CAPÍTULO II
Oportunamente voltaremos a esse assunto com mais pormenores para justificar essa ideia, que assim, grosso modo colocada, parece mais um postulado gnóstico do que uma certeza psicológica adquirida ao longo de uma experiência fascinante como a que eu vivi na minha relação com Rosana. Por ora, vou retomar a narrativa dizendo que ela se recusava peremptoriamente a deixar a cidade interiorana onde morávamos, para ir morar na capital, como eu, várias vezes sugeri, depois de ver a fisionomia cansada dela, suportando aquela dupla jornada de trabalho que as mulheres que trabalham fora suportam. Essa teria sido, para nós, uma boa escolha, já que eu, como funcionário público, havia conseguido uma vaga para trabalhar na capital. Assim, poderíamos ter ido morar perto da escola onde ela trabalhava, facilitando a vida dela e a minha. Mas ela nunca quis. Odiava a idéia de morar em São Paulo. Dizia que jamais conseguiria se acostumar à vida maluca que os paulistanos levam, com filas para tudo, trânsito congestionado em todas as ruas e avenidas, pessoas correndo para todos os lados, gente que nunca se fala, mesmo morando no mesmo prédio, e por aí afora. Aglomerada solidão, como dizia a letra de uma canção dos anos sessenta, se não me engano, composta por um baiano maluco chamado Tom Zé.
A vida em São Paulo, de fato, é uma loucura, mas eu não vejo muito diferença entre morar lá e morar em cidades da periferia, como Osasco, Guarulhos, Mogi das Cruzes ou qualquer município do ABC. Mas ela via. Nunca a ouvi reclamar do fato de ter que acordar às cinco da manhã, todo dia, para ir trabalhar. E ela fez isso por vinte e cinco anos e fazia de muito boa vontade. Por isso concluo que ela devia gostar muito dessa vida, pois senão teria deixado aquele emprego para cuidar exclusivamente de mim e de nossas filhas. Não foi por falta de pressão da minha parte. Várias vezes pedi a ela que fizesse isso. Até que largasse aquele trabalho, ou que viesse trabalhar para a prefeitura da nossa cidade, ou então em uma escola particular, onde talvez até ganhasse mais, ou pelo menos lidaria com um público bem mais fácil de ser trabalhado. Não precisávamos do salário dela. Eu ganhava o suficiente para os dois. Mas ela, acho, precisava e principalmente gostava do que fazia. Mais do que do salário que recebia, que ela, afinal depositava praticamente inteirinho em uma conta de poupança da Caixa Econômica Federal. Conta que, afinal, estava intacta quando ela morreu.
O meu sentimento de surpresa por encontrá-la em nosso quarto foi uma dessas coisas que eu não tenho palavras para descrever. Foi algo assim como, se de repente, as rosas que ela plantava no jardim e regava todos os dias começassem a falar e perguntassem por ela. Ei, cadê a Rosana? Por que ela não vem mais regar a gente? Ou então a máquina de lavar roupa que começava a sacudir e pular como um cavalo xucro toda vez que eu metia a minha roupa dentro dela e apertava o botão “enxaguar”, em vez de “lavar”. Quando isso acontecia, eu sempre pensava que ela bem poderia ter me avisado que o botão não era aquele. Eu não teria me aborrecido nem um pouco, se nessas ocasiões ela me dissesse “Francisco, seu burro, você apertou o botão errado”.
Afinal, apertar botões errados tem sido uma constante em minha vida. Acho que tenho feito isso desde que nasci. Lembro-me que quando eu tinha sete anos de idade, um tio meu me disse para escolher, como presente de natal, entre uma bola e par de tênis Conga. Escolhi a bola e fui brincar com ela num terreno baldio que havia nos fundos da minha casa. Pisei, sem querer numa poça de urina de cavalo e peguei uma baita infecção no pé. Era uma daquelas infecções que a gente, naqueles tempos, chamava de mijacão. Fiquei quase um mês sem poder andar com aquele horrível tumor no pé, que doía feito dor de dente. Não conseguia andar nem dormir porque o danado latejava como se fosse queimadura e deixava o pé da gente inchado como um pão onde se botou muito fermento. E tudo só porque, ao invés de escolher um par de calçados, escolhi correr descalço atrás de uma bola. A vida é feita de escolhas e quando a gente faz escolhas erradas, têm que arcar com as consequências delas. Mas nem sempre aceitamos esse pressuposto e vivemos culpando os outros pelos maus resultados que a vida nos trás por conta disso.
Foi a Rosana quem me ajudou, nestes últimos vinte e cinco anos, a lidar com as consequências desta minha natural tendência para apertar os botões errados. Graças a ela aprendi a ser mais seletivo e cuidadoso nas minhas escolhas e até o fato de não ter errado no meu casamento com Marisa, a minha atual esposa, posso atribuir a ela. Oportunamente explicarei porque, mas por ora quero dizer, para não esquecer esse detalhe que acho muito importante, que foi ela quem me escolheu para marido e não eu que a escolhi para esposa. Eu, na verdade, teria morrido solteiro, se fosse obrigado a tomar essa decisão por mim mesmo. Tinha tanto medo de casar e não ser capaz de sustentar uma família, que jamais teria encarado um casamento se a Rosana não tivesse aparecido na minha vida. Ela é que me curou dessa verdadeira fobia que eu sentia em relação à um comprometimento mais sério com um plano de vida desse quilate. E a partir daí aprendi que nascer com vida já um compromisso que a gente assume inconscientemente, pois que não participa do acordo de vontades das pessoas que nos fizeram. Ou seja, os nossos pais é que decidem isso, mas nós, a partir do momento em que nascemos somos obrigados a cumprir esse acordo sem muitos questionamentos nem embargos de outra monta, como fazem muitas pessoas que se voltam contra seus progenitores pelo simples fato de não terem pedido para nascer.
Daí a minha surpresa em encontrá-la sentada no meu quarto, e ainda por cima, na minha cama. Não por ela estar lá, porquanto ela tinha todo o direito de estar, e muito mais ainda, pois ela era, ou fora, minha mulher.
Era. Fora. Foi. É. Sei lá qual é o tempo de verbo correto para usar nesse caso e como classificar essa estranha situação. Era uma ocorrência tão inusitada que a minha capacidade de linguagem claudicava perante um fato que eu não tinha como classificar. Sabe aquele acontecimento que você não tem a mínima ideia de como explicar? É mais ou menos como um índio, que nunca teve contato com a civilização e de repente é posto diante de uma coisa que ele nunca viu, algo que ele, nem na sua melhor capacidade de imaginação consegue figurar. Algo como um automóvel, por exemplo. É uma coisa que a sua mente não tem registro e ele não sabe como classificar. E perante algo que não está no catálogo de realidades abarcadas pela sua sabedoria, o único recurso que lhe sobra é carimbar esse acontecimento como algo sobrenatural. Foi assim, acho, que os deuses nasceram na imaginação dos antigos povos; quer dizer, eles contemplaram fenômenos naturais que seus cérebros não tinham linguagem suficiente para descrever e entender, e então atribuíram tudo a causas sobrenaturais. E estamos fazendo isso até hoje. Tudo que não conseguimos entender nem explicar, atribuímos a Deus,. As coisas boas e ruins, como se ele fosse um pai sem critério que castiga seus filhos sem que eles tenham cometido nenhum deslize e ao mesmo tempo os premia sem que eles tenham feito nada para merecer. A gente leva muito tempo para entender, isso quando entende, que Deus não tem nada a ver com que acontece conosco. Que Ele, quando resolveu dar-nos uma consciência reflexiva, que significa uma capacidade de refletir e escolher, nos colocou por nossa própria conta e risco, num processo onde todas as ações são significativas e repercutivas, inescapáveis no seu curso, mas amoldáveis no seu contexto. Quer dizer: não podemos deixar de fazer, mas podemos escolher como fazer.
Também para mim, a presença dela no meu quarto era, de fato, algo sobrenatural, porque Rosana... Melhor dizendo, para não confundir, Rosana foi, em outros tempos, minha mulher. E de alguma forma continuava sendo, porque... Ah! não sei, era um sentimento tão estranho, que eu não conseguia definir. Nosso relacionamento terminara, de certa maneira, no campo do fato e do direito, do tempo real e do espaço físico sensível e mensurável, mas no campo da sensibilidade e da emoção não. E quando se trata uma relação como a nossa, talvez o que valha realmente é a cinestesia que ela gera no espaço conceitual da nossa mente, que é tão grande quanto a nossa capacidade de imaginação. E essa cinestesia continuava viva entre nós, a despeito do fato que nos separara, um fato eventual e imponderável, independente da nossa vontade e inevitável no atual estágio do conhecimento humano. Por isso é que eu disse que o nosso livre arbítrio se resume no fato de poder escolher como fazer as coisas e não fazer ou deixar de fazer. A vida é um conjunto de ações que a gente faz num determinado espaço de tempo, e a dor ou o prazer que elas nos dão é que modulam o valor que damos a ela. Se nascemos, não podemos deixar de viver e se vivemos não podemos deixar de fazer coisas que justifiquem o fato de estarmos vivos.
Deixa para lá. O que não se consegue explicar, explicado está. O mundo é muito mais do que pensamos que ele seja. Quando não temos linguagem suficiente para classificar o que vemos, ouvimos e sentimos, nossa mente alucina e cria fantasias e fantasmagorias para explicar aquilo que ela não entende. Assim nascem os mitos, as crenças e as superstições. Os indígenas da Nova Guiné, durante a segunda guerra mundial, observavam, escondidos, os americanos orientarem o pouso dos aviões de carga no improvisado aeroporto que eles haviam construído na ilha para abastecer o exército americano na sua guerra contra o Japão. Os ianques usavam rádios portáteis com antenas e chamavam os aviões de “cargo”. Muitos anos depois que a guerra terminara e os americanos tinham deixado a ilha, os indígenas continuavam a chamar os “grandes pássaros de metal” que transportavam em suas barrigas, alimentos, armas e outras provisões. Para isso, espetavam varetas de bambú nas latas vazias de comida que os americanos haviam deixado na ilha. Era uma imitação dos rádios portáteis que os soldados usavam para orientar o pouso dos aviões. Os “pássaros metálicos” nunca atenderam ao chamado dos papuas da Nova Guiné, mas o culto do “cargo” sobreviveu naquela ilha por muitos anos. Talvez assim tenham nascido todas as religiões, com suas crenças. Representação mental inconsciente de fenômenos que a nossa sabedoria não consegue explicar.
Se a presença de Rosana, sentada em minha cama, era uma alucinação ou um acontecimento real, eu não saberia dizer, mas o fato é que a minha mente aceitou essa visão de forma tão natural, por que ela já ocorrera tantas vezes antes, quando ela estava viva, que agora não me parecia nada anormal. Era uma visão que eu me acostumei a ver durante muito anos, que ela ficou gravada no campo visual do meu inconsciente de forma tão indelével que a minha razão não conseguia desmanchar, nem à vista do fato consumado, que foi a morte dela.
(continua)
Oportunamente voltaremos a esse assunto com mais pormenores para justificar essa ideia, que assim, grosso modo colocada, parece mais um postulado gnóstico do que uma certeza psicológica adquirida ao longo de uma experiência fascinante como a que eu vivi na minha relação com Rosana. Por ora, vou retomar a narrativa dizendo que ela se recusava peremptoriamente a deixar a cidade interiorana onde morávamos, para ir morar na capital, como eu, várias vezes sugeri, depois de ver a fisionomia cansada dela, suportando aquela dupla jornada de trabalho que as mulheres que trabalham fora suportam. Essa teria sido, para nós, uma boa escolha, já que eu, como funcionário público, havia conseguido uma vaga para trabalhar na capital. Assim, poderíamos ter ido morar perto da escola onde ela trabalhava, facilitando a vida dela e a minha. Mas ela nunca quis. Odiava a idéia de morar em São Paulo. Dizia que jamais conseguiria se acostumar à vida maluca que os paulistanos levam, com filas para tudo, trânsito congestionado em todas as ruas e avenidas, pessoas correndo para todos os lados, gente que nunca se fala, mesmo morando no mesmo prédio, e por aí afora. Aglomerada solidão, como dizia a letra de uma canção dos anos sessenta, se não me engano, composta por um baiano maluco chamado Tom Zé.
A vida em São Paulo, de fato, é uma loucura, mas eu não vejo muito diferença entre morar lá e morar em cidades da periferia, como Osasco, Guarulhos, Mogi das Cruzes ou qualquer município do ABC. Mas ela via. Nunca a ouvi reclamar do fato de ter que acordar às cinco da manhã, todo dia, para ir trabalhar. E ela fez isso por vinte e cinco anos e fazia de muito boa vontade. Por isso concluo que ela devia gostar muito dessa vida, pois senão teria deixado aquele emprego para cuidar exclusivamente de mim e de nossas filhas. Não foi por falta de pressão da minha parte. Várias vezes pedi a ela que fizesse isso. Até que largasse aquele trabalho, ou que viesse trabalhar para a prefeitura da nossa cidade, ou então em uma escola particular, onde talvez até ganhasse mais, ou pelo menos lidaria com um público bem mais fácil de ser trabalhado. Não precisávamos do salário dela. Eu ganhava o suficiente para os dois. Mas ela, acho, precisava e principalmente gostava do que fazia. Mais do que do salário que recebia, que ela, afinal depositava praticamente inteirinho em uma conta de poupança da Caixa Econômica Federal. Conta que, afinal, estava intacta quando ela morreu.
O meu sentimento de surpresa por encontrá-la em nosso quarto foi uma dessas coisas que eu não tenho palavras para descrever. Foi algo assim como, se de repente, as rosas que ela plantava no jardim e regava todos os dias começassem a falar e perguntassem por ela. Ei, cadê a Rosana? Por que ela não vem mais regar a gente? Ou então a máquina de lavar roupa que começava a sacudir e pular como um cavalo xucro toda vez que eu metia a minha roupa dentro dela e apertava o botão “enxaguar”, em vez de “lavar”. Quando isso acontecia, eu sempre pensava que ela bem poderia ter me avisado que o botão não era aquele. Eu não teria me aborrecido nem um pouco, se nessas ocasiões ela me dissesse “Francisco, seu burro, você apertou o botão errado”.
Afinal, apertar botões errados tem sido uma constante em minha vida. Acho que tenho feito isso desde que nasci. Lembro-me que quando eu tinha sete anos de idade, um tio meu me disse para escolher, como presente de natal, entre uma bola e par de tênis Conga. Escolhi a bola e fui brincar com ela num terreno baldio que havia nos fundos da minha casa. Pisei, sem querer numa poça de urina de cavalo e peguei uma baita infecção no pé. Era uma daquelas infecções que a gente, naqueles tempos, chamava de mijacão. Fiquei quase um mês sem poder andar com aquele horrível tumor no pé, que doía feito dor de dente. Não conseguia andar nem dormir porque o danado latejava como se fosse queimadura e deixava o pé da gente inchado como um pão onde se botou muito fermento. E tudo só porque, ao invés de escolher um par de calçados, escolhi correr descalço atrás de uma bola. A vida é feita de escolhas e quando a gente faz escolhas erradas, têm que arcar com as consequências delas. Mas nem sempre aceitamos esse pressuposto e vivemos culpando os outros pelos maus resultados que a vida nos trás por conta disso.
Foi a Rosana quem me ajudou, nestes últimos vinte e cinco anos, a lidar com as consequências desta minha natural tendência para apertar os botões errados. Graças a ela aprendi a ser mais seletivo e cuidadoso nas minhas escolhas e até o fato de não ter errado no meu casamento com Marisa, a minha atual esposa, posso atribuir a ela. Oportunamente explicarei porque, mas por ora quero dizer, para não esquecer esse detalhe que acho muito importante, que foi ela quem me escolheu para marido e não eu que a escolhi para esposa. Eu, na verdade, teria morrido solteiro, se fosse obrigado a tomar essa decisão por mim mesmo. Tinha tanto medo de casar e não ser capaz de sustentar uma família, que jamais teria encarado um casamento se a Rosana não tivesse aparecido na minha vida. Ela é que me curou dessa verdadeira fobia que eu sentia em relação à um comprometimento mais sério com um plano de vida desse quilate. E a partir daí aprendi que nascer com vida já um compromisso que a gente assume inconscientemente, pois que não participa do acordo de vontades das pessoas que nos fizeram. Ou seja, os nossos pais é que decidem isso, mas nós, a partir do momento em que nascemos somos obrigados a cumprir esse acordo sem muitos questionamentos nem embargos de outra monta, como fazem muitas pessoas que se voltam contra seus progenitores pelo simples fato de não terem pedido para nascer.
Daí a minha surpresa em encontrá-la sentada no meu quarto, e ainda por cima, na minha cama. Não por ela estar lá, porquanto ela tinha todo o direito de estar, e muito mais ainda, pois ela era, ou fora, minha mulher.
Era. Fora. Foi. É. Sei lá qual é o tempo de verbo correto para usar nesse caso e como classificar essa estranha situação. Era uma ocorrência tão inusitada que a minha capacidade de linguagem claudicava perante um fato que eu não tinha como classificar. Sabe aquele acontecimento que você não tem a mínima ideia de como explicar? É mais ou menos como um índio, que nunca teve contato com a civilização e de repente é posto diante de uma coisa que ele nunca viu, algo que ele, nem na sua melhor capacidade de imaginação consegue figurar. Algo como um automóvel, por exemplo. É uma coisa que a sua mente não tem registro e ele não sabe como classificar. E perante algo que não está no catálogo de realidades abarcadas pela sua sabedoria, o único recurso que lhe sobra é carimbar esse acontecimento como algo sobrenatural. Foi assim, acho, que os deuses nasceram na imaginação dos antigos povos; quer dizer, eles contemplaram fenômenos naturais que seus cérebros não tinham linguagem suficiente para descrever e entender, e então atribuíram tudo a causas sobrenaturais. E estamos fazendo isso até hoje. Tudo que não conseguimos entender nem explicar, atribuímos a Deus,. As coisas boas e ruins, como se ele fosse um pai sem critério que castiga seus filhos sem que eles tenham cometido nenhum deslize e ao mesmo tempo os premia sem que eles tenham feito nada para merecer. A gente leva muito tempo para entender, isso quando entende, que Deus não tem nada a ver com que acontece conosco. Que Ele, quando resolveu dar-nos uma consciência reflexiva, que significa uma capacidade de refletir e escolher, nos colocou por nossa própria conta e risco, num processo onde todas as ações são significativas e repercutivas, inescapáveis no seu curso, mas amoldáveis no seu contexto. Quer dizer: não podemos deixar de fazer, mas podemos escolher como fazer.
Também para mim, a presença dela no meu quarto era, de fato, algo sobrenatural, porque Rosana... Melhor dizendo, para não confundir, Rosana foi, em outros tempos, minha mulher. E de alguma forma continuava sendo, porque... Ah! não sei, era um sentimento tão estranho, que eu não conseguia definir. Nosso relacionamento terminara, de certa maneira, no campo do fato e do direito, do tempo real e do espaço físico sensível e mensurável, mas no campo da sensibilidade e da emoção não. E quando se trata uma relação como a nossa, talvez o que valha realmente é a cinestesia que ela gera no espaço conceitual da nossa mente, que é tão grande quanto a nossa capacidade de imaginação. E essa cinestesia continuava viva entre nós, a despeito do fato que nos separara, um fato eventual e imponderável, independente da nossa vontade e inevitável no atual estágio do conhecimento humano. Por isso é que eu disse que o nosso livre arbítrio se resume no fato de poder escolher como fazer as coisas e não fazer ou deixar de fazer. A vida é um conjunto de ações que a gente faz num determinado espaço de tempo, e a dor ou o prazer que elas nos dão é que modulam o valor que damos a ela. Se nascemos, não podemos deixar de viver e se vivemos não podemos deixar de fazer coisas que justifiquem o fato de estarmos vivos.
Deixa para lá. O que não se consegue explicar, explicado está. O mundo é muito mais do que pensamos que ele seja. Quando não temos linguagem suficiente para classificar o que vemos, ouvimos e sentimos, nossa mente alucina e cria fantasias e fantasmagorias para explicar aquilo que ela não entende. Assim nascem os mitos, as crenças e as superstições. Os indígenas da Nova Guiné, durante a segunda guerra mundial, observavam, escondidos, os americanos orientarem o pouso dos aviões de carga no improvisado aeroporto que eles haviam construído na ilha para abastecer o exército americano na sua guerra contra o Japão. Os ianques usavam rádios portáteis com antenas e chamavam os aviões de “cargo”. Muitos anos depois que a guerra terminara e os americanos tinham deixado a ilha, os indígenas continuavam a chamar os “grandes pássaros de metal” que transportavam em suas barrigas, alimentos, armas e outras provisões. Para isso, espetavam varetas de bambú nas latas vazias de comida que os americanos haviam deixado na ilha. Era uma imitação dos rádios portáteis que os soldados usavam para orientar o pouso dos aviões. Os “pássaros metálicos” nunca atenderam ao chamado dos papuas da Nova Guiné, mas o culto do “cargo” sobreviveu naquela ilha por muitos anos. Talvez assim tenham nascido todas as religiões, com suas crenças. Representação mental inconsciente de fenômenos que a nossa sabedoria não consegue explicar.
Se a presença de Rosana, sentada em minha cama, era uma alucinação ou um acontecimento real, eu não saberia dizer, mas o fato é que a minha mente aceitou essa visão de forma tão natural, por que ela já ocorrera tantas vezes antes, quando ela estava viva, que agora não me parecia nada anormal. Era uma visão que eu me acostumei a ver durante muito anos, que ela ficou gravada no campo visual do meu inconsciente de forma tão indelével que a minha razão não conseguia desmanchar, nem à vista do fato consumado, que foi a morte dela.
(continua)