Não se foge da sorte
Não se foge da sorte (Coisas da vida (II))
Alexandre Santos*
Ernesto estrebuchou de raiva.
De nada valera a pressa.
Perdera o voo e, com ele, provavelmente a matrícula tão sonhada num curso de férias da Sorbonne. “Merda!”, repetiu mil vezes.
A sorte estava contra ele. No último segundo, o sinal mudara a fase e o vermelho o retivera por segundos preciosos no acesso à via expressa que levava ao aeroporto. Se não fosse aquele atraso, teria sido ele o primeiro da lista de espera. Teria sido ele e, não a gostosona oxigenada, a última pessoa a embarcar. Ao invés de zanzar pelo saguão, estaria instalado numa poltrona do A-330 que, àquela hora, já em velocidade de cruzeiro, cruzava o Atlântico rumo a Europa.
“Merda!”, repetiu mil vezes, esbravejando contra tudo e contra todos, chegando até a enxotar a bela e estranha mulher que, sem fechar o sorriso escancarado, perguntou-lhe se poderia ajudar. Se houvesse uma deusa da fortuna, Ernesto a xingaria naquele instante. Mas a deusa existia. Silenciosa e sorridente, quase sempre longe das vistas e da compreensão dos homens, ela construía destinos manipulando humores e malquerenças para fazer girar a grande roda da vida.
Sem parar de resmungar, Ernesto confirmou o voo para o dia seguinte e, sem nada melhor para fazer, socou a mochila no guarda-volumes e entregou-se a um nada-a-fazer pelo shopping-aeroporto. Visitou lojas, bisbilhotou vitrines, folheou livros, conferiu o relógio centenas de vezes, cochilou, investigou funções nunca usadas no celular, vagou pelos corredores, observou os avisos, fez promessa para o tempo passar mais rápido. Finalmente, exausto e enfadado, já sem ligar para o que as pessoas pudessem achar, se esparramou num banco e procurou a posição menos incômoda. Rendeu-se ao cansaço sem diferenciar a vigília da sonolência.
Jamais soube por quanto tempo dormiu.
Foi arrancado do sono por uma correria anormal pelo saguão. Alguma coisa havia acontecido. Repentinamente, vindas de todas as direções, as pessoas atraídas pelo noticiário se aglomeravam no entorno da televisão. Não havia dúvida. Alguma coisa muito importante havia acontecido. A pequena multidão crescia e diminuía conforme a incorporação de curiosos cujos semblantes, progressivamente, passavam da surpresa ao horror, e diásporas sem destino marcadas por olhos esbugalhados e bocas abertas. Nunca tantos celulares foram usados tantas vezes em tão pouco tempo. Vendo a movimentação, já completamente desperto, Ernesto fez como todos e correu para a televisão. Sem dificuldade para impor-se ao burburinho, a voz pesarosa falava do desaparecimento entre as costas brasileira e africana do A-330 que, saído há pouco do aeroporto do Galeão, fazia o voo AF 447 da Air France para Paris com 228 pessoas a bordo. Aquele era o avião que ele tomaria.
A vista de Ernesto turvou. As pernas bambearam. Só não foi ao chão, nocauteado pela notícia, por conta de braços desconhecidos que o ampararam. Ainda tonto, sem conter a emoção ou o respeito devido aos desaparecidos, como um celerado, Ernesto sorriu um grito de alegria. “Um milagre me livrou da morte!”, repetiu a ventura a todos ouvidos que viu pela frente, mesclando risos e choros. Repentinamente esquecido da razão que o fizera vociferar tantos impropérios nas últimas horas, Ernesto sentiu-se um ‘homem de sorte’. De achincalhado como ‘agente de todos os azares do mundo’, o semáforo vermelho passou a ser louvado como prova da existência de Deus. Em segundos, Ernesto ganhou notoriedade.
Deixou de ser Ernesto, o azarado anônimo que perdera a matrícula na Sorbonne por conta de um sinal fechado, e passou a ser o sortudo notório que escapara da morte justamente por conta dele. “Se o sinal estivesse aberto, Ernesto teria embarcado e a esta hora estaria entre aqueles que desapareceram no meio do oceano Atlântico”, disse a repórter da TV Globo em cadeia nacional, granjeando-lhe a glória dos imortais. A sorte de Ernesto ofuscou a tristeza e o desespero das famílias enlutadas. Ernesto virou estrela. Foi fotografado, filmado, entrevistado pelos principais jornais, rádios e televisões. “Devo a minha vida a um lance de sorte”, repetia ele. Embevecido pela situação, Ernesto esqueceu a viagem e, de bom grado, cancelou a reserva para o dia seguinte e agendou tantas entrevistas e participações quantas foram solicitadas. Extasiado, concluiu que, por alguns dias, seria notícia em toda a imprensa nacional e estrangeira.
O sol nascia quando, momentaneamente esquecido pela imprensa, Ernesto resolveu voltar para casa. Enquanto caminhava para o ponto de táxi, do nada lembrou antigas conversas familiares. Recordou que, retrucando o “as pessoas só morrem quando chega a hora” dito por muitos, seu velho e sábio pai contestava com um “não esqueça de que quando chega a hora do piloto, todos morrem”. Um arrepio eletrizou o corpo de Ernesto que, naquele exato instante, duvidou se teria coragem de voltar a viajar de avião.
E, com as velhas histórias e os novos medos, Ernesto deixou o aeroporto.
Sem reconhecer na moça que abriu a porta do táxi, a mulher que lhe oferecera ajuda ao saber ter perdido o voo, Ernesto ingressou no carro. A maré de sorte parecia continuar, pois, sincronizados por algum comando inexplicável, o verde surgia à medida que o táxi se aproximava dos cruzamentos, permitindo o deslocamento em grande velocidade. Naquele ritmo chegaria em casa mais cedo e poderia dormir bastante. Ele merecia e precisava.
Não foi o que aconteceu. No último cruzamento, alegre, o motorista festejava a onda verde e, distraído, não conseguiu desviar o táxi do caminhão que violara o sinal. O acidente foi grave. Embora o motorista do táxi tenha escapado sem um arranhão, Ernesto não resistiu aos ferimentos e teve morte imediata.
(*) Alexandre Santos é presidente do Clube de Engenharia de Pernambuco, ex presidente da União Brasileira de Escritores (UBE) e coordenador nacional da Câmara Brasileira de Desenvolvimento Cultural