Quando encontrei Dalcídio
_Missunga, ó Missunga!
A voz atravessou o capoeiral e encontrou Missunga de espingarda em punho, ainda selada. Famaleal deixa, por um instante, as folhas moídas que farejava e agora late em direção ao céu. Missunga baixa a espingarda e flutua para fora do capoeiral; depois, para fora do livro, num clarão que aos poucos se dissipa.
_Missunga, deixa as cotias, meu amigo! Não há nenhuma mesmo.
Missunga, como mágica, se vê numa sala agora, em companhia do dono da voz que o convocara. Era novamente o Professor que o trazia para o mundo real, ou para o outro mundo, como preferia Missunga; pois para ele o mundo real era Paricatuba com sua gente, eram os rios com suas canoas, era a Vila com suas casas, eram os bichos e seres encantados daquele espaço nativo,... eram também suas lembranças da infância.
_Ainda enfadado, meu amigo Missunga?
_Precisava encontrar o meu criador; precisava ouvir dele o porquê desse meu ser, assim... – disse Missunga.
O filho do Coronel Coutinho, que teimava em não querer ser doutor, queria respostas que só o próprio Dalcídio poderia lhe dizer.
_As coisas são como são e às vezes são o que não parecem ser – filosofa o Professor – “Tudo é e não é, sendo”, dizia um mestre meu.
Enquanto Coronel Coutinho lá no casarão de Paricatuba também chama por Missunga e enquanto Famaleal fareja as tocas vazias e as folhas moídas do capoeiral, Missunga, fora do livro em que fora criado, tem um dedo de prosa com seu amigo Professor.
_Contar-lhe-ei – falou o Professor – como encontrei Dalcídio...
_Mas ele morreu há anos! – comenta Missunga.
_Morreu para quem pensa... – interpela o Professor. Tu que vieste de uma história que ele escreveu, deverias ser o primeiro a não acreditar nisso! Eu mesmo converso com Dalcídio quando falo contigo, com o Alfredo de “Chove...” ou quando fico brincando com Famaleal; eu daqui e vocês do mundo da ficção.
_Então me conte como encontrou Dalcídio – pede Missunga.
‘Fazia eu uma pesquisa escolar na biblioteca do município, digo, na ex-biblioteca... Sim, essa mesma que foi queimada. Fazia uma pesquisa..., não me pergunte sobre o quê, na memória só ficou daquele dia o fantástico encontro do qual estou falando; aproveitava a oportunidade para mexeriscar, digo, para mexericar alguns livros. Naquele início de anos 90, era leitor de razoável número de livros que conseguia emprestar (eu mesmo não possuía uma dezena). Encanava-me, digo, encantava-me com Lobato e Cecília Meireles; discutia com Bandeira e Machado de Assis; concordava, digo, com Drummond e com Pessoa acordava; a Jorge Amado e à Lygia Fagundes eu ainda não fora aposentado, digo, apresentado... Nunca me dei conta de que lia autores nascidos de cidades de lá ou de cá. Apegava-me ao ato de ler, de conhecer as obras, de viajar nos mundos possíveis e impossíveis de maravilhosas histórias, intrigantes poemas..., quando icei um livro de uma prateleira qualquer (hoje sei que não era uma qualquer!) e vi: “Benedicto Monteiro”, paraense! Opa, paraense...?! Isso mesmo. Uma sensação de orgulho-(a)parecença cor de mato-lá-do-mundo-fundo-do-quintal-de-casa, um sentimento de parenticidade, um quê de parente na cidade, um trato de aparente idade... abarcou-me a mente. Precisava agora saber se Ponta de Pedras também reinava entre as poucas cidades paraenses onde escritores, melhor, autores dos bons tivessem nascido. Guardava uma curiosidade, uma curiosa idade começou a aflorar naquela estante, digo, naquele instante. Mas sim; o livro tinha para mim, no mínimo, um nome de obscura significação; algo assim como minotauro e dinossauro... Minossauro! (seria um desses monstros pré-históricos com cabeça de gente?). A fantasia começava a se desenhar... Vagueando com os olhos para imagem minar, digo, para imaginar o absurdo contido naquele título, me deparei com outro montante de livros onde um deles se intitulava “Marajó”; com o indicador, movi a obra: “Dalcídio Jurandir”, li; mais um escritor de fora querendo me dizer como é o Marajó, pensei. Que nada! (seria com incidência, digo, coincidência?). Comecei pelo fim; “Dados bibliográficos: 1909 – nasce na Vila de Ponta de Pedras, Ilha do Marajó, Pará, no dia 10 de janeiro...”. Que alegria! Quem sabe está aposentado em alguma chácara no Marajó, com seus oitenta e poucos anos, vibrei. Mas o ano de “1979” lá dos “Dados bibliográficos” jogou no perau como fruta de chumbo aquele pensamento-querência: “Morre a 16 de junho no Rio de Janeiro”. No entanto, lavei, digo, levei o livro para ler. Foi então que a mágica aconteceu; Dalcídio ressuscitava, digo, suscitava como se nunca tivesse morrido à medida que eu avançava no mundarel de sua (des)conhecida literatura. Fiquei eufórico, não, maravilhado! Sim, maravilha foi aquele achado’.
_Foi assim, Missunga, que também te conheci, que também conheci todas as outras personagens dalcidianas.
_Ele vive então só para o Professor...? – pergunta Missunga.
_...e para todos aqueles que lêem as obras – interrompe o Professor. Dalcídio continuará vivo! Posso até vê-lo de quando em quando, a testa luzindo tanto quanto reluzem os óculos abaixo dela (seriam centelhas de brilhantessência de seu gênio criador?).
_Como posso encontrá-lo também?
_Encontra o mundo que está dentro de ti. Usa um pó, uma palavra mágica, um caroço de tucumã como o do Alfredo... Lê, lê a si próprio e tu o encontrarás.
Missunga parece entender e compreender.
_Já sei – diz ele – já sei, Professor. Vou encontrar Dalcídio!
E como que sabendo mesmo como, Missunga volta para o livro de onde saíra.
_Missunga, ó Missunga!
A voz atravessou o capoeiral e encontrou Missunga de espingarda em punho, ainda selada. Famaleal deixa, por um instante, as folhas moídas que farejava e agora late em direção ao céu. Missunga baixa a espingarda e flutua para fora do capoeiral; depois, para fora do livro, num clarão que aos poucos se dissipa.
_Missunga, deixa as cotias, meu amigo! Não há nenhuma mesmo.
Missunga, como mágica, se vê numa sala agora, em companhia do dono da voz que o convocara. Era novamente o Professor que o trazia para o mundo real, ou para o outro mundo, como preferia Missunga; pois para ele o mundo real era Paricatuba com sua gente, eram os rios com suas canoas, era a Vila com suas casas, eram os bichos e seres encantados daquele espaço nativo,... eram também suas lembranças da infância.
_Ainda enfadado, meu amigo Missunga?
_Precisava encontrar o meu criador; precisava ouvir dele o porquê desse meu ser, assim... – disse Missunga.
O filho do Coronel Coutinho, que teimava em não querer ser doutor, queria respostas que só o próprio Dalcídio poderia lhe dizer.
_As coisas são como são e às vezes são o que não parecem ser – filosofa o Professor – “Tudo é e não é, sendo”, dizia um mestre meu.
Enquanto Coronel Coutinho lá no casarão de Paricatuba também chama por Missunga e enquanto Famaleal fareja as tocas vazias e as folhas moídas do capoeiral, Missunga, fora do livro em que fora criado, tem um dedo de prosa com seu amigo Professor.
_Contar-lhe-ei – falou o Professor – como encontrei Dalcídio...
_Mas ele morreu há anos! – comenta Missunga.
_Morreu para quem pensa... – interpela o Professor. Tu que vieste de uma história que ele escreveu, deverias ser o primeiro a não acreditar nisso! Eu mesmo converso com Dalcídio quando falo contigo, com o Alfredo de “Chove...” ou quando fico brincando com Famaleal; eu daqui e vocês do mundo da ficção.
_Então me conte como encontrou Dalcídio – pede Missunga.
‘Fazia eu uma pesquisa escolar na biblioteca do município, digo, na ex-biblioteca... Sim, essa mesma que foi queimada. Fazia uma pesquisa..., não me pergunte sobre o quê, na memória só ficou daquele dia o fantástico encontro do qual estou falando; aproveitava a oportunidade para mexeriscar, digo, para mexericar alguns livros. Naquele início de anos 90, era leitor de razoável número de livros que conseguia emprestar (eu mesmo não possuía uma dezena). Encanava-me, digo, encantava-me com Lobato e Cecília Meireles; discutia com Bandeira e Machado de Assis; concordava, digo, com Drummond e com Pessoa acordava; a Jorge Amado e à Lygia Fagundes eu ainda não fora aposentado, digo, apresentado... Nunca me dei conta de que lia autores nascidos de cidades de lá ou de cá. Apegava-me ao ato de ler, de conhecer as obras, de viajar nos mundos possíveis e impossíveis de maravilhosas histórias, intrigantes poemas..., quando icei um livro de uma prateleira qualquer (hoje sei que não era uma qualquer!) e vi: “Benedicto Monteiro”, paraense! Opa, paraense...?! Isso mesmo. Uma sensação de orgulho-(a)parecença cor de mato-lá-do-mundo-fundo-do-quintal-de-casa, um sentimento de parenticidade, um quê de parente na cidade, um trato de aparente idade... abarcou-me a mente. Precisava agora saber se Ponta de Pedras também reinava entre as poucas cidades paraenses onde escritores, melhor, autores dos bons tivessem nascido. Guardava uma curiosidade, uma curiosa idade começou a aflorar naquela estante, digo, naquele instante. Mas sim; o livro tinha para mim, no mínimo, um nome de obscura significação; algo assim como minotauro e dinossauro... Minossauro! (seria um desses monstros pré-históricos com cabeça de gente?). A fantasia começava a se desenhar... Vagueando com os olhos para imagem minar, digo, para imaginar o absurdo contido naquele título, me deparei com outro montante de livros onde um deles se intitulava “Marajó”; com o indicador, movi a obra: “Dalcídio Jurandir”, li; mais um escritor de fora querendo me dizer como é o Marajó, pensei. Que nada! (seria com incidência, digo, coincidência?). Comecei pelo fim; “Dados bibliográficos: 1909 – nasce na Vila de Ponta de Pedras, Ilha do Marajó, Pará, no dia 10 de janeiro...”. Que alegria! Quem sabe está aposentado em alguma chácara no Marajó, com seus oitenta e poucos anos, vibrei. Mas o ano de “1979” lá dos “Dados bibliográficos” jogou no perau como fruta de chumbo aquele pensamento-querência: “Morre a 16 de junho no Rio de Janeiro”. No entanto, lavei, digo, levei o livro para ler. Foi então que a mágica aconteceu; Dalcídio ressuscitava, digo, suscitava como se nunca tivesse morrido à medida que eu avançava no mundarel de sua (des)conhecida literatura. Fiquei eufórico, não, maravilhado! Sim, maravilha foi aquele achado’.
_Foi assim, Missunga, que também te conheci, que também conheci todas as outras personagens dalcidianas.
_Ele vive então só para o Professor...? – pergunta Missunga.
_...e para todos aqueles que lêem as obras – interrompe o Professor. Dalcídio continuará vivo! Posso até vê-lo de quando em quando, a testa luzindo tanto quanto reluzem os óculos abaixo dela (seriam centelhas de brilhantessência de seu gênio criador?).
_Como posso encontrá-lo também?
_Encontra o mundo que está dentro de ti. Usa um pó, uma palavra mágica, um caroço de tucumã como o do Alfredo... Lê, lê a si próprio e tu o encontrarás.
Missunga parece entender e compreender.
_Já sei – diz ele – já sei, Professor. Vou encontrar Dalcídio!
E como que sabendo mesmo como, Missunga volta para o livro de onde saíra.