sol forte; a parte de cima: uma escada de piso persa, uma varanda extensa na qual cabiam muitas pessoas, quando dos feriados cívicos. O prefeito, um homem calvo, bigode branco e um paletó inglês, palavreado rebuscado. Pois não, jovem? O que o traz à nossa agradável e acolhedora cidade? Tou de passagem, mas aparvalhado com a beleza desta urbe. Se não for indelicado nem inconveniente, posso saber qual a principal atividade econômica daqui? O edil deu de balançar a pança com um sorriso histriônico, colocou as mãos sobre meus ombros magros e me apontou as serras. Sempre que há arco-íris naquelas serras, vamos em procissão pegar todo o ouro que há nele. Pegamos o metal de ponta a ponta do arco. Mesmo que apareça só uma vez por ano, o que acumulamos é suficiente para investirmos em saúde, educação, infraestrutura, na linha férrea, na manutenção do nosso cinema, que é um dos mais antigos do estado, do estado! Os guardas-noturnos são bem remunerados, eles que acendem os candeeiros dos postes, fazem a ronda noturna, não há violência na nossa cidade. E ria e ria. Há abrigos para as pessoas - poucas - que preferem viver nas ruas quando dos dias de neve e extenso calor. A cabeça deu pinote de alarme! Quase perco a hora e o trem. Agradeci o edil, pernas na bunda, cheguei ofegante. O bonachão glabro quase, hein? Entendo, quem chega a esta cidade se encanta. E berrou todos a bordo!!!
A vida não tem por que se ela se basta se o verbo se faz carne e alimenta a multidão de ruminantes e há sinos que não tocam porque o vazio os irrita nem a alma fere o corpo porque ela é encanto e o canto da libido entontece as sereias dos oceanos sem sal mesmo assim há que se pescar ora pois senão como destruir os tigres de dentes afiados que habitam o imaginário coletivo em canções sem sons e sem rimas
Amigo, amigo… Chegamos. Acordei assustado. Dei com o simpático glabro. Todos já haviam descido e minhas divagações experimentais e oníricas quase me perdem Torsa. Vai ficar onde, perguntou-me. Ainda meio sonolento no hotel Glória, sabe onde fica? Torsa é muito grande, muitos hotéis… Olhe, moro na rua 44, casa 4. Perto daqui da estação, sem erro. Qualquer coisa, me procure. Não se avexe, viu? Gostei docê. Também gostei dele. Fazia um frio de enregelar a espinha e endurecer os cabelos. Muita neve. A praça dos carros de aluguel ficava perto. Aero-Willys, Synca, Jeep Willys, até uma Studbaker… No céu escuro de neve branca, uns Zepelins coloriam os postes de luzes de candeeiros. Escolhi o Aero-Willys. Um rapaz de uns trinta anos, meio sardento e com cachecol e um macacão por baixo da jaqueta, boa noite. Lee Osvaldo, a seu favor. Pronde vamos? Dei-lhe o nome do hotel. Ôxe, se não me engano, esse hotel fechou há uns cinco anos. No lugar dele agora é um supermercado. O moço tem certeza de que é esse mesmo? Tinha! O Sonho me garantiu. Ele, que sonho? O moço sonhou com esse hotel? Posso levá-lo a outro, há muitos. Preciso falar com o senhor Absalão, que é o dono. Lee balançou a cabeça, fez muchocho e barulho com a chapa dos dentes, sei não, acho que fizeram o moço de besta. Seu Absalão já morreu, ó… Quer dar parte, levo o moço à delegacia… Não, precisa não. Saí do Aero, aéreo, o saco enorme comprimindo minha cervical. Eram dezenove horas e vinte e cinco minutos em Torsa. Sete horas e dez minutos da manhã no Recife, no dia mais quente que um vulcão no inferno quando despertei, meus colegas de marquise me olhando e rindo. Nossa, que sonho agitado, hein? Falaste e grunhiste a noite toda. E eu todo suado, mordido de inveja do glabro e das vacas de Barsã.